Margarethe von Trotta, Hannah Arendt (2012)
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Num dos seus primeiros textos sobre o fim da II Guerra
Mundial, escreveu Hannah Arendt em 1945: “O problema do mal será a questão
fundamental da vida intelectual do pós-guerra na Europa — tal como a morte se
tornou fundamental no fim da última guerra [1914-1918].” É um tema que nunca
abandonou.
O
filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreia hoje [3 de
Outubro] em Portugal. Todo ele roda em torno da questão da “banalidade do mal”,
levantada por Arendt no seu livro-reportagem sobre o julgamento de Adolf
Eichmann em Jerusalém, em 1961, que motivou, uma “guerra civil” entre os
intelectuais de Nova Iorque e na elite judaica, dando lugar a infindos debates
que ainda hoje se prolongam. Por isso o título inicial do filme era A
Controvérsia.
Judia
alemã, doutorada em Filosofia, Hannah Arendt (1906-1975) abandonou a Alemanha
logo a seguir à tomada do poder por Hitler e refugiou-se em Paris. Internada num
campo pela França de Vichy em 1941, foge e, com o segundo marido, Heinrich
Blücher, alcança os Estados Unidos, passando em Lisboa.
Em
1961, era já uma reconhecida e influente pensadora. As suas primeiras grandes
obras – A Origem dos Totalitarismos e A Condição Humana – datam de 1951
e 1958. Quando Eichmann foi raptado na Argentina pela Mossad, em 1960, e levado
para Israel a fim de ser julgado, ofereceu-se ao New Yorker para cobrir
o processo. Pediu uma bolsa à Fundação Rockfeller e assistiu ao julgamento
durante três semanas. As primeiras reportagens foram publicadas no jornal e
depois reunidas e completadas no livro Eichmann in Jerusalem: A Report on
the Banality of Evil (1963).
Justificou
a assim a partida para Jerusalém: “(...) Tenho de fazer a cobertura deste
processo, falhei Nuremberga, nunca vi esta gente em carne e osso e será
provavelmente a única ocasião que terei para o fazer.”
As reportagens na New
Yorker suscitaram imediatamente paixões e mal-entendidos. Ela iluminava de
uma forma inédita o problema do mal. Não via em Eichmann um ser patológico ou
demoníaco, um “perverso sádico”, mas um homem “terrível e aterrorizadoramente
normal”.
Que
é o mal?
Arendt
põe em causa a nossa noção tradicional do mal e não teme romper com a visão
convencional. Pessoas vulgares, que em circunstâncias normais não praticariam
crimes ou seriam respeitáveis, tornam-se monstros noutras circunstâncias.
No filme, diz pela voz
da actriz Barbara Sukowa: “O pior mal no mundo é o cometido por pessoas
vulgares, é o mal cometido sem motivos, sem convicções, simplesmente por
pessoas ordinárias que renunciaram à sua dignidade humana.”
“Nunca escrevi que
defendia Eichmann, tentei estabelecer o laço entre a mediocridade chocante do
homem com o horror dos factos. (...) Trata-se de compreender, não de perdoar.”
Foi acusada de
“banalizar o mal” e de relativizar a responsabilidade de Eichmann, por ter sido
iludida pela defesa do burocrata nazi que organizou a “solução final”. Ele
seria um fanático e não um medíocre. Historiadores, como a israelita Deborah
Lipstadt ou o britânico David Cesarani criticaram a sua tese. Eichmann não era
“um funcionário cinzento nem um burocrata-robot”, escreveu Cesarani. As novas
investigações “revelam a medida em que Arendt se enganou sobre Eichmann”,
sublinhou Lipstadt. “Ele revela um pleno apoio e uma plena compreensão da
ideologia nazi.”
Os
alemães “vulgares”
O
problema é que Arendt nunca escreveu que Eichmann se limitou a obedecer a
ordens. Sublinhou até que Eichmann tinha enorme orgulho na deportação dos
judeus e chegou a ultrapassar as ordens de Himmler para suspender as
deportações em 1944, quando a Alemanha nazi estava prestes a perder a guerra.
O historiador
Christopher Browning lançou uma luz nova sobre “a banalidade do mal”. Publicou em 1992 o livro Ordinary Men. Reserve
Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. É
uma monografia sobre um único batalhão de polícia alemão. Estes homens
massacraram 38 mil judeus na Polónia. Não eram especialistas treinados das SS,
eram homens vulgares, chefes de família, muitos deles quadragenários,
reservistas enviados para “manter a ordem” por incapacidade para o combate. Não
eram racistas fanáticos. Por que se tornaram carrascos? Um deles declarou ao
historiador décadas depois: “Esforcei-me, e consegui, apenas disparar sobre
crianças. Acontece que as mães levavam os filhos pela mão. Então, o meu vizinho
matava a mãe e eu a criança que lhe pertencia, dizendo-me que nenhuma criança
sobrevive sem a mãe.”
Numa recensão de novos
livros sobre os crimes de “alemães vulgares”, Browning exprime dúvidas sobre a
justeza do olhar de Arendt sobre Eichmann, mas não sobre o conceito: “Arendt
forjou um importante conceito embora com um exemplo incorrecto.”
Hannah Arendt nunca
desesperou. Escreveu em Eichmann em Jerusalém: “Politicamente falando,
acontece que em condições de terror a maior parte das pessoas sujeitar-se-ão,
mas algumas não o farão, tal como a lição dos países aos quais a Solução
Final foi proposta é a de que pode acontecer em quase todos os lugares, mas não
acontecerá em todos. Humanamente falando, nada mais é exigido, e nada mais pode
ser razoavelmente pedido, para que este planeta permaneça um lugar adequado
para a habitação humana.”
O debate da “banalidade
do mal” foi, e é, muito mais complicado. Remeto o leitor para o excelente e
rigoroso prefácio da tradução portuguesa (Eichmann em Jerusalém. Uma
reportagem sobre a banalidade do mal, Edições Tenacitas, 2003), assinado
por António de Araújo e Miguel Nogueira de Brito. Está disponível no blogue Malomil.
O
olhar de Lanzmann
Por uma curiosa coincidência vai estar em Lisboa dentro de
dias o cineasta e escritor francês Claude Lanzmann, autor do genial Shoah
(1985), filme-reportagem que mudou o nosso modo de olhar a tragédia judaica.
Vem participar numa retrospectiva da sua obra na Cinemateca e numa mostra de
cinema francês organizada pelo Instituto Francês de Portugal (IFP), entre 10 e
20 de Outubro. Vem também apresentar o seu novo filme, Le Dernier des
Injustes — uma alusão ao Último Justo, de André Shwartz-Bart — que será
estreado comercialmente este ano. A obra será também editada em DVD. O filme é
produto de anos de entrevistas com Benjamin Murmelstein, grande rabino de
Viena, nomeado por Eichmann como decano ou ancião do Conselho Judaico do gueto
de Theresienstadt — a “vitrina” dos campos de concentração para mostrar aos
estrangeiros. É o filme que encerrará o seu ciclo sobre a Shoah. Foi recebido
em Cannes como um “grande filme histórico”.
Um dos temas de
interesse é o facto de ele tocar o segundo ponto da polémica sobre o livro de
Arendt: a crítica à passividade das comunidades judaicas europeias e à
colaboração dos conselhos judaicos com os nazis. Arendt foi acusada de culpar
os judeus pelo seu próprio extermínio. Uma capa do Nouvel Observateur,
em 1966, titulava: “Hannah Arendt é nazi?” Eram acusações delirantes a que
Arendt antecipadamente respondera: “Não havia possibilidade de resistir, mas
havia uma possibilidade de não fazer nada.” De resto, a sua posição sempre foi
clara: “Quando alguém é atacado na qualidade de judeu, é enquanto judeu que
deve defender-se.”
Lanzmann é o epígono
dos críticos de Arendt. Le Dernier des Injustes é em parte uma crítica a
Eichmann em Jerusalém, sobre a “banalidade do mal” e sobre o papel dos
conselhos judaicos. Lanzmann começou a sua obra sobre a Shoah, em 1975, o ano
em que Arendt morreu.
A
interrogação, essa permanece: o que é o Mal, o do nosso tempo?
Jorge Almeida Fernandes
[originalmente publicado no jornal Público, de 3/5/2013]
Falta a "banalidade" da repressão sob as ditaduras do proletariado.Iejov,Beria,Pol Pot,Mao...Desde as teses de Marx e Lenine que essa repressão sangrenta é "normal".
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