Quando
em pedem, em traços gerais, uma sinopse sobre a literatura da guerra colonial,
refiro, em primeiro lugar, um ciclo de obras de exaltação e de exultação, onde
não faltou o panegírico propagandístico feito por repórteres e crentes
nacionalistas, houve quem tivesse escrito ao arrepio dessas linhas de
patriotismo ou brio militar, obra encriptada, foi o caso de Álvaro Guerra, isto
até ao 25 de Abril; a liberdade de expressão deu azo a uma multiplicidade de
obras, um rio estuante de romance, poesia, ensaio histórico, conto e até os
balbucios da veia memorial; nas décadas de 1980 e 1990, feita a distanciação
necessária aos combatentes, surgiram belíssimos romances; indo por aí fora,
chegamos ao nosso tempo marcado pela literatura memorial, mas casos há em que
escritores de romances, e que parecia que tudo já tinham contado sobre as suas
experiências (não haja ilusões, estes romances da guerra colonial não são pura
ficção, são biografias romanceadas), voltam ao terreno do combate misturando as
suas biografias com enredos ficcionados – é a necessidade de reescrever o seu
passado pondo a escrita em seara alheia, serão, porventura, processos de
sublimação não descurando o alerta às novas gerações. É o caso da literatura de
Carlos Vale Ferraz, João de Melo, António Brito ou Rui de Azevedo Teixeira.
Este universitário, com obra extensa dedicada à literatura da guerra colonial,
lançou mão a um ciclo de romances que começou com O Elogio da Dureza a
que se seguiu O Longo Braço do Passado, Guerra e Paz, 2022, é o segundo
volume deste ciclo intitulado A Vida Aventureira de um Homem de Letras.
O
personagem principal é Paulo de Trava Lobo, um alter-ego do escritor. Paulo
volta a Angola, como professor, é cooperante, vai dar-nos um registo de Angola
pós-independência, começa por Luanda, o país é dominado pelo MPLA apoiado em
cubanos e russos, já houve a purga de Nito Alves e seus apoiantes. Paulo visita
os seus lugares de Luanda, foi alferes dos Comandos, percorre a cidade marcada
pela guerra, vive-se de esquemas, ele assiste a gente esfomeada à procura de
comida em caixotes do lixo, faz amizade com Pedro Kama, na estúrdia começa a
cometer infidelidades à mulher, Iza, adorada à distância. Segue para o Lubango,
ouvem-se os bombardeamentos dos sul-africanos. Vive as contingências da guerra,
almoços invariáveis de arroz e peixe frito, por ali circulam gentes de várias
nacionalidades, não faltam informadores. É apresentado à búlgara Diana
Sotirova, a relação dará faísca.
Segue-se
uma descrição arrasadora do ensino universitário da terra, papagueia-se o
marxismo-leninismo, embora haja quem ande a sabotar o socialismo científico e a
verdade soviética, ostentam-se currículos adquiridos à custa da compra de
títulos, uma pouca-vergonha. É-nos apresentado quem vive no Grande Hotel da
Huíla e a liberdade sexual instituída. Paulo é um professor devotado, os alunos
seguem assombrados a sua euforia profissional. O seu instinto de Comando vai
ser despertado quando Pedro Kama anuncia que lhe mataram a irmã, o assassino
fora um capitão das FAPLA. Fala-se dos horrores praticados por gente do MPLA,
da vingança de Agostinho Neto sobre Nito Alves, do banho de sangue. Paulo
depara-se com o guerrilheiro, de nome Log, que comandara uma grande emboscada à
Companhia de Comandos, na zona do Luvuéi, entre o Luso e Gago Coutinho.
Esboça-se o plano de matar o assassino da irmã de Kama, o assassino cai numa
emboscada montada por Kama e Paulo, é esquartejado e depois enterrado. “O
antigo alferes dos Comandos portugueses em Angola e um agente das secretas
angolanas tinham enterrado um capitão das FAPLA. Paulo e Kama tinham um pacto
de sangue. Para sempre.” Voltamos ao Lubango, Paulo escreve um diário, sente-se
feliz a dar aulas, tem ciúmes de que a búlgara ande de cama e pucarinho com um
sérvio, fica transtornado, insone, bate à porta do quarto de Diana, ela
pede-lhe que saia dali, ficamos a saber mais pormenores sobre as máfias
búlgaras, que em 1945 os comunistas búlgaros eram uma miserável minoria e que o
Exército Vermelho matara cerca de cem políticos de topo e 30 mil letrados, que
a vida na Bulgária é uma desgraça, paira uma atmosfera de terror e corrupção.
Mais adiante, Diana confessa que está amorosa de Paulo. Diana fora chantageada,
Paulo e Kama montam uma operação e vira-se o feitiço contra o feiticeiro,
simula-se um desastre, acabou-se com a raça do chantagista.
Prosseguem
as aulas, discussões animadas, os alunos entusiasmados. O contrato de Paulo
como professor cooperante no Lubango acaba. O retrato traçado dos outros
cooperantes é de gente medíocre, dissoluta, revolucionários da treta. Diana e
Paulo passeiam-se em Luanda antes do regresso deste a Portugal começa a
alcoolizar-se, comprou um jipe, acompanhado do seu amigo Manel viajam até à
Bulgária, de regresso a Portugal tem um grave desastre. Acaba a primeira parte
do livro que se intitula Paixão e Premonições de Diana Sotirova. Começa
agora o Longo Braço do Passado, Paulo regressa ao ensino universitário
como assistente na UAPorto, é responsável por cadeiras de literatura
anglo-americana, a paixão por Diana foi docemente esfriando, anda na estúrdia
com Manel, Iza é muito compreensiva. Recebe um convite da embaixada dos EUA em
Lisboa para uma longa visita ao país, anota no diário as suas impressões,
regressa a Lisboa para visitar um amigo agonizantes no Curry Cabral. O avô
deixa-lhe em testamento um terreno, a Catrina, investe metade do que recebeu
com a venda da Catrina numa empresa do irmão. Paulo é novamente demolidor com o
que se ensina no departamento, sente-se humilhado por lhe terem retirado uma
cadeira do ensino, acompanha a mulher e vão ensinar na Alemanha, é aqui que se
vai doutorar em literatura portuguesa, em Camões, estabelece boa relação com o
professor Horst Feldmann, “alto, moreno, possante, meio careca, muito peludo,
tinha mãos de pedreiro e tufos de pelos nas orelhas. Tinha uma belida sobre o olho
esquerdo. Estava mal vestido, com uma confusão de cores, e usava sapatos já
cambados. O aspeto grosseiro e a voz grossa contrastavam com o gabinete
limpíssimo, todo vidro, aço e paredes de granito sem reboco. Paulo prepara
afanosamente o seu doutoramento, vive em Aachen, cidade pacata, a tese é
provada com brilhantismo, Iza e Paulo partem para umas férias onde não faltam
bons hotéis.
Regresso
ao Porto, Iza segue para Heidelberg, Paulo vai para Lisboa, novamente para o
ensino universitário, novas amizades, mas no meio onde há aulas também há gente
detestável, dedica-se com paixão a ensinar o romance português contemporâneo e
também Camões. Segue-se a organização de congressos sobre a guerra colonial,
faz amizades com militares ilustres, envolve-se num processo de candidatura
para reitor, é bem-sucedido. Surge então um novo caso de chantagem, desta vez
envolvendo-o pessoalmente, segue-se a operação Bumerangue, vai até Bissau, é aí
que finaliza a perseguição de Ivan Dimitrov, que começara em Angola. Paulo
volta para o Porto, está em pleno gozo da reforma, novas viagens, bons hotéis e
excelentes itinerários. Paulo recorda a importância que Diana Sotirova tivera
para ele. Agora com Iza forma uma dupla inexpugnável, inexplicável.
Uma
movimentada literatura de entretenimento com Rui de Azevedo Teixeira
transfigurado em Paulo de Trava Lobo. Falta agora conhecer o seguimento desta
série de aventuras de um homem de Letras.
Mário Beja Santos
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