sábado, 5 de outubro de 2013

O que é o Mal?

 
 
 
 
 
 
 

Margarethe von Trotta, Hannah Arendt (2012)
 
 
 
 
 
A estreia de Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, e a apresentação em Outubro do Dernier des Injustes, de Claude Lanzmann, ilustram duas visões opostas das tragédias do século XX 
Num dos seus primeiros textos sobre o fim da II Guerra Mundial, escreveu Hannah Arendt em 1945: “O problema do mal será a questão fundamental da vida intelectual do pós-guerra na Europa — tal como a morte se tornou fundamental no fim da última guerra [1914-1918].” É um tema que nunca abandonou.
O filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreia hoje [3 de Outubro] em Portugal. Todo ele roda em torno da questão da “banalidade do mal”, levantada por Arendt no seu livro-reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961, que motivou, uma “guerra civil” entre os intelectuais de Nova Iorque e na elite judaica, dando lugar a infindos debates que ainda hoje se prolongam. Por isso o título inicial do filme era A Controvérsia.
Judia alemã, doutorada em Filosofia, Hannah Arendt (1906-1975) abandonou a Alemanha logo a seguir à tomada do poder por Hitler e refugiou-se em Paris. Internada num campo pela França de Vichy em 1941, foge e, com o segundo marido, Heinrich Blücher, alcança os Estados Unidos, passando em Lisboa.
Em 1961, era já uma reconhecida e influente pensadora. As suas primeiras grandes obras – A Origem dos Totalitarismos e A Condição Humana – datam de 1951 e 1958. Quando Eichmann foi raptado na Argentina pela Mossad, em 1960, e levado para Israel a fim de ser julgado, ofereceu-se ao New Yorker para cobrir o processo. Pediu uma bolsa à Fundação Rockfeller e assistiu ao julgamento durante três semanas. As primeiras reportagens foram publicadas no jornal e depois reunidas e completadas no livro Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (1963).
Justificou a assim a partida para Jerusalém: “(...) Tenho de fazer a cobertura deste processo, falhei Nuremberga, nunca vi esta gente em carne e osso e será provavelmente a única ocasião que terei para o fazer.”
As reportagens na New Yorker suscitaram imediatamente paixões e mal-entendidos. Ela iluminava de uma forma inédita o problema do mal. Não via em Eichmann um ser patológico ou demoníaco, um “perverso sádico”, mas um homem “terrível e aterrorizadoramente normal”.

 



 
 
 
 
Que é o mal?
Arendt põe em causa a nossa noção tradicional do mal e não teme romper com a visão convencional. Pessoas vulgares, que em circunstâncias normais não praticariam crimes ou seriam respeitáveis, tornam-se monstros noutras circunstâncias.
No filme, diz pela voz da actriz Barbara Sukowa: “O pior mal no mundo é o cometido por pessoas vulgares, é o mal cometido sem motivos, sem convicções, simplesmente por pessoas ordinárias que renunciaram à sua dignidade humana.”
“Nunca escrevi que defendia Eichmann, tentei estabelecer o laço entre a mediocridade chocante do homem com o horror dos factos. (...) Trata-se de compreender, não de perdoar.”
Foi acusada de “banalizar o mal” e de relativizar a responsabilidade de Eichmann, por ter sido iludida pela defesa do burocrata nazi que organizou a “solução final”. Ele seria um fanático e não um medíocre. Historiadores, como a israelita Deborah Lipstadt ou o britânico David Cesarani criticaram a sua tese. Eichmann não era “um funcionário cinzento nem um burocrata-robot”, escreveu Cesarani. As novas investigações “revelam a medida em que Arendt se enganou sobre Eichmann”, sublinhou Lipstadt. “Ele revela um pleno apoio e uma plena compreensão da ideologia nazi.”

 
Adolf Eichmann


 
 
 
Os alemães “vulgares”
O problema é que Arendt nunca escreveu que Eichmann se limitou a obedecer a ordens. Sublinhou até que Eichmann tinha enorme orgulho na deportação dos judeus e chegou a ultrapassar as ordens de Himmler para suspender as deportações em 1944, quando a Alemanha nazi estava prestes a perder a guerra.
O historiador Christopher Browning lançou uma luz nova sobre “a banalidade do mal”. Publicou em 1992 o livro Ordinary Men. Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. É uma monografia sobre um único batalhão de polícia alemão. Estes homens massacraram 38 mil judeus na Polónia. Não eram especialistas treinados das SS, eram homens vulgares, chefes de família, muitos deles quadragenários, reservistas enviados para “manter a ordem” por incapacidade para o combate. Não eram racistas fanáticos. Por que se tornaram carrascos? Um deles declarou ao historiador décadas depois: “Esforcei-me, e consegui, apenas disparar sobre crianças. Acontece que as mães levavam os filhos pela mão. Então, o meu vizinho matava a mãe e eu a criança que lhe pertencia, dizendo-me que nenhuma criança sobrevive sem a mãe.”
Numa recensão de novos livros sobre os crimes de “alemães vulgares”, Browning exprime dúvidas sobre a justeza do olhar de Arendt sobre Eichmann, mas não sobre o conceito: “Arendt forjou um importante conceito embora com um exemplo incorrecto.”
Hannah Arendt nunca desesperou. Escreveu em Eichmann em Jerusalém: “Politicamente falando, acontece que em condições de terror a maior parte das pessoas sujeitar-se-ão, mas algumas não o farão, tal como a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é a de que pode acontecer em quase todos os lugares, mas não acontecerá em todos. Humanamente falando, nada mais é exigido, e nada mais pode ser razoavelmente pedido, para que este planeta permaneça um lugar adequado para a habitação humana.”
O debate da “banalidade do mal” foi, e é, muito mais complicado. Remeto o leitor para o excelente e rigoroso prefácio da tradução portuguesa (Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal, Edições Tenacitas, 2003), assinado por António de Araújo e Miguel Nogueira de Brito. Está disponível no blogue Malomil.
 
 


 
Claude Lanzmann


 
O olhar de Lanzmann
Por uma curiosa coincidência vai estar em Lisboa dentro de dias o cineasta e escritor francês Claude Lanzmann, autor do genial Shoah (1985), filme-reportagem que mudou o nosso modo de olhar a tragédia judaica. Vem participar numa retrospectiva da sua obra na Cinemateca e numa mostra de cinema francês organizada pelo Instituto Francês de Portugal (IFP), entre 10 e 20 de Outubro. Vem também apresentar o seu novo filme, Le Dernier des Injustes — uma alusão ao Último Justo, de André Shwartz-Bart — que será estreado comercialmente este ano. A obra será também editada em DVD. O filme é produto de anos de entrevistas com Benjamin Murmelstein, grande rabino de Viena, nomeado por Eichmann como decano ou ancião do Conselho Judaico do gueto de Theresienstadt — a “vitrina” dos campos de concentração para mostrar aos estrangeiros. É o filme que encerrará o seu ciclo sobre a Shoah. Foi recebido em Cannes como um “grande filme histórico”.
Um dos temas de interesse é o facto de ele tocar o segundo ponto da polémica sobre o livro de Arendt: a crítica à passividade das comunidades judaicas europeias e à colaboração dos conselhos judaicos com os nazis. Arendt foi acusada de culpar os judeus pelo seu próprio extermínio. Uma capa do Nouvel Observateur, em 1966, titulava: “Hannah Arendt é nazi?” Eram acusações delirantes a que Arendt antecipadamente respondera: “Não havia possibilidade de resistir, mas havia uma possibilidade de não fazer nada.” De resto, a sua posição sempre foi clara: “Quando alguém é atacado na qualidade de judeu, é enquanto judeu que deve defender-se.”
Lanzmann é o epígono dos críticos de Arendt. Le Dernier des Injustes é em parte uma crítica a Eichmann em Jerusalém, sobre a “banalidade do mal” e sobre o papel dos conselhos judaicos. Lanzmann começou a sua obra sobre a Shoah, em 1975, o ano em que Arendt morreu.
A interrogação, essa permanece: o que é o Mal, o do nosso tempo?
 
 
Jorge Almeida Fernandes
 
[originalmente publicado no jornal Público, de 3/5/2013]
 
 
 

1 comentário:

  1. Falta a "banalidade" da repressão sob as ditaduras do proletariado.Iejov,Beria,Pol Pot,Mao...Desde as teses de Marx e Lenine que essa repressão sangrenta é "normal".

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