quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Alvorecer.

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Fotografia de D'Arc

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«Estavam ali diante dos meus olhos: era terrível e ao mesmo tempo fascinante. Ao princípio pensei que ele a estava a matar, logo a seguir percebi que não, que talvez ambos estivessem a morrer, só depois qualquer apelo distante se fez carne em mim.» (Fábula, Eugénio de Andrade)



Paula Rego, Natividade, 2002



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Deviam ser umas três da tarde, ficara em casa para me concentrar num trabalho que tinha de entregar com urgência, mas há mais de uma hora que um qualquer desconforto não me largava o ouvido fundo. A princípio julguei que fossem efabulações auditivas, depois percebi que não, que havia efectivamente uma toada longínqua que, como uma vaga em cadência incerta, me ia entrando janela adentro. Pensei então que fosse uma gata com cio ou o ganir de cães distorcido pelo arco do vale. Convenci-me disso e tentei abstrair-me. Pus um CD a tocar e voltei a concentrar-me. Fiquei toda a tarde na varanda debruçado sobre o trabalho, mas de vez em quando lá vinha o rumor que quanto mais o dia avançava mais se sobrepunha à música que eu ia fazendo aumentar de volume. Ao cair da noite não havia mais como abafá-lo, numa regularidade imprecisa, mas que nunca ultrapassava os vinte, trinta minutos, lá vinha ele: cada vez mais próximo, arrastado, plangente. Só então percebi. Uma vizinha tinha-me dito que estava previsto para o dia de Natal, enterneci-me com a ideia: um menino Jesus. Poucos dias antes do Ano Novo encontrei-os na rua, há já algum tempo que não a via e fiquei perplexo: pareceu-me uma violência que aquele corpo frágil com pouco mais de metro e meio tivesse que suportar o globo mundo, confrangi-me por não a ter achado linda como sempre, e por ver-lhe os olhos exaustos de um tempo e de um peso insuportáveis. Limitei-me a fixá-la estupefacto, não me ocorreu nada de agradável para dizer. Doce e benévola, ela reconfortou-me: «É para breve». Embaraçado, tentei um dito espirituoso para aligeirar o momento e rematei: «Talvez venha com o ano». Nos dias seguintes estive mais alerta. Atento ao movimento das escadas, corria para espreitar no buraco da fechadura sempre que ouvia barulho no patamar. Mas do andar de cima apenas uns passos lentos sobre o soalho, por vezes, umas vozes espanholas num dia, um traquinar de crianças no outro. O ano veio e nada aconteceu. Até ontem à noite, quando um apelo distante se fez carne em mim levando-me finalmente a compreender de onde vinha o rumor da tarde. Ela estava ali, poucos palmos acima da minha cabeça, entregue ao rolar da maré vazante, marcando o ritmo das vagas com uma espécie de marulhar animal de fêmea agonizante. Os gemidos pareciam derramar-se sobre os meus ouvidos como água a ferver. De peito apertado, achei que sufocava, sem saber se de medo, excitação ou pasmo. Compassadamente, os clamores seguiram-se durante horas: graves, longos e ritmados como um cântico ritual. Por volta da meia-noite fui-me deitar já com aquele murmurar incorporado. «Quanto tempo pode durar um parto?», comecei a tentar lembrar-me da hora precisa em que tinha começado a ouvir o rumor e acabei por adormecer embalado nessa contabilidade. Dormi um sono inquieto, com a toada gutural a martelar-me a cabeça e o coração. Por volta das seis da manhã, as taquicardias começaram a instalar-se e deixaram de me dar posição na cama: acordei lentamente com aquela fugitiva ilusão que se tem na manhã seguinte à morte de alguém querido, de que tudo não passou de um sonho, que afinal nada aconteceu e que o dia que nos espera é o de sempre. Mas rapidamente um bramar agudo irrompeu quarto adentro para me anunciar que tudo se mantinha como há algumas horas atrás: enquanto eu dormira, no andar de cima conservara-se sempre acesa a vigília do alvorecer. Mas, entretanto, o rumor havia-se transformado em frémitos cada vez mais sequenciais e profundos. Eram oito da manhã: «passaram-se quase 18 horas, isto não pode durar muito mais», pensei. Levantei-me e fui até à varanda esperar por qualquer coisa que não sabia bem o que poderia ser. Fiquei ali a olhar o vale. Quieto, calado, tremendo a cada uivo que chegava. Escondido por detrás de uma massa cinzenta de nuvens, o sol projectava os seus raios sobre o rio produzindo uma explosão de luz semelhante a um espectro divino. Diante dos meus olhos o milagre quotidiano. Por cima de mim o silêncio. Subitamente o silêncio: o milagre da vida.


Para a Sónia.


D'Arc

1 comentário:

  1. Caramba !! Voltaria novamente aos meus já antigos gemidos de rasgar e criar vida para que alguém os ouvisse com esta sonoridade, com esta benevolência, com esta bondade debruçada sobre a grande fonte de vida que é o Tejo.
    Uma emoção, este texto, para quem já passou, ou irá passar pela dor gloriosa de fazer nascer.

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