sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Não Pai.


 
 
Tinha muito interesse em ler este livro, mas confesso que estava com medo. Não do negrume da temática, pois, sendo um livro de Daniel Blaufuks, a questão do Holocausto era ou é quase inevitável. Receava, isso sim, e o Daniel que me perdoe, que fosse um breviário de fragmentos esparsos ou uma digressão pessoalíssima e tão subjectiva que só o autor a alcançaria. Mas não, pelo contrário. O que surpreende neste livro é a simplicidade, a linearidade e a tranquilidade. E, já agora, uma tremenda originalidade, não tanto da escrita ou do estilo (que são impecáveis, atenção), mas da perspectiva. Aqui não se trata, ou não se trata prima facie, de um ajuste de contas com um pai tirânico, ou assim sentido. A Carta ao Pai, de Kafka, apesar de citada, não é o modelo, longe disso. O tema – e isso é surpreende – não é a presença sufocante de um pai, mas justamente o contrário: a sua ausência. Uma ausência tanto mais dolorosa ou, pelo menos, desconcertante quanto o pai de Daniel vivia não muito longe dele – e um e outro poderiam ter-se encontrado, se acaso quisessem, se acaso os dois quisessem, se acaso um deles, de parte a parte, tivesse tomado a iniciativa. É claro que uma experiência como esta deixa marcas, cicatrizes, detritos na alma, e o Daniel assume-se, ele próprio, como um não pai, já que nunca teve filhos, ainda assim um não pai muito diferente do seu pai ou, se quisermos, do seu não pai. Muitas e muito fundas são ainda as feridas dessa ausência paterna. O pavor obsessivo do abandono, hoje mais moderado, mas muito presente nos primeiros anos – e, obviamente, com sequelas. Sobre isto, além de literatura clínica, e o DSM-V tem o registo dessas coisas, existe um outro livrinho, um livrinho excepcional, saído há anos numa excelente mas esquecida colecção do Público, Síndroma de Abandono, de Germaine Guex. Mas, por ora, o que importa é saudar este livro pungente e tocante e, acima de tudo, imensamente corajoso.
 





 
 
 
 
 
 
 

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