Este
ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos de título Direitos
Fundamentais para o Universo Digital, por Jorge Pereira da Silva, 2024,
merece ainda mais a nossa atenção numa altura em que se corre o risco de
soberaníssimas plataformas digitais, comandadas por multimilionários aduladores
do presidente Donald Trump pretenderem comprometer o quadro legal que nos
protege na União Europeia.
O
autor é um universitário que já dirigiu a Escola de Lisboa da Faculdade de
Direito da Católica, domina o assunto, começa por se debruçar sobre o conteúdo
da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, apanha-lhe os pontos
frágeis mas releva os pontos nobres e não deixa de enfatizar que os direitos
consagrados pela Carta são efetivamente direitos fundamentais, e ele traça o
histórico desses direitos para concluir que a autorregulação no universo
digital é uma mera utopia, são bem gravosos os abusos que se podem praticar
neste ciberespaço onde é imenso o poder económico e tecnológico dos gigantes da
era digital.
Abordando
as sucessivas gerações dos direitos fundamentais não deixa de chamar à atenção
para o facto de estes estarem ainda numa fase embrionária. Acresce que a
perspetiva da União Europeia e a dos Estados Unidos sobre a temática de um
ciberespaço entregue a si próprio serem radicalmente distintas, no quadro
europeu têm-se dado passos firmes no sentido de sujeitar o universo digital aos
princípios do constitucionalismo digital.
O
autor elenca as diferentes gerações de direitos, desde os direitos civis, as
liberdades, passando pelos direitos políticos, o direito de voto, os direitos
sociais, estas três gerações de direitos acabaram por se plasmar na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, inevitavelmente o rol de direitos cresceu,
temos hoje uma nova arrumação dos direitos fundamentais na sequência das
descobertas tecnológicas (privacidade, identidade genética, esquecimento, a
desligar). Daí ele proceder a uma apresentação das diferentes funções dos
direitos fundamentais que por ora culmina num domínio em aberto sobre a
inteligência artificial, daí a referência que faz à proposta da Comissão
Europeia a um regulamento sobre a inteligência artificial, onde se procura
graduar as diferentes aplicações segundo o grau de risco envolvido, definindo
um sistema de proibições, absolutas ou relativas.
Não
pode haver adesão cidadã sem que se percecione a contextualização do universo
digital, temos aqui um capítulo muito bem elaborado onde vamos chegar às
plataformas digitais, às redes, ao comércio e aos serviços digitais, é
necessário entender o que pretendem estes pesos pesados da economia digital e a
sua carga ideológica, como pretendem comandar a internet das coisas ao serviço
de um projeto político. Daí as questões de Direito suscitada pelo digital, o
autor expõe os argumentos pró e contra da relação jurídica, manifestando-se a
favor das regras do Direito, em que, aliás assenta, a Declaração Comum sobre os
Direitos e Princípios para a Década Digital (a União Europeia possui já um
acervo de regulamentos, por exemplo, o acesso à internet aberta, os serviços
digitais, a proteção de dados e uma Agência Europeia para a Cibersegurança).
Na
sequência desta apresentação segue-se um capítulo sobe direitos fundamentais,
muitos deles já constantes, no caso português, da Carta Portuguesa de Direitos
Humanos na Era Digital (acesso à rede, proteção de dados pessoais, segurança
digital, proteção em face da inteligência artificial, liberdade de expressão
nas redes sociais), apresenta-nos um argumento explicativo destes diferentes
domínios. Põe o foco na proteção em face da inteligência artificial e ajuda o
leitor a perceber a complexidade da questão: “A inteligência artificial, é, na
realidade, muito pouco inteligente. As suas incomensuráveis potencialidades
decorrem da extraordinária capacidade de processar dados em quantidade e
rapidez e, em última análise, de aprender com essas mesmas operações de
processamento. Por isso, é capaz de desempenhar tarefas que, quando executadas
por humanos, exigem a utilização daquilo a que chamamos inteligência. Além
disso, a inteligência artificial tem sobre a mente humana enorme mais-valia de
não esquecer.” E enuncia alguns dos riscos da utilização da inteligência,
refere aplicações dessa inteligência que têm de ser juridicamente proibidas. E
ajuda-nos a compreender a complexidade das coisas:
“O
problema da discriminação algorítmica é, no essencial, o de que as pessoas se
sentem discriminadas por sistemas de inteligência artificial, mas muitas vezes
não conseguem explicar porquê. Por outro lado, os algoritmos sofrem de
opacidade crónica no seu funcionamento e, como é evidente, não fundamentam as
decisões que tomam. E por outro lado, produzem as suas decisões com base, não
num único critério arbitrário, mas numa combinação muito alargada de critérios
objetivos, como o local da residência, o percurso escolar e académico, a
experiência profissional, o nível salarial, entre outros semelhantes. Sucede
que o resultado dessa combinação, ao invés de ser objetivo, revela-se na
prática enviesado, por exemplo, prejudicando especialmente as mulheres de cor,
estatisticamente com níveis de escolaridade e renumeração mais baixos.” Todos
os aspetos da liberdade de expressão nas redes sociais são ventilados neste
estudo, concluindo que a liberdade de expressão se converteu numa espécie de
direito de participação pública, comportando o direito positivo aos
instrumentos de projeção da voz e do pensamento, direito positivo este que
nunca existiu em relação aos meios de comunicação social tradicionais.
Havendo
concluir, prevê o autor: “A regulação do universo digital é um desafio grande
para as instituições públicas, mas que a União Europeia está a levar muito a
sério. Nesse esforço de regulação, tem vindo a ser constituído um corpo de
normas jurídicas que, não obstante a diversidade de fontes e de posição
hierárquica, pode designar-se por Direito Digital. Mais do que um novo ramo de
Direito, trata-se de um outro ordenamento jurídico, com um processo de formação
descentralizado e que, por ora, tem ainda natureza fragmentária. Um dos
capítulos mais dinâmicos desse ordenamento é justamente o Direito
Constitucional Digital, onde está a ser formada novíssima geração de direitos
fundamentais. Considerando fontes nacionais e fontes europeias, normas
constitucionais e normas legais, é possível identificar pelo menos cinco novos
direitos fundamentais das pessoas para o universo digital: direito de acesso à
rede; proteção de dados pessoais; direito à segurança no ambiente digital;
proteção em face da inteligência artificial e liberdade de expressão nas redes
sociais.”
Um estudo muitíssimo útil para quem deseje conhecer o coração da matéria destes direitos fundamentais que sem apelo nem agravo têm a capacidade de consolidar a democracia participativa, a despeito das ameaças que pairam no ar, seja qual for a corrente de tentação totalitária.
Mário Beja Santos
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