terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Essa Gente.

 
 
 



Custou, mas valeu. Tive de vencer a imensa e antiga inveja que nutro por ele, um tipo que tem e teve tudo na vida, Chico Buarque de Holanda. Perguntem o que falha nele, o que não teve, desde mulheres a talento para tudo, fama imensa e um olhar verde, inesquecível. Agora até o Prémio Camões. Não gostei muito de Estorvo e agora vou ter de ler O Irmão Alemão. Tudo por causa de Essa Gente, que, não sendo um assombro dos assombros, é um belo livro, muito devorável num domingo chuvoso. Ademais, o livro tem o Rio. A prosa, numa observação óbvia, faz lembrar Rubem Fonseca, outro passeador de melancolias pelo calçadão em brasa: homens em crise, geralmente de meia idade, quase sempre solitários, atormentados por si próprios e pelas fantasias do sexo. Essa Gente é também (ou é sobretudo) Bolsonaro, os latifundiários e pecuaristas em ascensão hegemónica, e o ponto é dado, muito bem dado, em nota subtil e oblíqua, sem ostentatações de sociologia política ou apontamentos devastadores sobre o novo velho Brasil. É claro que toda a amargura soa um pouco encenada, para fazer «literatura», mas o livro está bem escrito, muito bem escrito, cumprindo a tradição brasileira: transposição para o papel da linguagem oral prenhe de coloquialismos e palavões cabeludos. Chico é um arguto observador da vida, dos detalhes das conversações urbanas de nenhuma urbanidade, e mete tudo isso, e o seu talento, num livro que, mais por distracção do que para reflexão, vale muito a pena ser lido, sem dúvida alguma. (já agora, excelente recensão de Cristina Margato, no Expresso).

 






 
 

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