segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Oliveira Martins e a Espanha.





OLIVEIRA MARTINS E A ESPANHA

Exame crítico da História da Civilização ibérica (1879)


 
 
 
 
 
 

Fidelino de Figueiredo (1889-1967), um dos mais atentos críticos portugueses do hispanismo e da hispanofilia de Oliveira Martins, disse do autor da História da Civilização ibérica (1879) que o nosso historiador fora “grande em tudo, até em ter sentido o feitiço da esfinge hispânica e esperar ainda muita coisa do seu sono profundo”.[1] O que não impedira, todavia, o citado autor de Um Coleccionador de Angústias, apesar do elogio caloroso, de lembrar, exatamente no prefácio à reedição desta obra de 1879, algumas das suas omissões mais patentes: as de Cervantes e do Quixote, o mito de Don Juan, assim como os nomes de Velasquez e Goya.[2] O mesmo crítico e historiador do séc. XX, no capítulo que lhe dedica na sua História literária de Portugal (séculos XII-XX) (1944), fazia um completo e equilibrado panorama do pensamento historiográfico e sublinhava em termos elogiosos a obra martiniana, insistindo na necessidade de considerarmos sempre a sua “qualidade da obra artística, reflexo da sua constituição intelectual eminentemente artística”, sublinhando ainda que, “mais do que historiador, foi Oliveira Martins “o mais artista dos historiadores desta época”,  ou seja, um “grande artista histórico (…), que possuía eminentes dotes artísticos: a imaginação plástica, que, ao mesmo tempo cria e faz ver formas e cores: a visão dos caracteres, o espírito de realidades que mais de uma vez o leva e aproxima dos velhos tempos as situações actuais”.[3] E remata lembrando que a sua História da Civilização ibérica estendeu a sua influência à Espanha e América, onde logo circulou e foi perfilhada pelas universidades como primeira demonstração da unidade típica dessa civilização.[4]

Numa outra obra, anterior, História dum “Vencido da Vida” (1930), o mesmo Figueiredo, num capítulo que era dedicado à obra de Martins como servo da musa Clio, levara mais longe a sua homenagem à História da Civilização ibérica, assim como a análise das relações do historiador com o país onde ele mesmo trabalhara.[5] O nosso crítico, além de afirmar que, além de Eça – o autor da geração de Setenta mais lido em Espanha –, teria sido Martins, considera essa estima como natural retribuição pela sua clara hispanofilia,[6] expressa, por exemplo, pela admiração que lhe votava o grande erudito Marcelino Menéndez Pelayo (1856-1912), o historiador das ideias heterodoxas e das ideias estéticas espanholas, com o qual Martins trocou três cartas, aliás sem interesse.[7] Tendo passado alguns anos em Espanha, de 1870 a 1874, a trabalhar na direção de mineiros de Santa Eufémia, num clima áspero e com homens rudes e robustos, Martins não teria tido, todavia, o tempo suficiente para se documentar culturalmente para a obra que lançou em 1879, o que desde logo explica as insuficiências e omissões, por vezes clamorosas ou indesculpáveis, a que já acima nos referimos, repetindo o que lembrou Figueiredo: a maior de todas essas omissões estava na figura de Cervantes e do seu Cavaleiro de Triste Figura, mais o seu aio e alter ego D.Sancho Pança,[8] emblemas supremos da alma hispânica, de par com outras lacunas, como esquecer-se de artistas da estatura de Velasquez ou Goya, já que, entre os pintores, apenas cita Zurbaran e Murillo, ignorando tantos outros entre os maiores, como El Greco – um grego metamorfoseado pelo exílio em espanhol plus vrai que nature –, Valdés Leal, Berruguete e outros, assim como não considera os grandes monumentos arquitetónicos desde o românico ao neoclássico, passando pelo gótico e pelo barroco, em que se plasmou a arte espanhola, não lhe ocorrendo valorizar as obras máximas de grandes autores como Tirso de Molina, Garcilaso, o Inca (1539-166), Quevedo, Lope de Vega. De maneira semelhante como, entre os místicos – a que dedica um capítulo extenso e agudamente observado [9] – o nome de São Juan de la Cruz se apaga para só deixar que fale de Santa Teresa. Também a excessiva importância do contra-reformista Inácio de Loyola,[10] em detrimento de outras figuras igualmente notáveis da vontade imperial hispânica e do invulgar sentimento religioso espanhol, esquecendo uns quantos heréticos excelsos como Miguel Servet, o médico e teólogo que negara o dogma da Santíssima Trindade e que fugiria para a Genebra de Calvino para escapar à perseguição da Inquisição espanhola, acabando por ser queimado pelo reformador francês expatriado na cidade suíça (1553) –, figuras religiosas às quais devíamos somar os vultos truculentos dos Conquistadores Pizarro, Cortez, Aguirre e demais desbravadores e carniceiros das Américas, [11] como, empenhados em criarem no Novo Mundo uma sociedade hispano-americana, aristocrática, burocrática, teológica, de tendência senhorial e teocrática, em tudo diferente do modelo de colonização britânico, este de tipo democrático, baseado na leitura da Bíblia e na salvação pelo trabalho, na liberdade e no mercantilismo e no proveito individual –  nesta obra de Martins, de certo modo inovadora, embora pejada de insuficiências e que  nos deixa a sensação de síntese defeituosa, de obra com aspetos brilhantes mas escrita sem critério nem estudo suficiente.

Nunca lhe ocorrera – como depois o faria Ramiro de Maeztu, figura cimeira da geração de 98 –, contrapor Camões e Cervantes como os dois polos antitéticos e complementares da grandeza e declínio das duas nações ibérica, a Hispânia lusa, num primeiro tempo ufana da sua glória efémera dos descobrimentos e odisseias marítimas, e, por fim, caída nos plainos de Marrocos onde morreu D.Sebastião, e uma outra que sentia já o sol por-se nas terras rebeldes da Flandres calvinista.[12] Também espanta que, tendo-se carteado com Juan de Valera, o romancista a que dedica esta obra,[13] Martins não se inteira das obras e figuras maiores do romance pícaro, como Lazarillo de Tormes ou o Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán e a Historia de la Vida del Buscón de Quevedo, a o teatro de Rojas, com a sua La Celestina (1502), ou Tirso de Molina que inventara uma das figuras mais prodigiosas do imaginário europeu e mundial, Dom João, [14] no seu Don Juan, el Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra (1630), o herói mítico que se lançaria na sua frenética busca amorosa por toda a Europa, a partir da sua criação em Espanha, outro grande ícone que Martins se esquece de celebrar.[15] E há ainda todo o séc.XVIII e aquele sector cultural do séc.XIX que podia ter sido conhecido por via mais ou menos direta por Martins, incluindo nela os primeiros volumes dos Episódios nacionais de Benito Pérez Galdós (nascido em 1843), série cuja primeira fase saíra em 1873, continuada em várias outras séries até 1912. A razão da pouca ou nula atenção de Martins em relação aos escritores coevos ou próximo, sobretudo os ensaístas como Larra ou os romancistas como Clarin (1852-1901) e Galdós, é-nos explicada por uma destas cartas ao romancista que fora embaixador de Espanha em Lisboa, Juan de Valera, a propósito do seu romance Las Ilusiones del Doctor Faustino (1875):

“A literatura espanhola contemporânea produziu sempre em mim uma impressão enfadonha. Os escritores de hoje parece-me inscreverem-se em duas categorias: os nacionais, ainda porém filiados numa tradição já anacrónica, e os estrangeirados, que se não filiam em coisa nenhuma, reduzindo-se a pôr francês em linguagem castelhana (…).”[16] E entre estes escritores espanhóis coevos de Martins, e que o enfadavam,  estavam, além de Valera, Clarin, Bazán, Galdós, Pereda, Alarcón, José Zorilla – que além do seu D. Juan Tenório, dedicara uma peça  ao caso tão romântico do Pasteleiro de Madrigal, esse Gabriel Espinosa, de Madrigal de las Altas Torres, que se fizer passar por D. Sebastião, rei de Portugal, planeando, de gorra com um frade luso, reivindicar o trono português tomado pelo seu tio Filipe II, na peça Traidor, Inconfesso e Mártir

Sem dúvida inovadora no panorama cultural luso em relação à sua visão duma unidade dialética civilizacional e cultural luso-espanhola desta inovadora e, em muitos aspetos, es ta obra notável mas defeituosa de Martins foi prejudicada pelas omissões sublinhadas e, porventura ainda, pelo facto do seu autor nunca a ter retomado, aperfeiçoado e ampliado ao longo dos anos – as suas Cartas peninsulares,[17] obra póstuma editada em 1895. Nela Martins trataria ainda da Espanha sem, contudo, acrescentar nada de muito relevante ou que dissera década e meia antes na História da Civilização Ibérica, ou sem procurar emendar os esquecimentos dessa sua obra. Forçoso é constatar que estas páginas sobre as andanças turísticas de O.M. na Espanha de Castela-a-Velha não trazem utilidade alguma para uma compreensão mais atenta ou inovadora da realidade espanhola, aqui resumida a uns quantos páginas de leitura pouco atraente ou penetrante. Diga-se, todavia, em defesa do nosso historiador, que até se compreendem essas seus lacunas gritantes quando se pensa em como foi breve a sua vida, gasta em menos de meio século de existência – 39 anos, de 1845 a 1894 –, e nas suas múltiplas e ofegantes atividades como homem de trabalho, como político e autor prolífico. Ficam dessa obra interessante mas incompleta alguma páginas, como aquelas que dedica à perseguição dos judeus na Castela dos reis católicos Isabel e Fernando, a ação de Carlos V [18]  – brilhantemente examinada como o imperador de Áustria que de facto construiu a Espanha imperial e universal, assim como promoveu o longo concílio de Trento que acabaria por fazer de Inácio de Loyola o “verdadeiro papa do novo catolicismo” [19] –, como no Portugal de D.Manuel I e D. João III, [20] ou ainda a temática fulcral da causa da decadência dos povos peninsulares, presente desde os tempos de camaradagem com Antero no Cenáculo lisboeta, aqui objeto dum capítulo atualizado dessa reflexão central nas gerações de 70 lusa e na de 98 espanhola. [21] A voz que ouvimos aqui é a do melhor Oliveira Martins, ainda imbuído de esperanças socialistas e “patuleias” para reformar o Portugal pseudo-liberal e conservador, ainda apostado em despertar as consciências desejosas de insurgirem contra o statu quo que se eternizaria, debaixo do lábaro cartista, na modorra antiga e no imobilismo arcaizante de sempre, alheio às sedutoras ilusões “bismarckianas” que mais tarde lhe toldariam o juízo e a visão das realidades, sobretudo desde que, fascinado pelos áulicos da camarilha de aristocratas e poderosos afetos ao “partido do rei”, isto é, D. Carlos, aceitaria servi-la, descendo à fatal Cova dos Leões, ordálio terrível a que, na verdade, não sobreviveria.

Uma derradeira observação sobre esta obra de Martins: ao conclui-la, o historiador aflora um dos temas que, em certa medida, marcara de modo original a sua geração, ao escrever, com fibra deveras europeísta, estas palavras. “Nós acreditamos firme e diremos até piamente – exprimindo por este advérbio a nossa fé na Ordem universal – na futura organização das nações da Europa; cremos portanto em uma vindoura Espanha mais nobre e mais ilustre ainda do que foi a do século XVI. Acreditamos também que já hoje navegamos na viagem para esse porto, embora os nevoeiros conturbem as vistas dos nautas agora que apenas acabamos de largar as costas do velho mundo. Que papel destina o futuro à Península, e qual será a fisionomia dessas idades vindouras? A história não é profecia (…)”[22] Tivesse Martins resistido às sereias da política nacional e às suas funestas ilusões de cesarismos insuscetíveis de medrarem entre nós, pequena nação agrícola apostada, além disso, num coriácea manutenção do nosso império africano, preferindo crer no ideal europeu e na construção de uma Ibéria curada de tropismos imperialistas e colonialistas, antes apostada em unir-se à energia espiritual e renovo anímico que nela já germinava em direção à Europa da centúria seguinte, e ter-se-ia evitado que este ofegante e imprudente Fausto naufragasse nos baixios das nossas ofenbaquianas costas.



João Medina

 

NB: Este texto constitui um dos capítulos do livro inédito Oliveira Martins na Cova dos Leões.


Tirso de Molina (1579-1648)

 


[1] Fidelino de Figueiredo, As Duas Espanhas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p.260.
[2] F. Figueiredo, pref. A História da Civilização ibérica, Lisboa, Guimarães Editores, 1954, p.XIX.
[3] F.Figueiredo, História literária de Portugal (séculos XII-XX), Coimbra, Nobel, 1944, pp.399-405, 400 e p.404 respectiv..
[4] F.Figueiredo, op. cit., p.405.
[5] F. Figueiredo, História dum “Vencido da Vida”, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1930, pp.143-181. (e uma fotografia da Casa da Mina de Santa Eufémia, em Córdova, ilustrava mesmo este livro, foto que em nenhuma outra obra sobre Martins acharemos). Quanto a esta foto da casa da mina de Santa Eufémia, acha-se ela, em extra-texto, entre as pp.48 e 49.
[6] F.Figueiredo, op. cit., p.143.
[7] As cartas de O.M. a M.P. são banais, Numa delas recomenda Bernardino Machado , então deputado do P.Regenerador (Correspondência, p.195. s.d.) ao erudito espanhol, noutra  remete-lhe os Sonetos de Antero (.s.d., p.217) e, por fim, datada esta (24-IV-1893), recomenda-lhe o portador, o estudioso inglês Donald Mackenzie Wallace (1841), que estudara direito em Paris, Berlim e Heidelberg, viajando pela Rússia, sobre a qual publicou uma obra muito traduzida noutras línguas, em 2 vols.(1877), assim como um estudo sobre o Egito, sendo ainda correspondente do jornal Times, residindo em Constantinopla (p.231). Cremos que, infelizmente, nenhum estudo se publicou até agora sobre as relações entre estes dois intelectuais íbéricos.
[8] Veja-se a bibliografia cervantina e quixotesca que apresentamos na revista Clio dedicada D.Quixote, nº 13, Lisboa, 2005, pp.,pp.32-34.Veja-se ainda, no nosso ensaio De Homero a Kafka, passando por Cervantes e Nietzsche: grandes mitos do imaginário cultural europeu, revista Clio, nº 11, 2004, pp.13-92, maxime pp.,42-54 (D.Quixote).
[9] Veja-se Hist. Civil. Ibérica, pp.212-17.Veja-se o clássico estudo de E.Ellison Peers, El Misticismo español, Madrid, Espasa-Calpe, col Austral, 1947, maxime p.120 e ss (Luis de Grnada), 132 e ss(Sanat Teresa de Jesus) e 145 e ss(Juan de la cruz).
[10] Cf. op. cit., pp..218-29.
[11] Martins refere-se-lhes, contrapondo Cortez e Pizarro aos portugueses Castro e Albquerque, Hist. Civ. Ibérica, p.249, ocupando-se exclusivamente de Cortez , pp.249-50.
[12] Veja-se Ramiro de Maeztu (1874-1936), “Os Lusíadas e D.Quixote”, do seu livro Don Quijopte, Dom Juan y la Celestina, reproduzido no vol.IV da nossa História de Portugal, Ediclube, pp.323-326, bem como no número da revista Clio dedicado ao D.Quixote, nº 13, Lisboa, 2003, pp.63-69.Sobre este autor, veja-se José Miguel Fernandez de Urbina, La Aventura intelectual de Ramiro de Maeztu, Vitoria, Diputación de Slava, 1990.
[13] Vide as cartas de Martins a Valera, na Correspondência de J.P. de Oliveira Martins, pp.38, 40, 49, 52 e 53.
[14] Veja-se o indispensáel Dictionanire de Don Juan dirigido por Pierre Brunel, Paris, Robert Laffont, col. Bouqins, 1999.
[15] Lope de Vega (1562-1635) é citado: veja-se a referência ao auto do Nuevo Mundo, na Hist. Civ. ibérica, p.249.
[16] Carta de Martins a Valera, op. cit., p.41 (do Porto, de 18-IV-1884).
[17] Veja-se O. Martins, Cartas peninsulares. Lisboa, Guimarães Editores, 1952, com um esboço biográfIco de O.M. pelo seu irmão Guilherme de Oliveira Martins (pp.9-118). Estes textos de O.M. sobre Espanha  (pp.l21-259)  são constituídos por 13 cartas dedicadas às terras em torno de Salamanca, que ele visitava a partir de Junho de 1894, na sua derradeira peregrinação por terras de Espanha, pp.147 e ss ( considerações sobre o estilo plateresco); há em seguida páginas sobre a pintura de Ribera (pp.165 e ss) e vários edifícios históricos de Salamanca, a região de Medina del Campo (p.175 e ss) e o Douro espanhol, a cidade de Zamora e a sua catedral (pp.187 e ss), a região de Toro (p.219 e ss), sobre Valhadolid e Medina del Campo (pp.241 e ss), etc..
[18] Veja-se Martins, Hist. Civ. Ibérica, pp.230-240.
[19] Ibidem, p.228.
[20] Vide Martins, Hist. Civiliz. ibérica, pp.271-83.
[21] Ibidem, pp.260-283.
[22] O.Martins, op. cit., p.317.



 
Amadeo de Souza Cardoso, Dom Quixote



 

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