O Volksgerichtshof, 1934
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No
momento Hannah Arendt torna-se tópico de conversas banais. Tudo por causa de uma
vida condensada num filme sobre um julgamento. É curioso: o filme genial de
John Ford sobre Abraham Lincoln também não pretendeu ser uma biografia – no
cinema não se pode fazer verdadeiramente biografias. Foi apenas, como o de
Hannah Arendt, um filme concentrado num julgamento onde o bem triunfou sobre o
mal devido à coragem que um homem teve para fazer frente à turbamulta.
O
tribunal é esse palco da vida onde simbolicamente o bem e o mal se defrontam.
Mas nunca se sabe de que lado eles estão. Ora, o mais extraordinário do nazismo
não foi o facto de ele ser a expressão radical do mal, mas a sua capacidade
para revelar em cada pessoa o mal que nela vive e que a civilização tentou
controlar e polir, baldadamente. Por mim, julgo que o mais incompreensível do
nazismo foi o modo como homens que identificamos com o bem – médicos e juízes –
se tornaram protagonistas do mal.
Roland Freisler
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Roland Freisler, ao lado de outros juristas nazis como Franz Schlegelberger, Otto
Thierack, Curt Rothenberger (alguém lhes chamou os quatro reformadores legais e
judiciários do nazismo) corporizou muitos dos males do Direito ao serviço do
totalitarismo. Insigne (se é que tal palavra se justifica) jurista nazi,
Freisler teve a distinção de assinar o livro de presenças em Wannsee, ao lado
de outras luminárias do sistema concentracionário. No final da guerra,
distinguiu-se pela histeria com que condenava os poucos homens de coragem para
quem, na Alemanha, o bem foi um imperativo categórico que exigiu a acção.
Dos
conspiradores de 20 Julho de 1944, tantos condenou à pena capital. Mas ainda a
Freisler faltava condenar mais alguns. Naquele dia 3 de Fevereiro de 1945, no Volksgerichtshof, o Tribunal do Povo de
Berlim, preparava sofregamente mais uns quantos julgamentos. Ouviram-se as
sirenes que anunciavam mais um bombardeamento diurno da aviação americana.
Insensível, Freisler continuou a alinhar os processos daqueles que já
antecipadamente condenara. Guiada por forças superiores, uma daquelas bombas
acertou em cheio no edifício do tribunal.
Fabian von Schlabrendorff
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Freisler
morreu e poucos o terão chorado. Quando descobriram o seu corpo, junto dele
encontraram o último processo que ele estudara, o de um dos conspiradores,
Fabian von Schlabrendorff. Este, advogado antes da guerra, adjunto de um
opositor de Hitler durante o serviço militar, opositor da primeira hora, não
conseguira ficar inactivo. Em 1943 colocara uma bomba no avião do ditador que
desastradamente não explodira e, em 1944, colaborara com Stauffenberg. Preso
pela Gestapo, tinha sido torturado. Ia ser julgado na sessão de 3 de fevereiro
e a condenação à morte era certa. Devido à bomba providencial, sobreviveu. Depois,
passou por Sachsenhausen e por Dachau, até ser libertado pelos americanos em Maio.
Com a paz, voltou à actividade como jurista. Entre 1967 e 1975 seria um
distinto juiz do Tribunal Constitucional alemão.
Robert Rosenthal
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Quem
carregara no botão que libertara a bomba fatal? Não se pode saber com certeza.
Mas é certo e sabido quem comandava a esquadrilha que atacara Berlim: Robert Rosenthal, o tenente-coronel que era um dos pilotos mais condecorados (16
medalhas) da força aérea americana. Um extraordinário piloto que sempre se
ofereceu para o combate. Depois de ter completado 25 missões poderia ter sido
desmobilizado. Mas renovou a comissão e completou 53 ataques. Numa delas, sobre
Münster, de um total de 13 bombardeiros, o seu B-17 Flying Fortress foi o único a regressar, com um respeitável
buraco na asa direita, devido a um impacto directo da antiaérea alemã. Depois,
foi abatido duas vezes. Numa delas, de retorno da Alemanha, apesar de gravemente ferido foi
recuperado pela resistência francesa e regressou a Inglaterra onde se ofereceu
de imediato para mais missões. A seguinte foi a de 3 de Fevereiro. Com o
bombardeiro atingido, o comandante Rosenthal, imperturbável, manteve o rumo
direito a Berlim. Depois de largar as bombas, esperou que a tripulação saltasse
de paraquedas. Foi o último a saltar, mesmo antes de o avião explodir. O
Exército Vermelho resgatou-o e ainda voltou a Inglaterra para continuar a
combater. Acabada a guerra na Europa, ofereceu-se para combater no Pacífico,
mas já não foi necessário.
O
que movia Robert Rosenthal? Diz-se que
era por ser judeu, um judeu americano. Alguns insinuaram que era por vingança,
por ter tido familiares em campos de concentração. Rosenthal sempre negou:
alistou-se no dia seguinte a Pearl Harbor sem saber que ia combater os alemães.
Tinha vinte cinco anos e era um advogado jovem mas já bem cotado, graduado “summa cum laude” pela Brooklyn Law
School e contratado por um bom escritório de Manhattan. Pela idade e pelas
competências, foram-lhe oferecidas missões de não combatente, mas sempre insistiu
que queria defrontar o inimigo, fossem os alemães ou os japoneses.
É
bom que se diga que os tripulantes de bombardeiros tinham a maior taxa de
mortalidade de todos os combatentes americanos, a seguir aos tripulantes dos
submarinos no Pacífico. Nada o demoveu: o seu sentimento de dignidade humana impelia-o
a combater aquilo que via como a encarnação do mal. Sempre garantiu que não
havia razões pessoais para a sua ânsia de combater: “Everything I´ve done or hope to do is because I hate persecution. A human being has to look out for other human being or
there´s no civilization.”
O
seu combate continuou numa sala de tribunal. Juntou-se à equipa de acusação
americana de Robert H. Jackson em Nuremberga. Durante o julgamento, foi um dos interrogadores do
marechal Keitel e do incompetente chefe da Luftwaffe, Herman Goering: “Seeing these strutting conquerors after they
were sentenced – powerless, pathetic and preparing for the hangman – was the
closure I needed. Justice
had overtaken evil. My war was over.” Não posso deixar de
pensar que a justiça teria sido poética se a bomba que matou Freisler tivesse
efectivamente sido despejada pelo botão pressionado por Rosenthal. O dia 3 de Fevereiro
de 1945 ficaria nos anais assinalado pela luz da vitória do bem sobre o mal
radical, por meios extraordinários.
A
dimensão e a visceralidade de tudo o que aconteceu leva-nos, contrariando de
algum modo Hannah Arendt, a pensar que o mal nunca é banal. O banal pode ser
mau, é certo. Radicalmente mau, assustadoramente mau. Mas, ainda assim, banal.
A isso, afinal, alude a pensadora que recusava ser filósofa. Por isso, falemos,
não da banalidade do mal, mas da malignidade do banal. O bem, igualmente por
definição, nada tem de banal. E dispõe de instrumentos incomuns. Que o diga Schlabrendorff,
o jurista salvo no último minuto das garras de um jurista das forças do mal por
um jurista e, sobretudo, por um homem bom que nada tinha de banal.
José
Luís de Moura Jacinto
obrigada pelo artigo. gostei muito.
ResponderEliminarMuito bom! Não admira que ao longo dos séculos se tenham inventado entidades exteriores à humanidade que seriam "responsáveis" pelo mal...
ResponderEliminara sua capacidade para revelar em cada pessoa o mal que nela vive e que a civilização tentou controlar e polir, baldadamente.
ResponderEliminarQue pensamento maravilhoso.
Deviamos meditar nisto.
Todos, mas mesmo todos, estamos à disposição do Mal.
F.A. O fenómeno repete-se um pouco por todo o lado, aqui e agora, mas não damos por ele pois não tem as características de massa que teve o fenómeno nazi, mas se atentarmos nas promiscuidades, nas mesquinhas conspirações, invejas, perseguições nos locais de trabalho, para que seja o outro a ser despedido ou dispensado... para salvar o c... , o medo das direcções e chefias , as lisonjas,as coligações , os grupelhos de apoio aos pequenos poderes,isolando os que se movem por princípios, então descobrimos que, infelizmente, é assim mesmo, a banalização do mal é que nos deve preocupar. Só os respeito por princípios, só a luta para mantermos a coluna vertebral direitapode evitar que mal vingue.
ResponderEliminarHistória curiosa e muito interessante, sobretudo como argumento cinematográfico...
ResponderEliminarDesculpe a discordância, mas a malignidade do banal chega a ser quase benigna, quando comparada com a banalidade do Mal.
Ana Areias.
O que movia Robert Rosenthal?
ResponderEliminarA vontade de matar. Um genocida banal cuja diferença para Hitler residiu nos números.