Daniel Blaufuks
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A cidade é
maravilhosa, assim dizem, e não tem como deixar de ser... A natureza é rainha.
O povo-Homem destrói, constrói, corrói e mói e Ela, sempre soberana, volta a
pôr tudo no lugar. Devem existir poucos sítios no mundo onde esta circularidade
seja tão clara. O pessoal chega com a imagem na cabeça e com o coração virgem,
porque não faz porra de ideia do que vai encontrar. Na lembrança de quem já cá
esteve apenas uma imagem: poderosa. A cidade é poderosa.
O dia estava
nublado-carregado. Uma névoa espessa trazia o horizonte bem para perto e para
baixo. Do aeroporto até Copacabana as circulares todas entupidas e o taxímetro
contando... Em redor, tudo cinzento. Armazéns abandonados, favelas, construção
caótica, emaranhado de viadutos, gigantescos muros de contentores: a selva
urbana. E por detrás da neblina, espreitando de vez quando, a silhueta do Pão
de Açúcar, a hirta figura do Redentor, e a selva: a selva poderosa.
Subimos ao 9º andar.
Flat meio-espelunca. Janelas largas em frente a mais 50 janelas de mais 50
apartamentos, com mais de 50 vidas para efabular. Velhinha sozinha e seu
caniche de pantufas; mocinha jovem que recebe cavalheiros barrigudos de shorts;
cinquentona enxuta, peito de silicone enfiado num vestidinho de lycra do
Flamengo.
Jet lag bate forte,
corpo pede descanso, mas no 9º andar com janelas de alumínio o ruído é
insuportável: gente gritando, música alta, televisões berrando, ônibus,
buzinas, carros, motos... um marulho indistinto de carburadores. Dentro de casa
tudo é pegajoso, lá fora o frenesi cinzento de Copacabana. Quero dormir e não
posso... Cidade maravilhosa...
Não tem volta, o
remédio é sair de casa e mergulhar no bulício: procurar um boteco, pedir uma
Antártica, um pratinho de quibi e relaxar. E aí vem a gentileza do empregado te
pegar no jet lag e transformá-lo em rendição. E aí começa logo a falar mais doce e
cantado e chiado, porque você já é carioca no momento em que deixa de se
preocupar.... No dia seguinte, apesar da noite buliçosa, a gente já acorda mais
tranquilo. O dia continua cinzento, chove e faz calor: seguimos para o Jardim
Botânico. Uma espécie de horta encaixada na selva, debaixo da tempestade
iminente. E ali é um concentrado de exotismo: o jasmim é jasmim vermelho e cheira
a jasmim com maracujá; as jaqueiras têm 30 metros e jacas do tamanho de
melancias; micos passeiam-se entre ramos de árvores de cujo tronco brotam,
indomáveis, flores cor-de-rosa de cheiro inebriante.
E ao final da tarde,
perto do Largo do Machado, procurámos roda de samba... A Sílvia nos guiou por
ruelas e ruelinhas até ao largo do Salvador. Tudo escuro (desligaram a
iluminação pública do largo), mas do meio do breu sobressaem umas luzinhas... e
ao fundo uma batida. São sete ou oito músicos sentados em banquinhos de
plástico, quatro ou cinco pessoas assistindo, e uma senhora setentona,
cintilando de lantejoulas, dançando no meio: já é uma roda de samba. Pouco a
pouco as pessoas vão chegando. Carioca não chega, vai chegando. Passado uma
hora já está festa montada: muito músico, muita gente dançando, muita
cervejinha rodando, tudo no breu (que a luz nunca chegou a acender) e tudo
legal. Entretanto foi chegando pessoal, amigo do amigo do amigo: encaminha-se
um grupo de dez pessoas para o Luigi pra comer pizza. Segundo alguém me
sussurrou ao ouvido, jantamos com três músicos famosos: não faço ideia quem
são. Mas conversa flui fácil, em português dos dois hemisférios,
acompanhada de umas batidas de garfo na mesa. No final convidam-nos para ir a
um espectáculo no próximo final de semana, no Centro Cultural do Banco do
Brasil.
Regressamos a casa
cedo... jet lag é impiedoso.
O coração vem cheio de
doçura e alegria. A gente se sente derreter e não é só do calor. É uma espécie
de ratificação solene: a cidade é maravilhosa, indizível porquê, mas é, e tudo
vai dar certo.
D'Arc
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