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O controverso quadro de Carl Michael von Hauswolff
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Anda um vendaval por essa Europa fora à conta das declarações do artista plástico sueco Carl Michael von Hausswolff, que afirmou ter usado, numa das suas pinturas, cinzas que furtou em 1989 do crematório do campo de extermínio nazi de Majdanek, na Polónia. Como já notaram, no estrangeiro, vários comentadores e críticos de arte, trata-se provavelmente de uma tentativa obscena de autopromoção e marketing pessoal. A pintura de von Hausswolff, de facto, é tão fraquinha que bem carece deste tipo de publicidade… Se não fossem as suas declarações, ninguém teria alguma vez ouvido falar deste artista da Suécia. A exposição foi cancelada, as autoridades polacas e suecas estão a investigar o caso, ponto final.
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Le Mémorial des Martyrs de la Déportation, Paris.
Fotografia de António Araújo
Tudo isto serve de pretexto para falar um pouco da «indústria do Holocausto», título de um célebre e controverso livro de Norman G. Finkelstein, publicado entre nós pela Antígona, em 2001. É fácil, como o fez certa direita norte-americana, desqualificar liminarmente Finkelstein, com acusações ad hominem e juízos de intenções, dizendo que se trata de um self-hating jew patrocinado por Chomsky, um adversário militante do Estado de Israel alinhado com a causa palestiniana (como se vê noutras obras que publicou.) Esse é exactamente o tipo e o nível de argumentação usado por Finkelstein, num livro que, apesar do seu enviesamento polemista, constitui uma denúncia não imediatamente descartável do modo como o Holocausto tem sido utilizado como instrumento político do lobby judaico nos Estados Unidos. Simplesmente, Finkelstein, na ânsia de fazer valer os seus pontos de vista, radicaliza ao limite o discurso, usando como argumentário aquilo que, no fundo, constitui uma exposição selectiva de factos. Não há verdadeira «argumentação» (no sentido em que não se sopesam e analisam criticamente as posições contrárias), mas tão-só um «argumento», que é repisado à exaustão. Melhor: mais do que argumentar e debater, Finkelstein segue um script com um propósito militante, aquilo que de pior pode acontecer a um trabalho que queira ser intelectualmente honesto e credível. Curiosamente, na sua sanha panfletária, acaba por convocar, em seu abono, autores negacionistas, à cabeça dos quais um dos mais influentes e perigosos de todos, David Irving (para uma recensão das correntes negacionistas, cf. Michael Shermer e Alex Grobman, Deniyng History. Who says the Holocaust never happened and why do they say it?, 2000, em esp. pp. 39ss). «Nem toda a literatura revisionista (…) é totalmente inútil», diz Finkelstein. É certo que autores respeitabilíssimos e insuspeitos, como Raul Hilberg ou Arno Meyer, citaram, aqui e ali, publicações negacionistas. Mas não o fizeram com o mesmo propósito que anima Norman Finkelstein. Mostrando fazer também parte do «mercado do Holocausto» (veja-se a respectiva página pessoal, em que anuncia, logo a abrir, as suas conferências e publicita a agenda, mostrando estar disponível nas datas X ou Y para palestrar na Europa ou na Costa Oeste dos EUA), Norman Finkelstein arrasa todos os potenciais concorrentes. Na sua inflamada denúncia da «indústria do Holocausto», leva tudo à frente e ninguém é poupado, mesmo os mais insuspeitos: Daniel Goldhagen, o controverso defensor da tese de que os alemães foram «carrascos voluntários de Hitler» e denunciante das alegadas cumplicidades da Igreja Católica com o nazismo, ou Deborah Lipstadt, autora de Deniying the Holocaust (1994) e alvo de uma acção judicial intentada, sem sucesso, pelo negacionista David Irving. Sobre este caso, só é preciso ler um livro: Telling Lies About Hitler (2002), de Richard J. Evans.
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Allée des Justes, Paris.
Fotografia de António Araújo . . .
O autor de A Indústria do Holocausto encontrou um «nicho de mercado» intelectual, que não pretende partilhar com outros que defendam posições igualmente críticas, mas num estilo verbalmente mais moderado e politicamente menos engagé. Ao contrário do que acontece com os já citados ataques de alguma direita americana, sublinhe-se que este não é um argumento ad hominem nem um juízo de intenções sobre Norman Finkelstein. Na verdade, a estridência do verbo e a contundência do estilo integram, na sua essência, o «programa» de Finkelstein, não são elementos extrínsecos ou adjuvantes; de igual modo, o ataque a todos quantos lidam com a memória do Holocausto é central para o desenvolvimento do seu «programa». O receituário é simples: encontrar um chavão semanticamente poderoso («A Indústria do Holocausto»), escolher um alvo com fragilidades (Elie Wiesel; porque não fala de Jorge Semprún?), seleccionar os factos e simplificar a realidade, arranjando sempre uma «explicação» para aquilo que escapa ou não se encaixa na «tese» central (ex. as infelicíssimas declarações de Reagan em 1985, quando visitou o cemitério de Bitburg e as campas de membros das SS). E, depois, repisar, vezes sem conta, o mesmo «argumento». Repare-se, por exemplo, que Finkelstein autodefine o limiar de crítica à rememoração do Holocausto, um patamar abaixo do qual não se pode ir. Sobre o livro de Novick, escreve que «apesar de cáustico e estimulante, não é uma crítica radical». Pode-se ser «cáustico», mas isso não basta: tem de se ser «radical». E «radical» só há um: ele, Norman G. Finkelstein. Tão radical que chega a questionar a invocação que, por todo o mundo, se tem feito da memória, com o «obrigatório piscar de olho a Maurice Halbwachs», diz, referindo-se aos clássicos e pioneiros ensaios de Halbwachs sobre os quadros sociais da memória e a memória colectiva. No limite, portanto, o autor de A Indústria do Holocausto critica toda a imensa produção intelectual que se tem feito sobre as «políticas da memória», seja sobre o Holocausto, seja sobre qualquer outra realidade histórica. «Actualmente na berra da torre de marfim dos académicos, a “memória” é sem dúvida o conceito mais pobre que nos últimos tempos apareceu no meio», escreve, numa afirmação que Baltasar Garzón, por exemplo, jamais subscreveria. Com efeito, os trabalhos historiográficos sobre a memória colectiva, bem como as batalhas cívicas, políticas e até judiciais pelo «direito à memória», são tudo menos causas «de direita» nem estão de modo algum associadas à defesa de posições «conservadoras» ou pró-americanas ou pró-israelitas. Pelo contrário: veja-se o caso de Espanha. Simplesmente, isso não é o território de Finkelstein nem serve a sua iconoclastia auto-induzida. Termina o seu livro dizendo que «o gesto mais nobre em relação aos que pereceram é preservar a sua memória, aprender com o seu sofrimento e deixá-los, finalmente, descansar em paz». No entanto, não aponta nem propõe, pela positiva, nenhum caminho que ajude a «preservar a memória» das vítimas do Holocausto ou a «aprender com o seu sofrimento», sendo o seu ensaio puramente negativo. Deste modo, acaba por resvalar num processo autofágico, já que, além de se limitar a criticar sem oferecer alternativas, acaba por preferir o silenciamento e o apagamento da memória, já que, segundo ele, esta tem sido manipulada de modo abusivo para servir os interesses de Israel, «uma das potências mais formidáveis a nível mundial».
Sem propor uma forma ideal de evocação do Holocausto, Finkelstein acaba, paradoxalmente, por se aproximar daqueles que critica e à sua pretensão de se apropriarem de um facto histórico universal (ou, pelo menos, extensível a outras categorias, como os ciganos ou os homossexuais). Ainda recentemente, a monumental obra de Anthony Beevor sobre a 2ª Guerra foi atacada, designadamente em Israel, por não retratar e respeitar o Holocausto na sua absoluta singularidade. Pois bem: também Norman G. Finkelstein acaba por proclamar uma absoluta singularidade do Holocausto – a uniqueness que vá de encontro aos seus propósitos polemizantes. O seu livro, como vimos, apresenta-se como «uma acusação à indústria do Holocausto». Logo a abrir, Norman Finkelstein reconhece que, há umas décadas atrás, poucos estudavam o Holocausto. A monumental obra-prima de Hilberg, diz, só a muito custo foi publicada em 1961 e, quando Hannah Arendt trabalhou na elaboração de Eichmann em Jerusalém (1963), apenas tinha ao seu dispor, além do livro de Hillberg, o trabalho The Final Solution, de Gerald Reitlinger. Sobre o Holocausto pairava o mais absoluto silêncio. Nos últimos decénios, a bibliografia sobre a Shoah tornou-se inabarcável, esmagadora, infinda. A que se deve isso? Ao interesse de uma «indústria» que «tem servido para justificar políticas criminosas do Estado de Israel e o apoio americano a essas políticas». Nada há de aproveitável no que tem sido investigado e publicado, mesmo por autores insuspeitos como Deborah Lipstadt ou Daniel Goldhagen? A resposta, para Norman Finkelstein, parece ser negativa. Todo este interesse público (académico e não só) pelo Holocausto é fruto de uma «indústria». Para Finkelstein, livros aproveitáveis só há um: o seu. A denúncia da «indústria do Holocausto» torna-se assim, ela própria, uma «indústria», a «indústria da indústria do Holocausto». Uma indústria gerida em regime de monopólio, reclamando para si a superioridade intelectual, e sobretudo moral, de ser essa a única forma de «deixar descansar em paz» as vítimas dos crematórios. Se as ideias de Finkelstein tivessem sido aplicadas há cinquenta anos, talvez não tivéssemos hoje uma «indústria do Holocausto», mas seguramente saberíamos muito menos sobre o que se passou em Auschwitz ou noutros campos de extermínio. Teria sido o completo triunfo do negacionismo, um festim para Irving ou Faurisson. Na verdade, nem sequer seria preciso negar o que quer que fosse, pois o silêncio ter-nos-ia mantido no pior dos mundos: o da ignorância e o do desconhecimento. A Indústria do Holocausto, de Norman G. Finkelstein, um expressivo exemplo de como a cegueira ideológica nos pode conduzir à abjecção moral.
António Araújo
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