sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A guerra que não houve.

 
 


 
 
E se a Grande Guerra tivesse começado em 1902,
opondo os Estados Unidos à Alemanha e à Inglaterra?
 

 






 











Parece impossível, não é? Mas esteve para acontecer. Apesar da sua aparência tonitruante, o presidente Theodore Roosevelt manteve toda a discrição naquele final de 1902. Só anos depois, tendo saído da Casa Branca, admitiu em privado que os EUA tinham estado à beira da guerra.
O que acontecera? Nada menos do que um bloqueio naval à Venezuela, executado por dois aliados inesperados: a Inglaterra e a Alemanha. A primeira, que tanto temia o crescimento da Kaiserliche Marine, numa ação conjunta de tal peso!?
Tudo começou com a restauração da Venezuela: em 1899, o pequeno general Cipriano Castro desceu dos Andes e tomou Caracas. Assim se iniciou a “Revolución Restauradora”. Restauradora? Bem avisou Hannah Arendt que a palavra "revolução" tem origem na astronómica trajectória dos astros, que os faz retornar ciclicamente ao ponto de partida.



Cipriano Castro



 
Transformado em ditador, ainda sem petróleo, este Castro quis fundar o seu poder num discurso nacionalista, desafiador das potências europeias que ainda pretendiam dominar a região. Julgava ter um aliado nos Estados Unidos e na doutrina Monroe. É verdade: muitos sul-americanos viam então essa proclamação de uma nação não imperialista como uma defesa da liberdade do continente.
Quando o conflito se desencadeia, e os navios de guerra ingleses e alemães dividem a costa venezuelana e fecham os portos, as potências europeias também contavam com o apoio americano. Mas quando o conflito se agrava, e fortes locais são bombardeados, Roosevelt muda de posição e ameaça com a intervenção da sua marinha. Os ingleses recuam enquanto os alemães, que ensaiavam a nova marinha que, julgava Guilherme II, iria garantir o destino global da Alemanha e que, afinal, só iria assustar os ingleses e garantir a derrota do Reich na Primeira Guerra, ainda resistiram. Depois de momentos de suprema tensão, semelhantes aos da crise de Cuba, acabam por desistir ao perceberem que Roosevelt falava a sério e que Kiel estava longe. A crise termina quando as potências europeias aceitam a arbitragem americana.
Foi a primeira manifestação da célebre teoria rooseveltiana do “big stick” em política externa, baseada num aforismo africano que o grande presidente gostava de repetir: “speak softly and carry a big stick; you will go far”.


 
 

 
 
E o general Castro? Assustado, suplicou ao embaixador americano que o representasse nas negociações com as potências bloqueantes e aceitou os resultados da arbitragem americana. E continuou a restaurar a Venezuela, recuperando a linguagem nacionalista e indispondo as potências.
Até que adoeceu, em 1907. Não vou ter a indelicadeza de descrever a fístula vesico-colónica de que padecia. Os escatológicos efeitos de tão peculiar maleita são de tal modo penosos de enumerar que se convida o leitor de estômago forte a consultar outra fonte para os conhecer em pormenor. O que importa é que o paciente se viu forçado a deixar a Venezuela. O mais interessante é que este Castro foi buscar ajuda ... onde, onde? À Alemanha, pois então. Foi operado em Berlim, com resultados duvidosos.
Ora, a história o demonstra, ditador que comete o descuido de deixar o seu país sujeita-se a perder o poder. Talvez por isso outro Castro tenha desenvolvido a medicina na sua ilha. Mal deixou o país, o lugar-tenente de Castro, Juan Vicente Gómez, o sequaz que o acompanhava desde a descida dos Andes, aproveitou para substituir a “Revolución Restauradora” pela igualmente desprovida de sentido “Rehabilitación Nacional”. A reabilitação “gomecista” manter-se-ia por 27 anos, a mais longa ação fisioterapêutica registada nos anais. Sustentado pelo petróleo que começava a ser explorado e por uma melhor relação com as potências, o novo ditador dominaria até à sua pacífica morte, em 1935.

 

Juan Vicente Gómez




 
E Castro, o que era feito dele? Depois da operação, sabedor da traição de Gómez, quis voltar, qual Napoleão regressado de Elba. É verdade, Castro sentia-se um émulo do grande cabo. De tal modo que ficou conhecido por “El Cabito” (obra de 1910, de Pedro María Morantes). Mas não teve direito a 100 dias. Os diplomatas americanos acompanharam a sua tentativa de regresso e influenciaram as outras potências. A Inglaterra não permitiu que desembarcasse em Trinidad. A França deixou-o pernoitar em Fort-de-France, na Martinica. Cinco dias depois, os gendarmes tiraram-no da cama onde permanecia adoentado: parece que a incisão feita por cirurgiões prussianos reabrira. E foi de pijama vestido que o recambiaram para França, onde voltou ao seu quarto de hotel de luxo. A imprensa europeia e americana assegurava que a diária era de $500 dólares e que Castro desbaratava o dinheiro roubado aos venezuelanos.
O presidente Taft disse então que Cipriano Castro era um “international outlaw” sem quaisquer direitos. Afirmação peculiar na boca de um americano que ficaria muito melhor na história como grande presidente do Supremo Tribunal do que como descartável presidente dos Estados Unidos. Afinal, Castro só queria regressar ao seu país e, enquanto cidadão, não cometera nenhum crime, nem violara nenhuma lei. Até ao fim da vida seria rejeitado pelos grandes países europeus, possuidores de boa memória. Passou por Espanha e morreu em Porto Rico sem voltar a ver a sua Venezuela.
Resta esclarecer um pormenor, por sinal fundamental, para perceber toda esta estória que poderia ter gerado um conflito internacional de monta. Por que razão Inglaterra e Alemanha tinham bloqueado os portos venezuelano?
Querem saber a verdade? Pura e simplesmente porque a Venezuela devia a colossal quantia de 62 milhões de bolívares a um impaciente consórcio liderado por aqueles países. O bloqueio naval tinha como único objetivo forçar o devedor a pagar aos credores. A arbitragem americana determinou que Inglaterra e Alemanha teriam direito a confiscar as receitas alfandegárias dos dois maiores portos da Venezuela até obterem o pagamento.
Para o exterior, mesmo nos Estados Unidos, pensou-se que o presidente Roosevelt não quisera aplicar a doutrina Monroe. Na verdade, como se disse, de início Roosevelt dera a entender às chancelarias europeias que tinham o direito de recorrer à ação direta para obter pagamento dos seus créditos. O que o fez mudar de opinião não foi o recurso à força por parte do credor, mas tão somente a convicção que formou de que os alemães queriam mais do que dinheiro: queriam uma colónia nas Américas. E isso os EUA não podiam aceitar. Assim, a bem dizer, a guerra esteve quase a ocorrer, mas só envolveria a Alemanha e os Estados Unidos.
Entretanto, impressionada pela falta de vontade aparente dos Estados Unidos de fazer aplicar a doutrina Monroe, a América Latina começava a temer o amplexo norte-americano. O ministro dos negócios estrangeiros argentino, Luis Maria Drago, resolveu então criar a sua própria doutrina. A que ficou conhecida no direito internacional como doutrina Drago reza o seguinte: “Ningún Estado extranjero puede utilizar la fuerza contra una nación americana con la finalidad de cobrar una deuda financeira”.
Na Conferência de Haia, de 1907, Drago foi espoliado da sua doutrina, tendo sido adotada uma versão revista e melhorada pelo norte-americano Horace Porter, sobre a limitação do recurso à força para obter o pagamento dos créditos devidos. Quem estiver legitimamente preocupado, pode consultar o muito interessante artigo da Columbia Law Review, vol. XIII, june 1913, “Contractual Claims in International Law”. Ficarão descansados: há poucas probabilidades de Portugal ser sujeito a um bloqueio naval. Devemo-lo, em última análise, a “El Cabito”, o Revolucionário Restaurador.
 
P.S.- É óbvio: Gómez manteve-se no poder por 27 anos, tranquilamente dedicado à ditosa tarefa de reabilitar a Venezuela, porque, quando tomou o poder, se comprometeu a pagar de imediato os 7 milhões de dólares que Castro ainda devia e continuava a ameaçar não pagar.
 
José Luís Moura Jacinto
 
 

 
 
 
 
 

1 comentário:

  1. Leitura sem dúvida muito interessante. Pena que vertida em português violentado pelo Aborto Ortográfico. E que, não é inédito, se queira estender a mão embrutecedora do AO90 a outros idiomas felizmente livres de tanta estupidez. "June", em inglês, europeu ou o que for, grafa-se com "J" maiúsculo. O sr. Casteleiro não manda neles.

    Costa

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