OLIVEIRA
MARTINS E A ESPANHA
Exame crítico
da História da Civilização ibérica
(1879)
Fidelino de Figueiredo
(1889-1967), um dos mais atentos críticos portugueses do hispanismo e da
hispanofilia de Oliveira Martins, disse do autor da História da Civilização ibérica (1879) que o nosso historiador fora
“grande em tudo, até em ter sentido o feitiço da esfinge hispânica e esperar
ainda muita coisa do seu sono profundo”.[1] O que
não impedira, todavia, o citado autor de Um
Coleccionador de Angústias, apesar do elogio caloroso, de lembrar,
exatamente no prefácio à reedição desta obra de 1879, algumas das suas omissões
mais patentes: as de Cervantes e do Quixote, o mito de Don Juan, assim como os
nomes de Velasquez e Goya.[2] O
mesmo crítico e historiador do séc. XX, no capítulo que lhe dedica na sua História literária de Portugal (séculos
XII-XX) (1944), fazia um completo e equilibrado panorama do pensamento
historiográfico e sublinhava em termos elogiosos a obra martiniana, insistindo
na necessidade de considerarmos sempre a sua “qualidade da obra artística,
reflexo da sua constituição intelectual eminentemente artística”, sublinhando
ainda que, “mais do que historiador, foi Oliveira Martins “o mais artista dos
historiadores desta época”, ou seja, um
“grande artista histórico (…), que possuía eminentes dotes artísticos: a
imaginação plástica, que, ao mesmo tempo cria e faz ver formas e cores: a visão
dos caracteres, o espírito de realidades que mais de uma vez o leva e aproxima
dos velhos tempos as situações actuais”.[3] E
remata lembrando que a sua História da
Civilização ibérica estendeu a sua influência à Espanha e América, onde
logo circulou e foi perfilhada pelas universidades como primeira demonstração
da unidade típica dessa civilização.[4]
Numa outra obra,
anterior, História dum “Vencido da Vida” (1930),
o mesmo Figueiredo, num capítulo que era dedicado à obra de Martins como servo
da musa Clio, levara mais longe a sua homenagem à História da Civilização ibérica, assim como a análise das relações
do historiador com o país onde ele mesmo trabalhara.[5] O
nosso crítico, além de afirmar que, além de Eça – o autor da geração de Setenta
mais lido em Espanha –, teria sido Martins, considera essa estima como natural
retribuição pela sua clara hispanofilia,[6]
expressa, por exemplo, pela admiração que lhe votava o grande erudito Marcelino
Menéndez Pelayo (1856-1912), o historiador das ideias heterodoxas e das ideias
estéticas espanholas, com o qual Martins trocou três cartas, aliás sem
interesse.[7] Tendo
passado alguns anos em Espanha, de 1870 a 1874, a trabalhar na direção de
mineiros de Santa Eufémia, num clima áspero e com homens rudes e robustos,
Martins não teria tido, todavia, o tempo suficiente para se documentar
culturalmente para a obra que lançou em 1879, o que desde logo explica as
insuficiências e omissões, por vezes clamorosas ou indesculpáveis, a que já
acima nos referimos, repetindo o que lembrou Figueiredo: a maior de todas essas
omissões estava na figura de Cervantes e do seu Cavaleiro de Triste Figura, mais
o seu aio e alter ego D.Sancho Pança,[8]
emblemas supremos da alma hispânica, de par com outras lacunas, como
esquecer-se de artistas da estatura de Velasquez ou Goya, já que, entre os
pintores, apenas cita Zurbaran e Murillo, ignorando tantos outros entre os
maiores, como El Greco – um grego metamorfoseado pelo exílio em espanhol plus vrai que nature –, Valdés Leal,
Berruguete e outros, assim como não considera os grandes monumentos
arquitetónicos desde o românico ao neoclássico, passando pelo gótico e pelo
barroco, em que se plasmou a arte espanhola, não lhe ocorrendo valorizar as
obras máximas de grandes autores como Tirso de Molina, Garcilaso, o Inca
(1539-166), Quevedo, Lope de Vega. De maneira semelhante como, entre os
místicos – a que dedica um capítulo extenso e agudamente observado [9] – o
nome de São Juan de la Cruz se apaga para só deixar que fale de Santa Teresa.
Também a excessiva importância do contra-reformista Inácio de Loyola,[10] em
detrimento de outras figuras igualmente notáveis da vontade imperial hispânica
e do invulgar sentimento religioso espanhol, esquecendo uns quantos heréticos
excelsos como Miguel Servet, o médico e teólogo que negara o dogma da
Santíssima Trindade e que fugiria para a Genebra de Calvino para escapar à
perseguição da Inquisição espanhola, acabando por ser queimado pelo reformador
francês expatriado na cidade suíça (1553) –, figuras religiosas às quais
devíamos somar os vultos truculentos dos Conquistadores Pizarro, Cortez,
Aguirre e demais desbravadores e carniceiros das Américas, [11]
como, empenhados em criarem no Novo
Mundo uma sociedade hispano-americana, aristocrática, burocrática, teológica,
de tendência senhorial e teocrática, em tudo diferente do modelo de colonização
britânico, este de tipo democrático, baseado na leitura da Bíblia e na salvação
pelo trabalho, na liberdade e no mercantilismo e no proveito individual – nesta obra de Martins, de certo modo
inovadora, embora pejada de insuficiências e que nos deixa a sensação de síntese defeituosa,
de obra com aspetos brilhantes mas escrita sem critério nem estudo suficiente.
Nunca lhe ocorrera – como
depois o faria Ramiro de Maeztu, figura cimeira da geração de 98 –, contrapor
Camões e Cervantes como os dois polos antitéticos e complementares da grandeza
e declínio das duas nações ibérica, a Hispânia lusa, num primeiro tempo ufana
da sua glória efémera dos descobrimentos e odisseias marítimas, e, por fim,
caída nos plainos de Marrocos onde morreu D.Sebastião, e uma outra que sentia
já o sol por-se nas terras rebeldes da Flandres calvinista.[12]
Também espanta que, tendo-se carteado com Juan de Valera, o romancista a que
dedica esta obra,[13]
Martins não se inteira das obras e figuras maiores do romance pícaro, como Lazarillo de Tormes ou o Guzmán de Alfarache de Mateo Alemán e a Historia de la Vida del Buscón de
Quevedo, a o teatro de Rojas, com a sua La
Celestina (1502), ou Tirso de Molina que inventara uma das figuras mais
prodigiosas do imaginário europeu e mundial, Dom João, [14] no
seu Don Juan, el Burlador de Sevilla y
Convidado de Piedra (1630), o herói mítico que se lançaria na sua frenética
busca amorosa por toda a Europa, a partir da sua criação em Espanha, outro
grande ícone que Martins se esquece de celebrar.[15] E há
ainda todo o séc.XVIII e aquele sector cultural do séc.XIX que podia ter sido
conhecido por via mais ou menos direta por Martins, incluindo nela os primeiros
volumes dos Episódios nacionais de
Benito Pérez Galdós (nascido em 1843), série cuja primeira fase saíra em 1873,
continuada em várias outras séries até 1912. A razão da pouca ou nula atenção
de Martins em relação aos escritores coevos ou próximo, sobretudo os ensaístas
como Larra ou os romancistas como Clarin (1852-1901) e Galdós, é-nos explicada
por uma destas cartas ao romancista que fora embaixador de Espanha em Lisboa,
Juan de Valera, a propósito do seu romance Las
Ilusiones del Doctor Faustino (1875):
“A literatura espanhola
contemporânea produziu sempre em mim uma impressão enfadonha. Os escritores de
hoje parece-me inscreverem-se em duas categorias: os nacionais, ainda porém filiados numa tradição já anacrónica, e os estrangeirados, que se não filiam em
coisa nenhuma, reduzindo-se a pôr francês em linguagem castelhana (…).”[16] E
entre estes escritores espanhóis coevos de Martins, e que o enfadavam, estavam, além de Valera, Clarin, Bazán,
Galdós, Pereda, Alarcón, José Zorilla – que além do seu D. Juan Tenório,
dedicara uma peça ao caso tão romântico
do Pasteleiro de Madrigal, esse Gabriel Espinosa, de Madrigal de las Altas
Torres, que se fizer passar por D. Sebastião, rei de Portugal, planeando, de
gorra com um frade luso, reivindicar o trono português tomado pelo seu tio
Filipe II, na peça Traidor, Inconfesso e
Mártir…
Sem dúvida inovadora no
panorama cultural luso em relação à sua visão duma unidade dialética
civilizacional e cultural luso-espanhola desta inovadora e, em muitos aspetos, es ta
obra notável mas defeituosa de Martins foi prejudicada pelas omissões
sublinhadas e, porventura ainda, pelo facto do seu autor nunca a ter retomado,
aperfeiçoado e ampliado ao longo dos anos – as suas Cartas peninsulares,[17] obra
póstuma editada em 1895. Nela Martins trataria ainda da Espanha sem, contudo,
acrescentar nada de muito relevante ou que dissera década e meia antes na História da Civilização Ibérica, ou sem
procurar emendar os esquecimentos dessa sua obra. Forçoso é constatar que estas
páginas sobre as andanças turísticas de O.M. na Espanha de Castela-a-Velha não
trazem utilidade alguma para uma compreensão mais atenta ou inovadora da realidade
espanhola, aqui resumida a uns quantos páginas de leitura pouco atraente ou
penetrante. Diga-se, todavia, em defesa do nosso historiador, que até se
compreendem essas seus lacunas gritantes quando se pensa em como foi breve a
sua vida, gasta em menos de meio século de existência – 39 anos, de 1845 a 1894
–, e nas suas múltiplas e ofegantes atividades como homem de trabalho, como
político e autor prolífico. Ficam dessa obra interessante mas incompleta alguma
páginas, como aquelas que dedica à perseguição dos judeus na Castela dos reis
católicos Isabel e Fernando, a ação de Carlos V [18] –
brilhantemente examinada como o imperador de Áustria que de facto construiu a
Espanha imperial e universal, assim como promoveu o longo concílio de Trento
que acabaria por fazer de Inácio de Loyola o “verdadeiro papa do novo
catolicismo” [19] –, como no Portugal de
D.Manuel I e D. João III, [20] ou
ainda a temática fulcral da causa da decadência dos povos peninsulares,
presente desde os tempos de camaradagem com Antero no Cenáculo lisboeta, aqui
objeto dum capítulo atualizado dessa reflexão central nas gerações de 70 lusa e
na de 98 espanhola. [21] A
voz que ouvimos aqui é a do melhor Oliveira Martins, ainda imbuído de
esperanças socialistas e “patuleias” para reformar o Portugal pseudo-liberal e
conservador, ainda apostado em despertar as consciências desejosas de
insurgirem contra o statu quo que se
eternizaria, debaixo do lábaro cartista, na modorra antiga e no imobilismo
arcaizante de sempre, alheio às sedutoras ilusões “bismarckianas” que mais
tarde lhe toldariam o juízo e a visão das realidades, sobretudo desde que,
fascinado pelos áulicos da camarilha de aristocratas e poderosos afetos ao
“partido do rei”, isto é, D. Carlos, aceitaria servi-la, descendo à fatal Cova
dos Leões, ordálio terrível a que, na verdade, não sobreviveria.
Uma derradeira observação
sobre esta obra de Martins: ao conclui-la, o historiador aflora um dos temas
que, em certa medida, marcara de modo original a sua geração, ao escrever, com
fibra deveras europeísta, estas palavras. “Nós acreditamos firme e diremos até
piamente – exprimindo por este advérbio a nossa fé na Ordem universal – na
futura organização das nações da Europa; cremos portanto em uma vindoura
Espanha mais nobre e mais ilustre ainda do que foi a do século XVI. Acreditamos
também que já hoje navegamos na viagem para esse porto, embora os nevoeiros
conturbem as vistas dos nautas agora que apenas acabamos de largar as costas do
velho mundo. Que papel destina o futuro à Península, e qual será a fisionomia
dessas idades vindouras? A história não é profecia (…)”[22]
Tivesse Martins resistido às sereias da política nacional e às suas funestas
ilusões de cesarismos insuscetíveis de medrarem entre nós, pequena nação
agrícola apostada, além disso, num coriácea manutenção do nosso império
africano, preferindo crer no ideal europeu e na construção de uma Ibéria curada
de tropismos imperialistas e colonialistas, antes apostada em unir-se à energia
espiritual e renovo anímico que nela já germinava em direção à Europa da
centúria seguinte, e ter-se-ia evitado que este ofegante e imprudente Fausto
naufragasse nos baixios das nossas ofenbaquianas costas.
João Medina
NB: Este texto constitui um dos capítulos do livro inédito Oliveira Martins na Cova dos Leões.
Tirso de Molina (1579-1648)
|
[1]
Fidelino de Figueiredo, As Duas Espanhas,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p.260.
[2] F.
Figueiredo, pref. A História da
Civilização ibérica, Lisboa, Guimarães Editores, 1954, p.XIX.
[3] F.Figueiredo, História
literária de Portugal (séculos XII-XX), Coimbra, Nobel, 1944, pp.399-405,
400 e p.404 respectiv..
[4]
F.Figueiredo, op. cit., p.405.
[5] F.
Figueiredo, História dum “Vencido da
Vida”, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1930, pp.143-181. (e uma fotografia
da Casa da Mina de Santa Eufémia, em Córdova, ilustrava mesmo este livro, foto
que em nenhuma outra obra sobre Martins acharemos). Quanto a esta foto da casa
da mina de Santa Eufémia, acha-se ela, em extra-texto, entre as pp.48 e 49.
[6]
F.Figueiredo, op. cit., p.143.
[7] As cartas
de O.M. a M.P. são banais, Numa delas recomenda Bernardino Machado , então
deputado do P.Regenerador (Correspondência,
p.195. s.d.) ao erudito espanhol, noutra
remete-lhe os Sonetos de
Antero (.s.d., p.217) e, por fim, datada esta (24-IV-1893), recomenda-lhe o
portador, o estudioso inglês Donald Mackenzie Wallace (1841), que estudara
direito em Paris, Berlim e Heidelberg, viajando pela Rússia, sobre a qual
publicou uma obra muito traduzida noutras línguas, em 2 vols.(1877), assim como
um estudo sobre o Egito, sendo ainda correspondente do jornal Times, residindo em Constantinopla
(p.231). Cremos que, infelizmente, nenhum estudo se publicou até agora sobre as
relações entre estes dois intelectuais íbéricos.
[8]
Veja-se a bibliografia cervantina e quixotesca que apresentamos na revista Clio dedicada D.Quixote, nº 13, Lisboa,
2005, pp.,pp.32-34.Veja-se ainda, no nosso ensaio De Homero a Kafka, passando por Cervantes e Nietzsche: grandes mitos do
imaginário cultural europeu, revista Clio,
nº 11, 2004, pp.13-92, maxime pp.,42-54
(D.Quixote).
[9] Veja-se
Hist. Civil. Ibérica,
pp.212-17.Veja-se o clássico estudo de E.Ellison Peers, El Misticismo español, Madrid, Espasa-Calpe, col Austral, 1947, maxime p.120 e ss (Luis de Grnada), 132
e ss(Sanat Teresa de Jesus) e 145 e ss(Juan de la cruz).
[10] Cf. op. cit., pp..218-29.
[11] Martins refere-se-lhes,
contrapondo Cortez e Pizarro aos portugueses Castro e Albquerque, Hist. Civ. Ibérica, p.249, ocupando-se
exclusivamente de Cortez , pp.249-50.
[12]
Veja-se Ramiro de Maeztu (1874-1936), “Os
Lusíadas e D.Quixote”, do seu
livro Don Quijopte, Dom Juan y la
Celestina, reproduzido no vol.IV da nossa História de Portugal, Ediclube, pp.323-326, bem como no número da
revista Clio dedicado ao D.Quixote, nº 13, Lisboa, 2003,
pp.63-69.Sobre este autor, veja-se José Miguel Fernandez de Urbina, La Aventura intelectual de Ramiro de Maeztu,
Vitoria, Diputación de Slava, 1990.
[13] Vide
as cartas de Martins a Valera, na Correspondência
de J.P. de Oliveira Martins, pp.38, 40, 49, 52 e 53.
[14] Veja-se o indispensáel Dictionanire de Don Juan dirigido por
Pierre Brunel, Paris, Robert Laffont, col. Bouqins, 1999.
[15] Lope de Vega (1562-1635)
é citado: veja-se a referência ao auto do Nuevo Mundo, na Hist. Civ. ibérica, p.249.
[16] Carta de Martins a
Valera, op. cit., p.41 (do Porto, de
18-IV-1884).
[17]
Veja-se O. Martins, Cartas peninsulares.
Lisboa, Guimarães Editores, 1952, com um esboço biográfIco de O.M. pelo seu
irmão Guilherme de Oliveira Martins (pp.9-118). Estes textos de O.M. sobre
Espanha (pp.l21-259) são constituídos por 13 cartas dedicadas às
terras em torno de Salamanca, que ele visitava a partir de Junho de 1894, na
sua derradeira peregrinação por terras de Espanha, pp.147 e ss ( considerações
sobre o estilo plateresco); há em seguida páginas sobre a pintura de Ribera
(pp.165 e ss) e vários edifícios históricos de Salamanca, a região de Medina
del Campo (p.175 e ss) e o Douro espanhol, a cidade de Zamora e a sua catedral
(pp.187 e ss), a região de Toro (p.219 e ss), sobre Valhadolid e Medina del
Campo (pp.241 e ss), etc..
[18] Veja-se Martins, Hist. Civ. Ibérica, pp.230-240.
[19] Ibidem, p.228.
[20] Vide Martins, Hist. Civiliz.
ibérica, pp.271-83.
[21] Ibidem, pp.260-283.
Amadeo de Souza Cardoso, Dom Quixote
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