segunda-feira, 23 de março de 2020

A coisa vista daqui.


 
 
# 1.
Já todos percebemos que esta é a maior experiência existencial das nossas vidas. E por isso anda tudo tão aterrado. Pelo menos no Ocidente, fomos programados para viver a vida e para ganhá-la, não para ter experiências existenciais. Sobretudo, experiências existenciais como esta.  
 
# 2.
A comunidade de medo que agora se gerou não visa tanto a sobrevivência de cada qual, mas de um estilo de vida que intuímos estar ameaçado para sempre. Valorizamos mais esse estilo de vida do que as nossas próprias vidas, individualmente consideradas. A “guerra” de que agora se fala é travada em nome de um patriotismo do estilo de vida, o que, em si mesmo, tem muito de desprezível.  
 
# 3.
Tudo isto obrigou a uma momentânea e repentina suspensão da globalização, ou de uma parte significativa dela.
 
# 4.
Contudo, é singular que o vírus tenha tido origem na potência que mais irá beneficiar dele, o que já começa a dar azo às teorias da conspiração que sempre emergem nestas alturas de não-pensamento.  
 
# 5.
A superabundância de informação – científica, analítica, humorística – e a sua circulação frenética são óbvios reflexos de medo, e uma reacção instintiva a ele. Mas também um sinal de que muitos ainda não se conformaram com o tempo suspenso do confinamento, que querem continuar a vivê-lo ao ritmo alucinante do pré-hecatombe. Trocar centenas ou milhares de mensagens por dia não revela apenas uma obsessão em comunicar: é também, ou acima de tudo, uma tentativa desesperada e vã de viver o tempo ao modo acelerado do pré-quarentena. Por ora, o grande gesto de resistência tem sido o da resistência ao repouso.
Mas, ao fim de duas semanas ou três, deixaremos de esbracejar.
 
# 6.
Como sempre sucede nas grandes tragédias eventuais, sujeitas a uma álea incognoscível e secreta (v.g. cancro), pressentimos que muitos irão morrer, mas até ao fim alimentamos a crença de que nada disso será connosco.
 
# 7.
A ansiedade detecta-se não tanto na vivência da quarentena quanto na antecipação do seu fim muitos anunciam já o que irão fazer quando tudo passar, na suplicante expectativa de que tal ocorrerá em breve.
Os mil e um projectos para o pós-Covid, e mesmo a temerária esperança num renascimento mais saudável da nossa civilização, têm sido formulados em jeito de wishful thinking ou de prédica laica. Tudo não passa, porém, de uma tentativa desesperada e vã – mais uma – de iludir o tempo suspenso do confinamento (ao fim de duas ou três semanas, repete-se, deixaremos de esbracejar.)
 
 
 
 
 
 

1 comentário:

  1. Porque não pára de esbracejar agora?
    Não se incomode,a Terra vai continuar na sua órbita,e nós,que somos feitos dos mesmos materiais que as estrelas, continuaremos este destino perene de fazermos parte do Universo,sob outra forma,está claro!
    Sob outra forma? Pois que dúvida! E siga a dança !

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