Milão
é um excesso de cosmopolitismo, de consumismo e de riqueza urbana, justo
reflexo do prodígio económico da Lombardia. A sua catedral dedicada à
Natividade da Virgem é, ela própria, um excesso, a maior igreja de Itália –
embora apenas porque a Basílica de São Pedro está no modesto Estado do Vaticano
– e um dos monumentos mais visitados do país. Sede da diocese que deu dois
papas à Igreja no século XX, Pio XI e Paulo VI, a catedral é coroada a 108
metros de altura pela Madonnina dourada, que dá nome ao derby sempre que
o AC Milan e o Inter se defrontam.
O
templo religioso compete em atenções com o templo do consumo, mesmo ali ao
lado. A Galeria Vittorio Emanuele II foi o primeiro grande centro comercial da
Europa e permanece o epicentro das grandes marcas, que anseiam pelas atenções
de turistas abonados, garantida que têm as suas montras a atenção dos que
apenas se podem contentar com as vistas do que, a cada momento, é decretado como
luxo.
Luxo
será, precisamente, uma das palavras identificáveis com Milão. O dicionário
refere-o como um “modo de vida que inclui um conjunto de coisas ou actividades
supérfluas e aparatosas” ("luxo",
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2024). Talvez se pudesse
acrescentar como característica uma certa superficialidade que facilmente
poderíamos atribuir, à primeira vista, a Milão. Num país em que, a cada canto,
se respira a ancestralidade do Império Romano ou do Renascimento, em Milão tudo
parece demasiado novo, quase superficial, sem história.
Exterior
da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.
Interior
da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, em Milão.
A
irracionalidade inerente ao luxo, que permite que dois produtos iguais sejam
tratados de forma diferente apenas porque um tem uma marca que faz catapultar o
seu valor, pode servir como metáfora para o comportamento dos turistas. A fama
de certos sítios ou monumentos transforma-os num formigueiro, chegando em alguns
casos a torná-los, pela escassez de oferta de entradas, em produto de luxo,
ansiado e por vezes inalcançável. Disponíveis, não raro gratuitos – e por vezes
literalmente ao lado desses sítios da moda turística –, subsistem
lugares extraordinários e ignorados pelas turbas, verdadeiros oásis nestas urbes.
Todo
este intróito para dizer que temos por vezes uma falsa perspectiva de algumas cidades,
que à primeira vista pouco têm para oferecer e onde se pode, afinal, saciar de
beleza e História a nossa ignorância. Milão foi uma descoberta e tudo começa
numa perspectiva falsa ou ilusória. A de Bramante.
Donato
Bramante foi um dos grandes nomes do Renascimento italiano, uma época em que os
arquitectos se digladiavam para tentar impor a papas, príncipes e cardeais as
suas opções de estilo, inspiradas em concepções próprias do belo e do sagrado.
São de Bramante alguns dos desenhos usados por Michelangelo para a construção
da nova Basílica de São Pedro de Roma, assim como a traça da ábside de Santa
Maria delle Grazie, a igreja do convento que alberga a celebérrima Última Ceia vinciana
em Milão.
É
de Bramante também o desenho de uma pequena, mas notável obra-prima da
arquitectura, o falso coro da discreta Igreja de Santa Maria presso San Satiro,
a pouco mais de 300 metros da arqui-famosa Catedral de Milão. A fachada de
igreja está encoberta por prédios – é preciso procurar uma ruela, que dá para
um pátio onde se revela, sóbria, sem esplendor. Ao entrar, deparamo-nos com uma
igreja bonita e elegante nas suas proporções, sem o que quer que seja de
impressionante, podendo quase designar-se como banal. Muitos terminarão por ali
a visita e sairão, desperdiçando uma oportunidade para se surpreenderem com a
ilusão das aparências.
A Madonnina esfaqueada, com o golpe na garganta do Menino bem visível.
Por
cima da pintura mural do século XIII, um fresco do século XIX representa o
ataque de Massazio da Vigolzone.
A
pequena igreja tem uma história curiosa que começa no Dia da Anunciação de
1242, um par de séculos antes de ser construída. O jovem Massazio da Vigolzone,
perturbado pelas avultadas perdas que sofrera no jogo, vingou-se da desdita
esfaqueando a goela da imagem do Menino Jesus ao colo de Nossa Senhora, numa
pintura mural no exterior da pequena capela de São Sátiro – Sátiro, mais
ortodoxo do que os sátiros gregos,
tem ali a única capela a si dedicada e era irmão de Santo Ambrósio, o grande
santo de Milão que dá nome a um rito litúrgico próprio da diocese.
Ao
terceiro golpe de Massazio terá jorrado sangue da parede da igreja, levando-o a
cair em si e a compreender, perante o clamor dos que assistiam, o milagre que
acabara de ocorrer. No arco da parede do fundo, um fresco do século XIX recorda
o episódio. O azarado ter-se-á convertido em frade e abandonado o jogo, recordando
a História o seu vício como causa de um milagre e, mais tarde, da construção de
uma nova igreja para albergar a imagem milagrosa. O mural da Madonnina
esfaqueada preside o retábulo do altar de Santa Maria presso San Satiro, com o
golpe na garganta do Menino bem visível.
A
igreja seria construída passados mais de 200 anos após o acontecimento
miraculoso, por ordem dos omnipresentes Sforza. Situada no centro da cidade de
Milão, estava muito condicionada pelas vias já consolidadas. Desafiado a vencer
a falta de espaço no interior da igreja, Bramante concebeu e executou um singular
trompe-l'œil (que, literalmente, engana-o-olho) arquitectónico –
ao invés de pintado – que condensa, em 97 centímetros, os elementos que
corresponderiam a um coro de 9,70 metros – a mesma profundidade dos braços do
transepto.
Pormenores
da compressão arquitectónica, executada em molduras de terracota pintadas, para
criar uma falsa perspectiva de profundidade.
Assim,
o coro ou capela-mor banal que vemos ao entrar na igreja torna-se
extraordinária precisamente por não existir, o que se descobre quando nos
aproximamos do altar por uma das naves laterais. A obra de Bramante é
assombrosa pela sua perfeição, quando vista de longe; mas é primorosa na sua
execução, com recurso a molduras de terracota pintadas, à semelhança dos
caixotões da cúpula. O achatamento ou compressão dos elementos do tecto e das
paredes é notável: quase inexistem e, no entanto, ali estão, à vista de todos
os que entram, perfeitos, quase banais.
Lembra
um efeito animado das séries infantis, impossível porque ficcional, de uma sala
que é comprimida contra uma parede, como o fole de um harmónio, pronto para
voltar ao normal. O trompe-l'œil produz-se imediatamente quando nos
começamos a afastar do altar, criando sensações de profundidade diferentes, mas
sempre enganadoras à medida que recuamos na nave.
Planta
da Igreja de Santa Maria presso San Satiro, que evidencia o trompe-l'œil.
Ilusão
de descompressão à medida que nos afastamos do altar.
A
Sacristia de Bramante.
Bramante
construiu ainda a elegante sacristia oitavada, acoplada à nave direita. No lado
oposto subsistem os restos da capela medieval de São Sátiro. A falsa
perspectiva vale, por si, a visita. A entrada é gratuita e deveria fazer parte
de todos os roteiros turísticos. Estava, no entanto, praticamente vazia. E não
era a única.
Ademar Vala Marques
Janeiro
2025
Fotografias:
Novembro 2024
Lembro-me perfeitamente de ter visitado essa igreja, não me lembro se me apercebi da dimensão do trompe l'oeil, até porque me habituei a ver vários pela a itália, mas concordo Milão é mais exuberante pelas marcas de luxo do que pela imponência dos seus monumentos (exceção para a catedral) e antiguidade destes, embora a igreja de Santo Ambrósio, bem afastada do centro, seja bem antiga.
ResponderEliminarImpressionou-me ver a quantidade de mulheres árabes totalmente cobertas, com criados a segurarem as compras de marca e os motoristas à espera na proximidade, descobri isso porque me sentei numa das ruas de luxo num pilarete a descansar calmamente e tive a sorte de reparar... depois foi estar atento.