segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Dois minutos de Universo.




 

Desço à rua para comprar tabaco e entro no boteco da Dona Fernanda, que à conta do frio estava toda transida atrás do balcão com um passa-montanhas enfiado na cabeça que até me ocorreu ser terrorista, ou assim. Tentei abrir a porta da arca vertical para tirar umas bebidas mas duas japonesitas pequeno-almoçavam num tête-à-tête de cinema mudo sem legendas, cada qual afundada em telemóvel próprio. Minto, uma maquilhava as trombas, à vista de todos. Peço licença ao rabo da japonesa de cá para se chegar à frente e lá enfim abro a arca. Nisto chega o cauteleiro com muletas pernetas  vestido de camuflado de guerra, a arrastar-se pelo café dentro aos trinados de «Bom diaaa!». Ao ver o doutor, baixa o tom de voz e, três ou quatro oitavas abaixo, adita: «ou mau dia…» (a melancolia mediterrânica). Devolvo os bons dias ao herói da guerra, da guerra dele, não de qualquer outra, e ao sair dou de caras com um tipo de ares intelectuais aros redondos, carregadinho de bagagem. A primeira ocorrência que tenho é francês à espera da senhora das chaves do Airbnb, que as toalhas e os lençóis já estão lá dentro, postos de véspera. Estranho que o tipo esteja a entrar na funerária e até me espanto pela Adelaide dos caixões já arrendar também apts aos franceses, mas nisto bang! a iluminação epifânica; num nanossegundo, as sinapses do cérebro, mau grado cansadas, deslindam o mistério: era o filho de um morto qualquer que trazia o fato do pai para lho vestirem, penso que não ali na funerária. Dois minutos de Universo a poucos metros da Graça.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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