A
jornalista Bárbara Reis escreveu uma peça no jornal Público no 18 do corrente
sobre as adiadas reformas de Estado e (subliminarmente, claro está) por forma a
acicatar o atual Governo veio recordar o deslumbramento que teve em 12 de março
de 2005 quando José Sócrates, logo no seu discurso de tomada de posse ter
anunciado que ia acabar com o monopólio obsoleto das farmácias, deixara de
fazer sentido que as farmácias comunitárias vendessem medicamentos sem
prescrição médica – tínhamos aqui uma reforma de Estado. A jornalista lembrou
as críticas e saudações a tal iniciativa, o ponto curioso é que nesse mesmo dia
um jornalista do Público pediu-me opinião sobre a decisão do primeiro-ministro
e eu respondi que se tratava de um pagamento eleitoral, os supermercados batiam
as palmas, era pura fantasia que estes medicamentos se poderiam ir vender em
espaços comerciais de pequena movimentação. Viu-se. Promulgada a legislação
admitindo novos espaços comerciais, certos supermercados lançaram-se a sério
neste comércio, apareceram centenas de estabelecimentos com técnicos de
farmácia à frente, como a legislação prescrevia. Passado vinte anos, em que deu
esta portentosa reforma de Estado que a tão entusiasta jornalista recorda a
Luís Montenegro como um bom exemplo? As centenas de estabelecimentos fecharam
as portas, não possuíam dimensão para vender a gama de medicamentos não
prescritos, é certamente com gáudio que a jornalista se abastece hoje com o
cartão Continente quando vai à Wells ou aproveita o cartão PoupaMais do Pingo
Doce (aí o negócio é minorca, são uns armários e uma certa gama de
medicamentos).
Vê-se
quem ganhou com a reforma de Estado, em que deu a espaventosa afirmação de
Sócrates que “é tempo de resolver os estrangulamentos que impedem que o
interesse geral imponha aos interesses particulares e corporativos que não
servem a maioria dos portugueses”. Mas a medida de Sócrates tinha subjacente
uma vingança e uma desforra. O PS pusera em outdoors que ia tomar uma medida de
grande benefício, criar farmácias sociais. O então presidente da Associação
Nacional das Farmácias zurziu, a medida era inconcebível, desafiou que
explicassem publicamente o que era isso de farmácias sociais. Não houve troco,
o que o PS propunha era pólvora seca.
Por
razões do meu empenho participativo, fui durante alguns anos um dos diretores
de uma associação europeia dos consumidores, curioso com esta proposta das
farmácias sociais, bati à porta de colegas ligados ao setor farmacêutico
democrata-cristão, liberal e socialista, queria saber se a Bélgica e em
qualquer país da União Europeia vigoravam-se as farmácias sociais, a resposta
foi pronta, era coisa do passado, havia ainda uma reminiscência de duas na
Bélgica e ligadas diretamente a instituições de filantropia.
A
jornalista Bárbara Reis desvaloriza a banalização da venda de medicamentos fora
da farmácia, esquece-se que, em primeiro lugar, devia haver um técnico
qualificado nos supermercados ou estruturas adjacentes para comunicar com o
adquirente de medicamentos, quer ela acredite ou não, não há medicamentes
inócuos. Tirando o caso específico das associações de doentes em que se dá
informação que serve para que as escolhas de medicamentos não tenham efeitos
adversos quando se associa um medicamento de venda livre aos medicamentos que
servem para terapêuticas de doentes crónicos, por exemplo, a falta de literacia
em Saúde justifica prudência e aconselhamento farmacêutico. Não se pode tomar à
toa o que quer que seja para tratar uma constipação, o nariz entupido, o mal-estar
do estômago, uma prisão de ventre, por exemplo, esses medicamentos apresentam
precauções de utilização, como todos os outros. Há dezenas de medicamentos
diferentes para tratar a constipação, uns não podem ser tomados por pessoas com
problemas de estômago, como gastrite ou úlcera; outros não podem ser tomados
por doentes asmáticos e alérgicos; outros não podem ser usados por doentes
cardíacos, pessoas que tiveram enfarte, arritmias com pulso rápido; alguns são
perigosos quando usados muito tempo, porque podem ocasionar hemorragias
cerebrais. E chega.
O
mais surpreendente deste convite subliminar de reforma a reforma, problema a
problema, dizendo a jornalista espaventosamente que o elefante se corta às
postas, era muito mais interessante que sugerisse quer aos farmacêuticos quer
aos doentes que tivessem posturas mais rigorosas ao balcão, sobretudo os
farmacêuticos, que, independentemente dos serviços farmacêuticos que prestam
(caso das vacinas contra a gripe e covid-19) não deviam limitar-se a uma mera
dispensa de medicamentos porque a saúde é mais do que comércio; e que os
Ministérios da Saúde e da Educação apostassem nessa reforma de Estado que é a
de gerar literacia em Saúde, uma dimensão da cidadania associada a estilos de
vida mais saudáveis, quer a exigir aos profissionais de saúde que habilitassem
os doentes a tratar o medicamento como deve ser – vende-se numa atividade
comercial, mas deve ser sempre dispensado com conselho, seja medicamento
prescrito ou não prescrito.
Mas posso compreender que esta reforma de Estado não seja um elefante que se corta às postas, não dá lucros imediatos, nem melhora o cash-flow das empresas, apesar de vinte anos depois da portentosa reforma de Estado de Sócrates o ganho está nos supermercados (isto, sem prejuízo do consumidor e utente de saúde ter alguns ganhos na caixa registadora do supermercado).
Mário Beja Santos
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