No
seu conto que é antecâmara da Epifania, Sophia de Mello Breyner atribui a cada
um d’Os Três Reis do Oriente – Gaspar, Baltazar e Melchior – uma
história particular e sobretudo uma razão para partir em busca da estrela mais
brilhante. Independentemente da verosimilhança, a busca dos Magos interpela-nos
quer nas escrituras e na tradição canónica, quer na elegante prosa de Sophia.
O
regresso dos Magos a sua casa está envolto em maior mistério. São Mateus, o
evangelista que narra a Epifania, relata que “avisados em sonhos para não
voltarem junto de Herodes, regressaram ao seu país por outro caminho” (Mt 2,
12) – o que, em si mesmo, comporta o desafio alegórico aos que encontram Cristo
para que sigam por outro caminho, um caminho melhor, depois desse encontro.
Os
Magos, três na tradição ocidental, doze na tradição cristã oriental, voltaram
“ao seu país” mas, de acordo com diversas lendas não necessariamente
compatíveis, foram depois martirizados. O destino dos seus restos mortais foi
igual ao de tantas outras relíquias e passou pela intervenção arrebatadora da
Augusta (e futura santa) Helena, a mãe do Imperador Constantino, que na sua
peregrinação à Terra Santa de 326-28 não só descobriu a Verdadeira Cruz como
levou de volta a Constantinopla aqueles que se transformaram nos mais preciosos
tesouros da Cristandade.
Campanário
da Basílica de Sant’Eustorgio, em Milão, com uma estrela no topo.
As
ossadas dos Magos partiram poucos anos depois com Eustórgio, que fora a
Constantinopla para ser confirmado como novo bispo de Mediolanum, a Milão
imperial, e regressou em 344 a casa com as preciosas relíquias, num pesado
sarcófago de mármore arrastado por dois bois que, às portas da cidade, caíram
de cansaço.
Como
parte do seu ambicioso programa de difusão da Fé, o Bispo Eustórgio ordenou a
construção de várias basílicas, consoante a categoria dos santos que
albergariam: uma para os profetas, outra para os apóstolos, outra para os
mártires e outra para as virgens. Eustórgio morreu com fama de “defensor da Fé”
e elogiado pelos seus contemporâneos, passando a ser venerado localmente. Das
basílicas que mandou construir restam ainda três, resistindo à modernidade que
parece rodear-nos e que ofusca o que resta de Mediolanum, então capital do
Império Romano do Ocidente.
Foi
na basílica dos mártires, construída no lugar onde os bois se cansaram, que Eustórgio
mandou sepultar os Magos, tendo passado a ser conhecida como Basílica dos Três
Magos. No alto do campanário lá está uma estrela, em vez da habitual cruz. No
portal principal, a estrela volta a marcar presença, por cima de um fresco que
representa a visita dos Magos. No interior da basílica, permanece o túmulo manifestamente
primitivo, sem adornos subsequentes, e, contudo, quase vazio.
Interior
da Basílica de Sant’Eustorgio, em Milão.
Túmulo
dos Magos, no interior da Basílica de Sant’Eustorgio.
Arca
com representações da Viagem dos Magos, da Visita ao Menino e da Visita a
Herodes, que teria servido para levar as relíquias de Constantinopla para
Milão, no interior da Basílica de Sant’Eustorgio.
Em
1162, o Saque de Milão às mãos das tropas do Imperador Frederico, o célebre Barbarossa,
lideradas por Rainald von Dassel, arcebispo de Colónia, viu a quase destruição
da cidade. O arcebispo regressou com as preciosas relíquias e ofereceu-as ao
Imperador que, por sua vez, as deu à cidade de Colónia – onde são ainda hoje
veneradas num precioso relicário que honra, além dos Magos, o arcebispo que
saqueou Milão.
Quase
750 anos e muitas tentativas de reaver os Magos – ou o que deles resta – depois,
Colónia devolveu a Milão alguns fragmentos ósseos em 1903. Voltaram ao túmulo e
à basílica que, entretanto, tomara o nome do seu fundador, Sant’Eustorgio, e
que permanece um local onde a Fé é, surpreendentemente, um legado palpável.
Os
Magos não são, de resto, a única atração da basílica, nem tampouco os únicos
mártires que honram a evocação primitiva. Apesar de fisicamente ligada à
basílica e na continuação da capela-mor, a Capela Portinari é uma construção
autónoma e sobretudo com um estilo e identidade próprios.
Foi
contruída entre 1462 e 1468 por ordem de Pigello Portinari, o representante do
portentoso Banco dos Médici em Milão. Embora a arquitectura seja inspirada da
Sacristia Velha da Basílica de São Lourenço em Florença (panteão dos Médici),
obra de Brunelleschi, a decoração da Capela Portinari é bastante mais
exuberante e considerada um dos melhores exemplos do Renascimento lombardo.
Pigello
Portinari, fundador da Capela Portinari, representado aos pés de S. Pedro
Mártir.
Cúpula
da Capela Portinari, na Basilica de Sant’Eustorgio.
Cúpula
da Capela Portinari, na Basílica de Sant’Eustorgio.
A
capela é toda ela uma homenagem a São Pedro de Verona ou São Pedro Mártir, o
padroeiro dos inquisidores, recordado pela sua oposição feroz às heresias e que
acabou… removido do calendário romano em 1969 com o argumento de que o seu
culto era irrelevante internacionalmente, mas certamente vítima do espírito
conciliador do Concílio.
Pedro
de Verona, dominicano, que fora frade em Sant’Eustorgio e veio a ser nomeado
inquisidor para a Lombardia pelo Papa, foi atacado em 1252 por um grupo de
sicários, um dos quais lhe enterrou um machado no crânio. Pedro terá molhado os
dedos no sangue e escrito na terra o primeiro verso do Credo dos Apóstolos – Credo in Deum – antes de cair morto. A cena foi de tal forma marcante que o
assassino arrependido e convertido veio a ser, ele próprio, beatificado. A
Pedro o martírio valeu aquela que continua a ser a canonização mais rápida da
história, alcançada em apenas 11 meses.
A
cúpula da capela é surpreendente pelas cores que decoram os dezasseis segmentos
e que criam um efeito quase psicadélico. Nas paredes, os frescos recordam
alguns dos milagres atribuídos a Pedro de Verona em vida, uma nuvem milagrosa
que protege uma multidão de um calor tórrido, um pé amputado e recolocado, e o
mais sugestivo, o Milagre da Falsa Madonna, quando o inquisidor
desmascarou o Demónio que se tinha disfarçado de Nossa Senhora – e assim se
apresenta uma desconcertante e falsa Nossa Senhora, com chifres.
Fresco da Capela Portinari, na Basílica de Sant’Eustorgio, representando Pedro de Verona a escrever a primeira linha do Credo dos Apóstolos com o seu sangue.
Fresco
representando Pedro de Verona a obrigar o Demónio, disfarçado de Nossa Senhora,
a revelar-se.
Sumptuosa
arca tumular de S. Pedro Mártir, na Capela Portinari.
As
Virtudes, representadas na arca tumular de S. Pedro Mártir.
Pormenor
da arca tumular de S. Pedro Mártir.
Alguns
dos temas repetem-se na sumptuosa arca tumular de Pedro de Verona, em mármore
branco de Carrara, colocada já no século XVIII no centro da capela, mas que
precede em um século a construção da Capela Portinari. De grande riqueza
iconográfica, a arca tumular, datada em 1339 e assinada por Giovanni di
Balduccio, é suportada por oito pilares em mármore vermelho, junto aos quais
estão oito figuras femininas representando as virtudes teológicas e as virtudes
morais.
A
cada 6 de Janeiro, Dia de Reis, o cortejo histórico dos Reis Magos atravessa
Milão, partindo da Catedral até à Basílica de Sant’Eustorgio, antiga Basílica
dos Três Magos e lugar onde ainda se veneram, junto a um inquisidor
martirizado. Qualquer dos dias do ano é, no entanto, um bom dia para visitar
Sant’Eustorgio.
Ademar Vala Marques
6
Janeiro 2025
Fotografias:
Novembro 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário