quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Abstenção eleitoral: glorificar o óbvio.




André Kertész

 

 

A abstenção de 47,4% nas eleições autárquicas do último domingo, 29 de outubro de 2013, tem suscitado reflexões mais ou menos ritualizadas sobre a matéria que, como é hábito, oscilam entre o desânimo e a revolta contra os partidos políticos, atingindo mesmo por vezes o sistema democrático. Não me revejo nessas inquietações. A abstenção eleitoral (com esses ou outros valores) está longe de ser problemática para os equilíbrios dos sistemas democráticos e das sociedades livres. Logo, preocupantes são as potenciais consequências do que se tem dito e escrito sobre o assunto.

Em primeiro lugar, abster-se de participar nos processos políticos, em particular nos processos eleitorais, sem que dessa atitude resultem remorsos ou complexos de culpa, é um dos pressupostos que diferencia as democracias dos regimes autoritários ou totalitários. Nos últimos, a participação dos indivíduos nos processos de legitimação do poder processa-se numa atmosfera compulsiva, massificada, totalitária. Em sentido contrário, democracias que não se habituam a conceber a abstenção eleitoral como constitutiva do sistema democrático manifestam sintomas de tentações ditatoriais. Escrito noutros termos, legitimar sem ambiguidades a abstenção eleitoral significa legitimar a própria ideia de democracia contemporânea.

Em segundo lugar, a participação saudável e responsável dos indivíduos na vida cívica está longe de se esgotar nos processos políticos, bem como os processos políticos não são redutíveis aos processos eleitorais. A verdade é que, de forma explícita ou subliminar, muitos dos reparos feitos à abstenção eleitoral ou minimizam os significados do jogo democrático ou acabam por diminuir o sentido de cidadania dos que não votam. Ao hipervalorizar a participação eleitoral deixamos latente a desvalorização de outras modalidades de participação cívica talvez bem mais decisivas para o equilíbrio da vida social, em relação às quais não criamos mecanismos de pressão social para que elas se reforcem precisamente por causa da hipervalorização da esfera política enquanto referente regulador da vida social. Reporto-me, por exemplo, à frágil participação dos indivíduos em ações de solidariedade social ou de voluntariado em prol de carenciados ou necessitados ou noutras causas socialmente relevantes, por muito que tenham valor simbólico. As últimas modalidades de participação cívica podem ser bem mais decisivas do que a ato de colocar o voto na urna, ainda que o último comportamento tenha significado social.
 
 
André Kertész
 
 

Em terceiro lugar, como bem explicou Albert Hirschman (Exit, voice & loyalty, 1971), abster-se da participação formal em momentos pontuais da vida de uma dada instituição ou organismo, isto é, limitar-se a seguir rotinas quotidianas ou mesmo estar quieto e calado são também modalidades de participação social tão importantes quanto intervir de forma ativa, formal, participativa, no caso através do voto. Em inúmeras circunstâncias da vida das instituições (as sociedades são essencialmente constituídas por instituições) a primeira atitude pode ser bem mais valiosa para os equilíbrios da vida social do que o ativismo permanentemente interventivo, exibido ou quantificável. É precisamente o exit (estar quieto e calado; tirar o corpo de fora; fingir que não é nada com ele) que dá margem para que outros atuem (a voice ou o uso da voz crítica), sem que os últimos sintam uma pressão constante ou generalizada que pode ser disruptiva nos casos em que a neutralidade genuína resulta inexistente ou desvalorizada. Dito de maneira coloquial, é o silêncio voluntário e consciente de muitos que torna significativa a fala de poucos. Tanto na sala de aula, quanto na vida social. A liberdade, para que possa ser partilhada por todos, depende também (ou depende mesmo muito) dos que voluntariamente sabem estar quietos e calados, mas por isso mesmo são socialmente decisivos. Um sistema social não sobrevive com qualidade se uma parte dos seus membros (maior ou menor) não cultivar o silêncio, a quietude, a introspeção, o recato voluntários e conscientes, desde que a sociedade lhes garanta, sem ambiguidades, o direito pleno de intervirem com legitimidade quando bem entenderem. Aplicada essa lógica ao modo como os debates e opiniões sobre a abstenção eleitoral são em geral conduzidos, estes acabam por remeter a abstenção eleitoral para fora da liberdade e para fora da democracia.
 
 
André Kertész
 

Em quarto lugar, seguindo o mesmo Albert Hirschman, a abstenção eleitoral é uma almofada da democracia, uma espécie de válvula de segurança mobilizável em situações sentidas como de abalos graves, válvula que permite ultrapassar esses momentos sem colocar em causa a democracia. Por isso mesmo o direito de votar deve ser sempre universal e inquestionável (é isso que é decisivo assegurar) para que os indivíduos possam ativar esse direito quando sentirem que, de facto, a sua vida ou a vida da sociedade em que se inserem depende do seu voto. Mesmo que ninguém lhes explique qual foi, é ou será tal momento, os indivíduos são suficientemente inteligentes e possuem intuições apuradas para entenderem os tempos em que vivem. A questão é que os momentos verdadeiramente relevantes não são determináveis pelos discursos dos que dominam o espaço público opinativo, mas antes percecionados por cada indivíduo. Nesta matéria, o sentido de responsabilidade dos cidadãos será tanto mais fiável quanto mais a escolarização for massificada e de qualidade, num contexto em que os órgãos de comunicação social sejam livres e de acesso massificado. Daí que o maior problema resida na atitude normativa dos que dominam a opinião pública por estarem abusivamente sempre a considerar que esse momento chegou ou que permanece latente cada vez que se vai a votos. Tal atitude explica-se pela confusão entre a sensibilidade de alguns segmentos sociais, em particular do segmento social ao qual se pertence, com a sensibilidade da generalidade dos demais indivíduos. Quanto mais a participação nos processos políticos se apresenta como alfa e ómega da existência social de determinados sujeitos, maior a propensão para julgar os outros pelo prisma do seu grupo de pertença. Tal imposição de universos de sentido politizados próprios aos outros pode paradoxalmente contribuir para agravar a abstenção eleitoral em contextos em que a hipersensibilidade para a esfera política de alguns segmentos sociais impede que os ciclos eleitorais sejam regulares, com princípio, meio e fim antecipáveis e sedimentados ao longo do tempo, o tempo das gerações. A vida social vive de ciclos previsíveis, de hábitos regulares. Essa é a norma do que vai ganhando sentido social consistente. Se o ciclo eleitoral é dissonante por ser mais imprevisível do que os habituais ciclos da vida (e.g. nascer, morrer, estações do ano, época agrícola), é aquele que está mal, desregulado, e não a vida social. Portanto, o uso e abuso do apelo a eleições em qualquer momento do ciclo eleitoral pode ter efeitos paradoxais em relação às intenções originárias, como bem considerou Max Weber.




André Kertész
 
 



Em quinto lugar, viciados que estamos no termo crise não prestamos atenção ao que ele pode efetivamente significar para a vida quotidiana. Agora, no passado e certamente no futuro as crises atingiram, atingem e atingirão fortemente determinados segmentos sociais, bem como condicionaram, condicionam e condicionarão fortemente a sensibilidade política de alguns segmentos sociais. Todavia, além de existir sempre o extremo oposto, nada nos garante que a perceção do forte impacto da crise seja válida para a maioria dos indivíduos ou, sendo válida, nada nos garante que os indivíduos atribuam um mesmo significado à noção de crise. Sentiremos que, numa sociedade, a noção de crise atingiu uma dada dimensão política aos olhos do senso comum em função dos números da abstenção. Ou seja, quanto mais a abstenção eleitoral diminuir, tanto maior a dimensão política atribuída pelos indivíduos comuns à ideia de crise. Nesta perspetiva, os valores da abstenção eleitoral podem estar na razão inversa do peso que os indivíduos comuns atribuem ao fator político como condicionante dos destinos da comunidade a que pertencem. O que acontece é que nos viciámos no pressuposto contrário. Assumimos aprioristicamente que a crise é inquestionável e grave, bem como que ela é também inquestionavelmente política, depois generalizamos estes pressupostos. O passo seguinte é o de nos indignarmos com o que tomamos por elevada falta de comparência de concidadãos nas urnas. De permeio não colocamos algumas hipóteses que devem ser colocadas. Uma hipótese: para uma parte dos indivíduos a crise pode não ser assim tão grave quanto o espaço mediático faz crer, espaço mediático que muitos consideram algo esquizofrénico, mas depois não tiram as devidas consequências. Outra hipótese: a crise ser percecionada como grave mesmo pelos abstencionistas (ou parte deles), mas não ser considerada como essencialmente política nas suas causas, nas soluções propostas ou em ambas porque esses indivíduos podem conferir à crise uma outra natureza ou substância não-política. Seja ela económica, cultural, de comportamentos sociais, religiosa, uma fatalidade do destino ou de outra natureza. E mesmo considerando que a crise é percecionada como tendo uma forte dimensão política, os indivíduos podem antecipar que a solução não passa por aquela eleição (e.g. autárquica), mas por uma outra (e.g. legislativa). Desse modo, importa ter em atenção que uma parte da solução dos problemas ou bloqueios da vida social não remete para a esfera política, mas noutras esferas. Essas outras esferas têm-se mantido pouco visíveis ou minimizadas precisamente porque a esfera política exagera na importância a que se atribui a ela mesma enquanto referente regulador da vida social. E fá-lo por monopolizar a comunicação social. Isto é, vivemos dominados por tentações imperialistas do político face ao comunitário, ao cultural, ao comportamental, ao criativo, ao religioso, entre outros. Significa que a não participação eleitoral (ou a abstenção) pode e deve ser interpretada também como um sinal da necessidade de abertura do sistema de dominação social para além da política e não significar necessariamente uma necessidade de renovação dessa mesma esfera política. Por muitas reformas políticas que se façam, a política jamais sairá do seu âmbito. E se parte importante da solução dos bloqueios ou problemas sociais estiver para além do político ou mesmo substantivamente fora do político tal como habitualmente o entendemos?

Em sexto lugar e por isso mesmo, o século XX (o dito século do povo) radicalizou a importância da dimensão política na regulação da vida das sociedades. E isso foi conquistado à custa da perda da importância relativa de outras dimensões de regulação da vida social que sempre existiram. Por exemplo, dos mecanismos comunitários, religiosos, familiares, associativos, ao nível das relações quotidianas. Nesse sentido, a abstenção eleitoral do século XXI pode ser um sintoma que nos alerta para o facto de o nosso pensamento continuar preso algures no século XX e, por isso, desajustado do mundo de hoje. Significa que resistimos em perceber o quanto as sociedades mudaram. Ainda que vocalizemos o inverso as práticas desmentem. O debate sobre a abstenção eleitoral revela-se um bom exemplo.



André Kertész
 
 
 

Em sétimo lugar, da esquerda à direita do espectro partidário as forças políticas, numa atitude sempre em crescendo, há décadas que reclamam suporte académico ou técnico como processo de legitimação das suas ações, propostas ou intervenções (os estudos). Se assim é, não é absurdo supor que a abstenção eleitoral tenha também a ver com interpretações de senso comum no sentido da inevitabilidade de uma parte importante do sentido da ação governativa, a que assenta em razões técnicas, o que relativiza a perceção do fator político enquanto condicionante do destino das sociedades. Os agentes políticos que vão por este caminho (todos) são os mesmos que se manifestam incomodados com a abstenção eleitoral. Ou seja, o reforço da abstenção eleitoral, pelo menos no domínio das hipóteses e pelo menos em parte, pode resultar tanto do reforço do sentimento de liberdade, quanto do reforço da qualidade técnica (académica ou científica) da governação. Estaremos dispostos a sacrificar isso em nome de uma maior participação eleitoral?

Em suma, considero que nem a democracia está em crise (ela é uma reinvenção permanente, o que pode querer dizer uma crise permanente), nem que o sistema partidário está em falência, embora necessite de ir reencontrando o seu lugar no século XXI. Temo, no entanto, que a superficialidade de certas análises sobre a abstenção eleitoral motive mudanças substantivas no funcionamento das estruturas políticas de dominação que inevitavelmente conduzirão a um sistema bem menos equilibrado. É verosímil considerar que as nossas sociedades e as suas instituições têm sido muito mais vítimas de utopias ativistas, dos participativos, dos reformadores apressados convictos (basta olhar para o sistema de ensino) do que daqueles que muitas vezes optam por estar quietos e calados, dos que seguem as suas rotinas e responsabilidades quotidianas, dos que, com as suas atitudes, sabem dar espaço para que a sociedade e o sistema político respirem com alguma tranquilidade. Sou um defensor da abstenção eleitoral? Sou um crítico da abstenção eleitoral? Nem uma coisa nem outra. De qualquer modo, não me recordo de ter deixado de ir votar desde que ganhei esse direito.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 

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