W. Eugene Smith, The Walk to Paradise Garden, 1946
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A
Margarida anda com problemas com o Vouga, pois na aula não conseguiu dizer onde
era. A Joana não tem problemas, nem com o Vouga nem problemas de espécie alguma; não tem sequer problemas com problemas
– e por isso é feliz. A Leonor não dá problemas, o que é uma
bênção. Uma outra bênção, singular coincidência, aconteceu no espaço das últimas duas semanas. Sem terem conversado entre si, quatro pessoas de que gosto muito falaram-me da
fotografia de W. Eugene Smith, The Walk
to Paradise Garden, de 1946. Acreditem ou não, foi exactamente assim que se
passou.
Mais
do que a imagem em si, interessa-me a história da sua captura. Como aqui se conta, Smith fora gravemente ferido nos combates do Pacífico, mesmo no final da
2ª Guerra, em que se distinguira como um dos maiores fotojornalistas do mundo.
Foi transportado para os Estados Unidos, onde passou dois longos e penosos
anos, entre operações e exercícios de reabilitação. Naquele dia de Primavera,
um dia quente, W. Eugene Smith encontrava-se em depressão profunda, perdido entre
as dolorosas memórias de guerra, a incerteza quanto ao seu futuro como
fotógrafo e o seu estado físico e psicológico actual, lastimável. Como
recordaria anos mais tarde, aquele foi um dia «de decisão espiritual». Seguiu, de
máquina na mão, os seus filhos Pat e Juanita. Caminhava no seu encalço, no meio
de dores imensas:
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Pat
viu qualquer coisa na clareira, pegou a mão de Juanita e correram ambos em
frente. Enquanto seguia os meus filhos entre arbustos e árvores de grande porte
– e estavam maravilhados por cada pequena descoberta que faziam! –, observei-os
e compreendi que, apesar de tudo, apesar de todas as guerras e de tudo por que
passara, queria escrever um poema à vida e à coragem de continuar a vivê-la…
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Então, fotografou-os. Na altura, não deu muita importância à imagem. Contudo, The Walk in the Paradise Garden seria escolhida para integrar, como fotografia de encerramento, a celebérrima exposição The Family of Man, organizada por Steichen. A partir daí, tornou-se um ícone (a expressão é fatal...) das fotografias de família. Mais tarde, Smith retrataria
o mundo do jazz e, muito depois,
destacou-se a divulgar para todo o mundo novos horrores, iguais ou piores dos que
vira em Saipan ou em Iwo Jima. Encontrava-se de regresso ao Japão, e chegou a ser
violentamente agredido por funcionários da empresa química Chisso (que, aliás,
ainda hoje existe…). Entre 1932 e 1968, a Chisso lançou ao mar enormes quantidades de resíduos
industriais, contaminados por mercúrio. Quase três mil pessoas foram afectadas
por aquela que ficou conhecida como doença de Minamata. Mais de metade morreu. Os sobreviventes sofreram muito, tanto ou mais do que Eugene Smith quando
regressou da guerra. Smith perdeu a visão de um
dos olhos na sequência das agressões dos funcionários da Chisso. Imagine-se o
que isso significa para um fotógrafo… Porém, ele e a mulher não desistiram, prosseguindo juntos bosque adentro, com Aileen Smith a fotografar
enquanto o marido recuperava. Durante dois anos, o mesmo tempo da sua
convalescença no pós-guerra, Eugene e Aileen viveram em Minamata. Daí resultou
um livro, publicado em 1975. Mas daí resultou, acima de tudo, a imagem Tomoko Uemura no Banho,
captada em 1971 e publicada em 1972, meses depois do ataque que Smith sofrera.
W. Eugene Smith, Tomoko Uemura no Banho, 1971
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Naquele
ano longínquo de 1946, graças à presença serena dos seus filhos, W. Eugene Smith tomara a decisão de seguir em frente,
metafórica e literalmente falando. Em 1972, não desistiu de publicar a sua madonna de Minamata, apesar das
agressões e ameaças de que fora alvo.
Consumia anfetaminas e álcool em quantidades desmesuradas, para poder continuar incessantemente o seu trabalho, em que era viciado. Morreu
de ataque cardíaco em 1978. Seria cremado na presença de Aileen e da sua primeira mulher, Carmen, bem como dos treze netos. Depois da sua morte, três habitantes de Minamata enviaram um telegrama à viúva, em que, entre outras palavras, diziam: your history is our courage itself.
Das muitas fotografias extraordinárias que W. Eugene Smith tirou ao longo da sua agitada carreira, uma das mais belas (porventura, a mais bela) mostra uma jovem freira no porto de Nova Iorque, aguardando a chegada dos sobreviventes do naufrágio do Andrea Doria, ocorrido em 1956. Sozinha entre a multidão, a freira observa algo que desconhecemos, possivelmente o convés do navio que transportava os sobreviventes do desastre. Nos dedos esguios que tocam a boca e o queixo há uma grande tensão, enorme. Maior ainda, porém, é a serenidade do seu olhar expectante.
obrigada por este post.
ResponderEliminarNada, eu é que agradeço!
EliminarCordialmente,
António Araújo