Ecce Homo, Mestre desconhecido
Portugal, 2ª metade do século XVI (segundo um protótipo do século XV) Óleo (?) sobre madeira de carvalho A 89 x L 65 cm Conventos extintos em 1834 MNAA inv. 433 Pint |
Um dos expoentes da arte gótica na pintura portuguesa do séc.XV, além do políptico de São Vicente, em Lisboa, conjunto de painéis da sociedade e da corte portuguesas do tempo de D. Afonso V (nobres, pescadores, cavaleiros, comerciantes, prelados, frades e até um rabino, além do mártir da pátria após a sua captura e morte em terras islâmicas), atribuído a Nuno Gonçalves, é o Ecce Homo, do museu das Janelas Verdes, perto dos famosos painéis que são a obra máxima da nossa arte no período em que iniciávamos a expansão marítima.[1]
Estas duas obras, os painéis e o Ecce Homo, representam, sem dúvida, o expoente duma pintura nacional que na centúria de quatrocentos, e sob a influência da arte flamenga (na Flandres trabalharam artistas lusos como Simão e Eduardo, tendo este último pertencido aos auxiliares da pintura de Quentin Metsys) e ainda da italiana (em Pisa trabalhou Luis João, também conhecido como Luigi Giani di Portugallo), produziu retratos de figuras da dinastia, como a princesa Joana, hoje no Museu de Aveiro, Cristos, santos (um deles, o referido “Infante Santo”, D. Fernando, morto em Fez, nunca seria canonizado pela igreja católica, bem como um São Vicente atado à coluna), escudos de armas e tarjas monumentais, além de demais temas sacros das nossas igrejas e conventos. Apesar de toda a sua carga religiosa – até a inclusão, neste amplo grupo nacional, de um judeu segurando o que parece ser uma Torah, mostra até que ponto D. Afonso V aceitava no seu reino uma outra religião –, este impressionante retrato colectivo de toda uma sociedade, com os seus dinastas e classes diversas, numa multidão de retratos individualizados, cada qual com a sua personalidade, dignidade e vigor, todos com uma expressão entristecida, não se destinara a uma a catedral ou a um convento, já que as figuras religiosas estavam em segundo plano. Léo Van Puyveld sintetizou o sentido profundo desta obra excelsa, afirmando que Nuno Gonçalves quis “glorificar a era prodigiosa dos grandes descobertas e das conquistas. Ele soube criar uma imagem perfeita do sonho místico e da energia da expansão, que nestes tempos heroicos forjaram definitivamente a alma do povo português, Os corpos estão tensos de voluntariedade. Os traços dos rostos são graves (…), burilados pela áspero constrangimento e pela coragem.” [2]
De autor anónimo, o Ecce Homo dá-nos uma representação poderosamente dramática e contida de Jesus ultrajado e supliciado no Pretório antes de partir para a crucificação no Calvário, depois de flagelado e cingida a sua cabeça com a coroa de espinhos, e os braços atados por uma corda que lhe rodeia o pescoço, descendo ao longo do peito nu até aos punhos, com um manto branco que lhe encobre a coroa e lhe tapa a metade inferior do rosto, encobrindo-lhe os olhos, descendo depois ao longo do corpo, cobrindo os ombros e deixando ver apenas a parte inferior do rosto, os dois braços e a corda. [3] Com uma hieratismo que, além do estilo flamengo, não deixa de lembrar os ícones ortodoxos, como no pormenor do disco doirado com três braços visíveis duma cruz cristã vermelha, este óleo de autor anónimo, para além da simbólica pretendida nesta obra, ou seja, o martírio glorioso do Filho de Deus para os cristãos, intenção que não nos interessa sublinhar, já que é nosso intuito mostrar que há nela uma dramática e psicologicamente intensa forma, muito especificamente portuguesa, de tratar o tema do sofrimento, independentemente do intuito transcendente, propriamente religioso, que guiou o autor deste quadro.
A dupla ocultação simbólica dos olhos de Cristo e da excruciante coroa de espinhos – de que se percebem apenas alguns que furam o pano imaculado, sem que nele qualquer vestígio de sangue testemunhe explicitamente e de forma visualmente patente esse lancinante ultraje físico e simbólico – pois os autores da dolorosa metáfora queriam ridicularizar a sua alegada divindade de Rei dos Judeus, ou de “Filho de Deus”, já que à pergunta de Pilatos “És tu o rei dos judeus?”, respondera “Tu o disseste” (Mateus, 27:11) – sintetiza toda a estratégia icónica e intencional deste retrato. E o que nele se diz, através da contenção do sofrimento, do calar os queixumes da vítima e de se ocultar os instrumentos de infligir a dor e provocar o derrame de sangue, completa-se com o vendar dos olhos, como se toda a dor sofrida fosse sublimada pelo silêncio de quem a sofre, pela sua interiorização e pela recusa de qualquer protesto patético. ...
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Para nos darmos conta desta intenção subjacente ao Ecce Homo das Janelas Verdes teríamos de contrastar este Cristo em agonia com o dramático Cristo na cruz de Grünewald (1516) (Museu Unterlinden, em Colmar, na Alsácia) [4], expressão dolorosíssima e barroca dum sofrimento transcendente, o do Deus que se fez homem e encarna naquele corpo todo mortificado, ferido, de pele esverdeada, convulso – a ponto de os dois braços da cruz arquearem com o peso dum tormento excessivo [5] – e agonizou crucificado, havendo neste, muito ao contrário, na pintura lusa do séc. XV, uma recusa de patético, da expressão retórica e paroxística do sofrimento, de declamação gritada da dor.
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Matthias Grünewald, Retábulo de Issenheim, 1512-1516
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Em suma, o nosso Ecce Homo representa uma dor intolerável – a que o espectador cristão dará um significado que é dele, mas que um espírito alheio à religião cristã interpretará em termos puramente humanos –, que, contudo, se contém e autodomina, escondido que fica o sofrimento pelo pudor de quem o sofre intensamente, dor que o véu branco duplamente encobre, tapando o suplício da cruz de espinhos e não nos permitindo que vejamos diretamente o sofrimento que os seus olhos exprimiriam se os pudéssemos olhar, dor que temos nós mesmos de imaginar como nossa, em empatia profunda com a representação plástica patente do tormento que nos é mostrado. E para o percepcionar como tal não é preciso ser cristão, do mesmo modo que para sentir a beleza duma Paixão de Bach não se requer que se seja cristão. Ou seja, para sofrer com este homem cujos olhos não buscam os nossos, mas apelam, velados como estão por um manto branco, a imaginemos o seu penar. E é nesta ocultação púdica e contida, estoicamente autodominada de modo extraordinário, que vemos neste retrato dum homem supliciado uma maneira bem portuguesa de falar do sofrimento, mas sem o gritar, sem lhe dar uma convulsão excessiva e retórica, e que antes pode ser traduzido por indícios mínimos que nos permitem perceber de modo intenso a fundura do sofrimento que um véu nos encobre para tornar ainda mais dolorosa e intensa aquela dor que se esconde de nós.
Esta capacidade de ocultar o que se sofre é portuguesa, aqui exprime-se com uma pureza visual, uma economia de processos e uma intensíssima capacidade de interiorizar aquilo que deve, de algum modo, ser vivido na esfera do mais absoluto e íntimo recolhimento anímico, sem patético barroco. Não seria difícil mostrar que esta atitude e este não-expressionismo austero, mental, todo interior e autodominado, se encontra também na nossa literatura, na poesia e no romance. Seja como for, este Cristo é, mais do que qualquer outro de toda a nossa história da pintura, o mais português de todos os supliciados, o mais étnico de todos os nossos Cristos ultrajados.[6] O anónimo autor deste Ecce Homo deixou-nos, assim, um Cristo português, isto é, uma forma portuguesa de sofrer e transcender a dor, mesmo para os que nela só divisam um sofrimento humano, demasiado humano, uma específica maneira lusa de superar o suplícios do corpo ou da alma.
João Medina
[1] Veja-se Pedro Dias, “Arte gótica portuguesa” in O Gótico, vol.4 da História da Arte em Portugal, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, ilustr., pp.159-178 (reprodução dos painéis de Nuno Gonçalvea nas pp.172-3 e do Ecce Homo na p.177).
[2] Apud P. Dias, op. cit., p.177.
[3] Mateus (27:28-31), descrevendo os ultrajes de Cristo no Pretório, menciona uma capa escarlate, um caniço na mão direita de Jesus e, por fim, a imposição duma coroa de espinhos, além de o terem ridicularizado com as palavras “Salve, rei dos judeus”, batendo-lhe com o caniço e cuspindo-lhe, após o que lhe despiram a capa vermelha, vestiram-lhe as suas roupas e o levaram para a crucificação.
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[4] Veja-se Pantxica Beguerie e-ºDe Pepe e Philippe Lorenz, Grünewald et le Retable d’Issenheim. Regards sur un Chef-d’Oeuvre, Colmar, Museu Unterlinden, Somogy Editions d’Art, 2007, ilustr. Este retábulo de Issenheim constitui uma imagem trágica e solenemente desolada da agonia de Cristo na cruz, numa visão impiedosa do seu corpo martirizado, com dedos que se retorcem e dobram devido à dor da crucificação, assim como a sua boca se distorce e os pés se cruzam, representação invulgarmente dolorosa do sofrimento de Jesus. Como o sublinha E H. Gombrich (1909-2001), “nesta imagem nua e severa do Salvador crucificado não há vestígio nenhum daquilo eu os artista italianos consideravam como beleza”, já que Grünewald “queria evocar em todo o seu horror essa cena de suplício (…). O rosto e as mãos do Homem da Dor gritam-nos o sentido do Seu Calvário.” (Histoire de l’Art, Londres, Phaidon, 2003, p.353 (imagem central do retábulo: p.351).
[5] Note-se que o alemão Mathias Grünewald (c.1480-1528) foi o único pintor de crucificações que ousou arquear a madeira da cruz onde Cristo foi pregado – e só no séc.XX um pintor de inspiração surrealista, Graham Sutherland (1903-1980) foi capaz de retomar o arqueamento dos braços da cruz, no seu impressionante óleo Crucificação (1946), sugestão a que acrescentou as das fotos das vítimas da Segunda Guerra mundial, já que fora artista oficial convidado a descrever as devastações dos bombardeamentos que sofreu nesse conflito a Inglaterra e dos sofrimentos das vítimas dos campos de morte. Veja-se o álbum antológico Crucifixion, Londres, Phaidon, 2000, não paginado, o retábulo de Issenheim e a Crucificação (1946) de Sutherland. Este foi também um controversos retratista, a ponto do retrato de W. Churchill ter sido destruído pela mulher do político inglês, e o de Somerset Maugham descrito como “uma velha madame chinesa num bordel de Xangai” (Gerald Kelly, famoso retratista britânico).
[6] Devemos a Eugenio D’Ors (1882-1954), ensaista e crítico de arte catalão,, no seu Le Barroque, Paris, Gallimard, col. Idées-Arts, 1968, ilustr., a ideia central desta explicação da dor do Ecce homo das Janelas Verdes, a que se esconde como uma forma lusitana de falar da dor mais alta.
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Graham Sutherland, Crucifixion, 1946
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