sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Uma falsa perspectiva de Milão.



Milão é um excesso de cosmopolitismo, de consumismo e de riqueza urbana, justo reflexo do prodígio económico da Lombardia. A sua catedral dedicada à Natividade da Virgem é, ela própria, um excesso, a maior igreja de Itália – embora apenas porque a Basílica de São Pedro está no modesto Estado do Vaticano – e um dos monumentos mais visitados do país. Sede da diocese que deu dois papas à Igreja no século XX, Pio XI e Paulo VI, a catedral é coroada a 108 metros de altura pela Madonnina dourada, que dá nome ao derby sempre que o AC Milan e o Inter se defrontam.

O templo religioso compete em atenções com o templo do consumo, mesmo ali ao lado. A Galeria Vittorio Emanuele II foi o primeiro grande centro comercial da Europa e permanece o epicentro das grandes marcas, que anseiam pelas atenções de turistas abonados, garantida que têm as suas montras a atenção dos que apenas se podem contentar com as vistas do que, a cada momento, é decretado como luxo.

Luxo será, precisamente, uma das palavras identificáveis com Milão. O dicionário refere-o como um “modo de vida que inclui um conjunto de coisas ou actividades supérfluas e aparatosas” ("luxo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2024). Talvez se pudesse acrescentar como característica uma certa superficialidade que facilmente poderíamos atribuir, à primeira vista, a Milão. Num país em que, a cada canto, se respira a ancestralidade do Império Romano ou do Renascimento, em Milão tudo parece demasiado novo, quase superficial, sem história.


Exterior da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.


Interior da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.


A irracionalidade inerente ao luxo, que permite que dois produtos iguais sejam tratados de forma diferente apenas porque um tem uma marca que faz catapultar o seu valor, pode servir como metáfora para o comportamento dos turistas. A fama de certos sítios ou monumentos transforma-os num formigueiro, chegando em alguns casos a torná-los, pela escassez de oferta de entradas, em produto de luxo, ansiado e por vezes inalcançável. Disponíveis, não raro gratuitos – e por vezes literalmente ao lado desses sítios da moda turística –, subsistem lugares extraordinários e ignorados pelas turbas, verdadeiros oásis nestas urbes.

Todo este intróito para dizer que temos por vezes uma falsa perspectiva de algumas cidades, que à primeira vista pouco têm para oferecer e onde se pode, afinal, saciar de beleza e História a nossa ignorância. Milão foi uma descoberta e tudo começa numa perspectiva falsa ou ilusória. A de Bramante.

Donato Bramante foi um dos grandes nomes do Renascimento italiano, uma época em que os arquitectos se digladiavam para tentar impor a papas, príncipes e cardeais as suas opções de estilo, inspiradas em concepções próprias do belo e do sagrado. São de Bramante alguns dos desenhos usados por Michelangelo para a construção da nova Basílica de São Pedro de Roma, assim como a traça da ábside de Santa Maria delle Grazie, a igreja do convento que alberga a celebérrima Última Ceia vinciana em Milão.

É de Bramante também o desenho de uma pequena, mas notável obra-prima da arquitectura, o falso coro da discreta Igreja de Santa Maria presso San Satiro, a pouco mais de 300 metros da arqui-famosa Catedral de Milão. A fachada de igreja está encoberta por prédios – é preciso procurar uma ruela, que dá para um pátio onde se revela, sóbria, sem esplendor. Ao entrar, deparamo-nos com uma igreja bonita e elegante nas suas proporções, sem o que quer que seja de impressionante, podendo quase designar-se como banal. Muitos terminarão por ali a visita e sairão, desperdiçando uma oportunidade para se surpreenderem com a ilusão das aparências.

 

A Madonnina esfaqueada, com o golpe na garganta do Menino bem visível.


Por cima da pintura mural do século XIII, um fresco do século XIX representa o ataque de Massazio da Vigolzone.


A pequena igreja tem uma história curiosa que começa no Dia da Anunciação de 1242, um par de séculos antes de ser construída. O jovem Massazio da Vigolzone, perturbado pelas avultadas perdas que sofrera no jogo, vingou-se da desdita esfaqueando a goela da imagem do Menino Jesus ao colo de Nossa Senhora, numa pintura mural no exterior da pequena capela de São Sátiro – Sátiro, mais ortodoxo do que os sátiros gregos, tem ali a única capela a si dedicada e era irmão de Santo Ambrósio, o grande santo de Milão que dá nome a um rito litúrgico próprio da diocese.

Ao terceiro golpe de Massazio terá jorrado sangue da parede da igreja, levando-o a cair em si e a compreender, perante o clamor dos que assistiam, o milagre que acabara de ocorrer. No arco da parede do fundo, um fresco do século XIX recorda o episódio. O azarado ter-se-á convertido em frade e abandonado o jogo, recordando a História o seu vício como causa de um milagre e, mais tarde, da construção de uma nova igreja para albergar a imagem milagrosa. O mural da Madonnina esfaqueada preside o retábulo do altar de Santa Maria presso San Satiro, com o golpe na garganta do Menino bem visível.

A igreja seria construída passados mais de 200 anos após o acontecimento miraculoso, por ordem dos omnipresentes Sforza. Situada no centro da cidade de Milão, estava muito condicionada pelas vias já consolidadas. Desafiado a vencer a falta de espaço no interior da igreja, Bramante concebeu e executou um singular trompe-l'œil (que, literalmente, engana-o-olho) arquitectónico – ao invés de pintado – que condensa, em 97 centímetros, os elementos que corresponderiam a um coro de 9,70 metros – a mesma profundidade dos braços do transepto.




Pormenores da compressão arquitectónica, executada em molduras de terracota pintadas, para criar uma falsa perspectiva de profundidade.

 

Assim, o coro ou capela-mor banal que vemos ao entrar na igreja torna-se extraordinária precisamente por não existir, o que se descobre quando nos aproximamos do altar por uma das naves laterais. A obra de Bramante é assombrosa pela sua perfeição, quando vista de longe; mas é primorosa na sua execução, com recurso a molduras de terracota pintadas, à semelhança dos caixotões da cúpula. O achatamento ou compressão dos elementos do tecto e das paredes é notável: quase inexistem e, no entanto, ali estão, à vista de todos os que entram, perfeitos, quase banais.

Lembra um efeito animado das séries infantis, impossível porque ficcional, de uma sala que é comprimida contra uma parede, como o fole de um harmónio, pronto para voltar ao normal. O trompe-l'œil produz-se imediatamente quando nos começamos a afastar do altar, criando sensações de profundidade diferentes, mas sempre enganadoras à medida que recuamos na nave.


Planta da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, que evidencia o trompe-l'œil.


Ilusão de descompressão à medida que nos afastamos do altar.


A Sacristia de Bramante.



Bramante construiu ainda a elegante sacristia oitavada, acoplada à nave direita. No lado oposto subsistem os restos da capela medieval de São Sátiro. A falsa perspectiva vale, por si, a visita. A entrada é gratuita e deveria fazer parte de todos os roteiros turísticos. Estava, no entanto, praticamente vazia. E não era a única.


Ademar Vala Marques

Janeiro 2025

Fotografias: Novembro 2024