André Kertész
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A abstenção
de 47,4% nas eleições autárquicas do último domingo, 29 de outubro de 2013, tem
suscitado reflexões mais ou menos ritualizadas sobre a matéria que, como é
hábito, oscilam entre o desânimo e a revolta contra os partidos políticos,
atingindo mesmo por vezes o sistema democrático. Não me revejo nessas
inquietações. A abstenção eleitoral (com esses ou outros valores) está longe de
ser problemática para os equilíbrios dos sistemas democráticos e das sociedades
livres. Logo, preocupantes são as potenciais consequências do que se tem dito e
escrito sobre o assunto.
Em primeiro
lugar, abster-se de participar nos processos políticos, em particular nos
processos eleitorais, sem que dessa atitude resultem remorsos ou complexos de
culpa, é um dos pressupostos que diferencia as democracias dos regimes
autoritários ou totalitários. Nos últimos, a participação dos indivíduos nos
processos de legitimação do poder processa-se numa atmosfera compulsiva,
massificada, totalitária. Em sentido contrário, democracias que não se habituam
a conceber a abstenção eleitoral como constitutiva do sistema democrático
manifestam sintomas de tentações ditatoriais. Escrito noutros termos, legitimar
sem ambiguidades a abstenção eleitoral significa legitimar a própria ideia de
democracia contemporânea.
Em segundo
lugar, a participação saudável e responsável dos indivíduos na vida cívica está
longe de se esgotar nos processos políticos, bem como os processos políticos
não são redutíveis aos processos eleitorais. A verdade é que, de forma
explícita ou subliminar, muitos dos reparos feitos à abstenção eleitoral ou
minimizam os significados do jogo democrático ou acabam por diminuir o sentido
de cidadania dos que não votam. Ao hipervalorizar a participação eleitoral
deixamos latente a desvalorização de outras modalidades de participação cívica
talvez bem mais decisivas para o equilíbrio da vida social, em relação às quais
não criamos mecanismos de pressão social para que elas se reforcem precisamente
por causa da hipervalorização da esfera política enquanto referente regulador
da vida social. Reporto-me, por exemplo, à frágil participação dos indivíduos
em ações de solidariedade social ou de voluntariado em prol de carenciados ou
necessitados ou noutras causas socialmente relevantes, por muito que tenham
valor simbólico. As últimas modalidades de participação cívica podem ser bem
mais decisivas do que a ato de colocar o voto na urna, ainda que o último
comportamento tenha significado social.
André Kertész
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Em terceiro
lugar, como bem explicou Albert Hirschman (Exit, voice & loyalty,
1971), abster-se da participação formal em momentos pontuais da vida de uma
dada instituição ou organismo, isto é, limitar-se a seguir rotinas quotidianas
ou mesmo estar quieto e calado são também modalidades de participação social
tão importantes quanto intervir de forma ativa, formal, participativa, no caso
através do voto. Em inúmeras circunstâncias da vida das instituições (as
sociedades são essencialmente constituídas por instituições) a primeira atitude
pode ser bem mais valiosa para os equilíbrios da vida social do que o ativismo
permanentemente interventivo, exibido ou quantificável. É precisamente o exit
(estar quieto e calado; tirar o corpo de fora; fingir que
não é nada com ele) que dá margem para que outros atuem (a voice ou o
uso da voz crítica), sem que os últimos sintam uma pressão constante ou
generalizada que pode ser disruptiva nos casos em que a neutralidade genuína
resulta inexistente ou desvalorizada. Dito de maneira coloquial, é o silêncio
voluntário e consciente de muitos que torna significativa a fala de poucos.
Tanto na sala de aula, quanto na vida social. A liberdade, para que possa ser
partilhada por todos, depende também (ou depende mesmo muito) dos que voluntariamente
sabem estar quietos e calados, mas por isso mesmo são socialmente decisivos. Um
sistema social não sobrevive com qualidade se uma parte dos seus membros (maior
ou menor) não cultivar o silêncio, a quietude, a introspeção, o recato voluntários
e conscientes, desde que a sociedade lhes garanta, sem ambiguidades, o direito
pleno de intervirem com legitimidade quando bem entenderem. Aplicada essa
lógica ao modo como os debates e opiniões sobre a abstenção eleitoral são em
geral conduzidos, estes acabam por remeter a abstenção eleitoral para fora da
liberdade e para fora da democracia.
André Kertész
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Em quarto
lugar, seguindo o mesmo Albert Hirschman, a abstenção eleitoral é uma almofada
da democracia, uma espécie de válvula de segurança mobilizável em situações
sentidas como de abalos graves, válvula que permite ultrapassar esses momentos
sem colocar em causa a democracia. Por isso mesmo o direito de votar deve ser
sempre universal e inquestionável (é isso que é decisivo assegurar) para que os
indivíduos possam ativar esse direito quando sentirem que, de facto, a sua vida
ou a vida da sociedade em que se inserem depende do seu voto. Mesmo que ninguém
lhes explique qual foi, é ou será tal momento, os indivíduos são
suficientemente inteligentes e possuem intuições apuradas para entenderem os
tempos em que vivem. A questão é que os momentos verdadeiramente relevantes não
são determináveis pelos discursos dos que dominam o espaço público opinativo,
mas antes percecionados por cada indivíduo. Nesta matéria, o sentido de
responsabilidade dos cidadãos será tanto mais fiável quanto mais a
escolarização for massificada e de qualidade, num contexto em que os órgãos de
comunicação social sejam livres e de acesso massificado. Daí que o maior
problema resida na atitude normativa dos que dominam a opinião pública por
estarem abusivamente sempre a considerar que esse momento chegou ou que
permanece latente cada vez que se vai a votos. Tal atitude explica-se pela
confusão entre a sensibilidade de alguns segmentos sociais, em particular do
segmento social ao qual se pertence, com a sensibilidade da generalidade dos
demais indivíduos. Quanto mais a participação nos processos políticos se
apresenta como alfa e ómega da existência social de determinados sujeitos,
maior a propensão para julgar os outros pelo prisma do seu grupo de pertença.
Tal imposição de universos de sentido politizados próprios aos outros pode
paradoxalmente contribuir para agravar a abstenção eleitoral em contextos em
que a hipersensibilidade para a esfera política de alguns segmentos sociais
impede que os ciclos eleitorais sejam regulares, com princípio, meio e fim
antecipáveis e sedimentados ao longo do tempo, o tempo das gerações. A vida
social vive de ciclos previsíveis, de hábitos regulares. Essa é a norma do que
vai ganhando sentido social consistente. Se o ciclo eleitoral é dissonante por
ser mais imprevisível do que os habituais ciclos da vida (e.g. nascer,
morrer, estações do ano, época agrícola), é aquele que está mal, desregulado, e
não a vida social. Portanto, o uso e abuso do apelo a eleições em qualquer
momento do ciclo eleitoral pode ter efeitos paradoxais em relação às intenções
originárias, como bem considerou Max Weber.
André Kertész
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Em quinto
lugar, viciados que estamos no termo crise não prestamos atenção ao que ele
pode efetivamente significar para a vida quotidiana. Agora, no passado e
certamente no futuro as crises atingiram, atingem e atingirão fortemente
determinados segmentos sociais, bem como condicionaram, condicionam e
condicionarão fortemente a sensibilidade política de alguns segmentos sociais.
Todavia, além de existir sempre o extremo oposto, nada nos garante que a
perceção do forte impacto da crise seja válida para a maioria dos indivíduos
ou, sendo válida, nada nos garante que os indivíduos atribuam um mesmo
significado à noção de crise. Sentiremos que, numa sociedade, a noção de
crise atingiu uma dada dimensão política aos olhos do senso comum em função dos
números da abstenção. Ou seja, quanto mais a abstenção eleitoral diminuir,
tanto maior a dimensão política atribuída pelos indivíduos comuns à ideia de
crise. Nesta perspetiva, os valores da abstenção eleitoral podem estar na razão
inversa do peso que os indivíduos comuns atribuem ao fator político como
condicionante dos destinos da comunidade a que pertencem. O que acontece é que
nos viciámos no pressuposto contrário. Assumimos aprioristicamente que a crise
é inquestionável e grave, bem como que ela é também inquestionavelmente
política, depois generalizamos estes pressupostos. O passo seguinte é o de nos
indignarmos com o que tomamos por elevada falta de comparência de concidadãos
nas urnas. De permeio não colocamos algumas hipóteses que devem ser colocadas.
Uma hipótese: para uma parte dos indivíduos a crise pode não ser assim tão
grave quanto o espaço mediático faz crer, espaço mediático que muitos
consideram algo esquizofrénico, mas depois não tiram as devidas consequências.
Outra hipótese: a crise ser percecionada como grave mesmo pelos abstencionistas
(ou parte deles), mas não ser considerada como essencialmente política nas suas
causas, nas soluções propostas ou em ambas porque esses indivíduos podem
conferir à crise uma outra natureza ou substância não-política. Seja ela
económica, cultural, de comportamentos sociais, religiosa, uma fatalidade do
destino ou de outra natureza. E mesmo considerando que a crise é percecionada
como tendo uma forte dimensão política, os indivíduos podem antecipar que a
solução não passa por aquela eleição (e.g. autárquica), mas por uma
outra (e.g. legislativa). Desse modo, importa ter em atenção que uma
parte da solução dos problemas ou bloqueios da vida social não remete para a
esfera política, mas noutras esferas. Essas outras esferas têm-se mantido pouco
visíveis ou minimizadas precisamente porque a esfera política exagera na
importância a que se atribui a ela mesma enquanto referente regulador da vida
social. E fá-lo por monopolizar a comunicação social. Isto é, vivemos dominados
por tentações imperialistas do político face ao comunitário, ao
cultural, ao comportamental, ao criativo, ao religioso, entre outros. Significa
que a não participação eleitoral (ou a abstenção) pode e deve ser interpretada
também como um sinal da necessidade de abertura do sistema de dominação social
para além da política e não significar necessariamente uma necessidade de
renovação dessa mesma esfera política. Por muitas reformas políticas que se
façam, a política jamais sairá do seu âmbito. E se parte importante da solução
dos bloqueios ou problemas sociais estiver para além do político ou mesmo
substantivamente fora do político tal como habitualmente o entendemos?
Em sexto
lugar e por isso mesmo, o século XX (o dito século do povo) radicalizou a
importância da dimensão política na regulação da vida das sociedades. E isso
foi conquistado à custa da perda da importância relativa de outras dimensões de
regulação da vida social que sempre existiram. Por exemplo, dos mecanismos
comunitários, religiosos, familiares, associativos, ao nível das relações
quotidianas. Nesse sentido, a abstenção eleitoral do século XXI pode ser um
sintoma que nos alerta para o facto de o nosso pensamento continuar preso
algures no século XX e, por isso, desajustado do mundo de hoje. Significa que
resistimos em perceber o quanto as sociedades mudaram. Ainda que vocalizemos o
inverso as práticas desmentem. O debate sobre a abstenção eleitoral revela-se
um bom exemplo.
André Kertész
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Em sétimo
lugar, da esquerda à direita do espectro partidário as forças políticas, numa
atitude sempre em crescendo, há décadas que reclamam suporte académico ou
técnico como processo de legitimação das suas ações, propostas ou intervenções
(os estudos). Se assim é, não é absurdo supor que a abstenção eleitoral
tenha também a ver com interpretações de senso comum no sentido da
inevitabilidade de uma parte importante do sentido da ação governativa, a que
assenta em razões técnicas, o que relativiza a perceção do fator
político enquanto condicionante do destino das sociedades. Os agentes políticos
que vão por este caminho (todos) são os mesmos que se manifestam incomodados
com a abstenção eleitoral. Ou seja, o reforço da abstenção eleitoral, pelo
menos no domínio das hipóteses e pelo menos em parte, pode resultar tanto do
reforço do sentimento de liberdade, quanto do reforço da qualidade técnica
(académica ou científica) da governação. Estaremos dispostos a sacrificar isso
em nome de uma maior participação eleitoral?
Em suma, considero
que nem a democracia está em crise (ela é uma reinvenção permanente, o que pode
querer dizer uma crise permanente), nem que o sistema partidário está em
falência, embora necessite de ir reencontrando o seu lugar no século XXI. Temo,
no entanto, que a superficialidade de certas análises sobre a abstenção
eleitoral motive mudanças substantivas no funcionamento das estruturas políticas
de dominação que inevitavelmente conduzirão a um sistema bem menos equilibrado.
É verosímil considerar que as nossas sociedades e as suas instituições têm sido
muito mais vítimas de utopias ativistas, dos participativos, dos reformadores
apressados convictos (basta olhar para o sistema de ensino) do que daqueles que
muitas vezes optam por estar quietos e calados, dos que seguem as suas rotinas
e responsabilidades quotidianas, dos que, com as suas atitudes, sabem dar
espaço para que a sociedade e o sistema político respirem com alguma
tranquilidade. Sou um defensor da abstenção eleitoral? Sou um crítico da
abstenção eleitoral? Nem uma coisa nem outra. De qualquer modo, não me recordo
de ter deixado de ir votar desde que ganhei esse direito.
Gabriel Mithá Ribeiro
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