quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A jaula e a sala.

 
 
 
 
 
 
Podem ter a mesma força duas imagens, uma de um homem vestido de cor de laranja a arder dentro de uma jaula e outra, a preto e branco, de uma sala vazia meia em ruínas, com o sol a bater e a desenhar um quadrado no chão?
Antes de ontem, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante enjaulou e chegou fogo a um piloto jordano, para logo o soterrar num monte de pedras deixadas cair da pá de uma carregadora. Na Jordânia foi executada uma terrorista iraquiana que aparece amiúde fotografada também ela dentro de uma jaula. A execução da terrorista terá sido em retaliação à execução do piloto, e ambos terão estado prestes a ser trocados um pelo outro. Um acabou queimado, a outra enforcada. Olho por dente.
Voltando à jaula e ao fogo. É forte a imagem de alguém enjaulado, dentro de um cubo de grades, exposto, misto de leão, hamster e canário. Uma forma antiga de o poder exercer poder, desde a exibição dos condenados nas praças públicas medievais ao carniceiro de Rostov, o serial killer ucraniano que aparecia em tribunal dentro de uma jaula com esgares maléficos e uma camisa apalhaçada (foi executado em 1994 com um tiro atrás da orelha), às gaiolas nos corredores de certos tribunais norte-americanos enquanto os prisioneiros aguardam o julgamento. Recentemente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem voltou a considerar desumana a prática ainda comum em alguns países de se julgarem os suspeitos dentro de jaulas metálicas.
Uma jaula é mais forte do que uma cela. A cela ainda é quarto, quarto com grades, mas quarto. Jaula não é nada, é jaula apenas. E quando é colocada em campo aberto, ao ar livre, permitindo a observação trezentos e sessenta, esmaga-se a humanidade do prisioneiro. Depois há o fogo. O fogo faz dos corpos ferretes da memória. O fogo das piras de Varanasi, das fogueiras do Terreiro do Paço, das estacas de Nagasáqui, dos monges budistas, e agora do jovem jordano. O homem vira rato enjaulado, o rato vira vaca em chamas.
 
João Pina, Condor
 
 
 
 
Ontem foi lançado em Lisboa o livro Condor, com fotografias do João Pina, um dos maiores fotógrafos mundiais, que por acaso é português. O João Pina tem a língua nos olhos e é através deles que nos fala do sofrimento e das aspirações dos outros, das favelas do Rio à Primavera Árabe, tem sido publicado e exposto em tudo o que é jornal e galeria importante. No Condor fala de sofrimento e aspirações, mas de outra forma. Durante dez anos, o João andou por aí, de máquina apontada, a investigar a Operação Condor, uma operação militar secreta que nos anos setenta, nas ditaduras de direita de Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, terá varrido da terra mais de sessenta mil pessoas. No Condor João Pina não mostra pessoas enjauladas, nem labaredas a devorar corpos, nem cabeças cortadas à faca, nem electrocussões. Há caves ou salas vazias, há pessoas normais em pé no meio do campo, ou em cima de um muro. Há os locais da morte sem os mortos, as casas da tortura sem o sangue nem os gritos, mas sim com o sol a entrar, tudo tão tranquilo, apenas as paredes e os chãos, os pais, os filhos, os outros. Mas também os que escaparam, hoje mais velhos, de volta ao local do crime, para a fotografia. Há, como diz Baltasar Garzón no prefácio, "olhares tristes e de dor infinita". É mostrar sem mostrar, dizer sem falar. Pina já o tinha feito no impressionante Por Teu Livre Pensamento, sobre os presos políticos portugueses, porque estas coisas de prender e espancar estudantes não foi o Pinochet que inventou.
O que Pina consegue é fazer que uma sala vazia, onde se torturaram centenas ou milhares de homens e mulheres, não seja menos brutal do que um piloto jordano enjaulado em chamas. De certa maneira, as salas vazias de Pina, onde o sol bate, são mais fortes do que a jaula em fogo. Porque a jaula em fogo todos vemos, e não vamos esquecer, e podemos sempre rever e rever, em fotografia, em vídeo, ontem, hoje e amanhã. Mas a sala vazia, sem carrascos nem matracas, podia ter fugido por entre o tempo. Até que o Pina a apanhou, para sempre. Porque o mal que se esquece é sempre pior do que o mal que se lembra.
 
João Gama
 
(publicado no Diário de Notícias, e aqui no Malomil, com autorização do autor)
 
 
 

3 comentários:

  1. Por isso mesmo todos temos o dever da memória, para que o mal nunca se esqueça - e talvez por isso não se repita. Texto magnífico. Obrigada.
    R. F.

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  2. ...depois de ler qualquer artigo do João Taborda Gama, penso num amigo meu, numerário da Obra, que, ainda jovem, caíu numa jaula e da qual ainda não conseguiu fugir. Os guardas dizem-lhe que a providência divina não falha e que o seu mentor tem grande estátua na praça de S. Pedro.
    Todos procuram um nicho na praça.
    Malditos!
    SB

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  3. Como somos animais e tão cruéis. Tão triste.

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