terça-feira, 3 de março de 2015

Sanzala Mihinjo, Abril de 1961.

 


 

 
 

… e nessa hora sentiu medo.
José Luandino Vieira, Luuanda, 1963
 
 


           
             Não sabemos ao certo qual a duração da cerimónia, nem quanto tempo o soba falou ao povo. Mas, tomada a decisão, em breves instantes apenas fuzilaram cinco vidas. Dos cadáveres então feitos cortaram as cabeças. E depois o soba colocou as cabeças nos paus, onde ficaram expostas sete dias. Os paus, esses, permaneceram para sempre, à vista de todos, na Sanzala Mihinjo, Abril de 1961. Nem uma palavra, um gesto, um choro de criança sequer.
O relatório militar que aqui se publica na íntegra pela primeira vez – sem a identificação do nome do signatário – constitui um documento de extrema singularidade ([1]). Trata-se de uma cópia pertencente ao Arquivo da PIDE/DGS, na Torre do Tombo ([2]), que tudo indicia ser o único exemplar existente deste documento. Todos os outros foram destruídos pelo fogo. 
Sobre o contexto em que foi produzido, queremos apenas reter o essencial: a acção punitiva teve lugar nas proximidades do Rio Bengo, na zona da Funda e do Catete, a poucas dezenas de quilómetros de Luanda. A operação decorreu num momento histórico de grande tensão, sendo temporalmente muito próxima da sublevação da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, e, em particular, do levantamento do 4 de Fevereiro desse ano, em Luanda, e dos massacres iniciados pela UPA no Norte de Angola, em 15 de Março. As execuções na Sanzala Mihinjo ocorrem em 27 de Abril de 1961, uma altura em que já estava em curso a contra-ofensiva das autoridades portuguesas e das populações brancas relativamente aos massacres da UPA, mas em que, na Metrópole, só há muito pouco tempo a situação política e militar se clarificara, quer com a derrota do golpe Botelho Moniz, em 13 de Abril, quer com o anúncio, pelo Presidente do Conselho, da intenção de “andar rapidamente e em força” para a defesa de Angola ([3]). Entre os crudelíssimos massacres da UPA, em meados de Fevereiro, e o anúncio desta decisão por Salazar, em meados de Abril, tinham decorrido dois longos meses. Para os brancos residentes no território, bem como para as autoridades civis e militares, foram dois meses de horror e de indignação, de sentimentos de abandono e desejos de retaliação e vingança.  
            É este, em traços gerais, o quadro em que se desenvolve a auto-intitulada “acção punitiva de pacificação” na Sanzala Mihinjo. Poder-se-ia, naturalmente, explicitar as condições em que tal acção se desenrolou, bem como o processo que fez nascer este relatório e as suas vicissitudes subsequentes, que levaram à destruição pelo fogo de todos os exemplares do documento, de que salvou apenas aquele que agora publicamos ([4]). Não é essa, em todo o caso, a perspectiva que nos interessa explorar neste breve comentário. Ao invés, considera-se mesmo que devemos abstrair do contexto em que o relatório foi produzido para que possamos proceder à sua leitura nos termos em que o queremos fazer.
Nessa leitura, o ponto crucial não consiste em “explicar” o documento mas em salientar, pelo contrário, o que nele existe de auto-explicativo. Assim, pretendemos abordá-lo sob o rawlsiano veil of ignorance ou, talvez melhor, o protective veil que a fotógrafa Margaret Bourke-White dizia ter utilizado para conseguir captar algumas das primeiras imagens dos campos de concentração nazis e seus sobreviventes. Bourke-White adiantava ainda que, para realizar aquele trabalho, tivera de se munir de um self-imposed stupor.       
            A assumida descontextualização do documento evidencia que o propósito deste comentário não é historiográfico. De todo o modo, importa sublinhar que a contextualização histórica do documento, a ser feita, não conduziria necessariamente à condenação sumária nem, ao invés, à justificação imediata – jurídica ou moral – dos actos praticados. Abstraímos da consideração de saber sequer se tais actos eram justificados ou justificáveis naquele específico contexto histórico. Basta-nos ter presente que, legitimados ou não pelas circunstâncias de um tempo singular, nesse mesmo tempo – quase a seguir, em Maio de 1961 – surgiu a instrução superior para recolher todos os exemplares do relatório e destruí-los pelo fogo. Poderão ter existido outras razões para tal directiva, mas não é descabido supor que se pretendeu fazer desaparecer a prova documental de algo que se sabia ser desconforme a regras – regras jurídicas, éticas ou outras, isso pouco interessa. De resto, ao referir-se a uma acção de “pacificação”, e ao invocar normas (não ordens) para a actividade operacional dimanadas superiormente, o próprio autor do relatório intui a necessidade de um argumento legitimador dos factos ocorridos na Sanzala Mihinjo.  
O documento possui uma temporalidade óbvia, mas, a par dela, uma a-temporalidade que, justamente por ser menos óbvia, deve ser valorizada. Dir-se-á, antes de mais, que, se acaso tivesse sido redigido como um libelo anticolonial ou como um panfleto dos movimentos de libertação, dificilmente seria escrito doutra forma. Explicando melhor: a narrativa é tão impressiva que quase somos levados a crer na sua inverosimilhança. Ora, é precisamente a sua autenticidade – a autenticidade do inverosímil – que lhe confere um carácter singularíssimo. A essa singularidade absoluta outra se associa: a prova da autenticidade de um documento “inverosímil” é reforçada, curiosamente, pela tentativa da sua ocultação. E esta tentativa de ocultação constitui, por outro lado, um poderosíssimo argumento de des-legitimação dos actos praticados na Sanzala Mihinjo – se acaso a acção tivesse sido justificada e conforme às regras, por que motivo se teriam mandado destruir os relatórios que a descrevem?
É também surpreendente notar que o texto não é, nem pretende ser, mais do que um relatório de uma operação militar, elaborado segundo os cânones da escrita castrense. De acordo com tais cânones, numa primeira parte procede-se a uma descrição dos factos, a que se segue uma avaliação dos seus efeitos na população e nas tropas e, a terminar, uma conclusão sumária. No balanço final, a operação é apresentada como uma “experiência benéfica” para o pessoal militar, como se comprovou pelo “entusiasmo”, pela “rapidez” e pela “eficiência” com que, logo a seguir, revistou outra sanzala, que se verificou pertencer aos bailundos, a quem se restituíram as armas “com pancadas nas costas”. Afastaram-se com gestos de adeus, de parte a parte, manifestação de amizade que introduz aqui um ponto final no relatório que é também um ponto em que se revela, de modo flagrante, a dicotomia schmittiana amigo/inimigo. Aqueles, os bailundos, eram amigos, a quem se devolviam as catanas e se davam palmadas nas costas. Os outros, de etnia não especificada, eram potencialmente hostis, talvez até inimigos, já que entre si tinham os agressores dos brancos. Na Sanzala Mihinjo, o Esquadrão foi “fortemente sacudido” e, note-se, “posto pela primeira vez perante a realidade de uma guerra total de sobrevivência sem quartel”. Também neste plano os fuzilamentos da Sanzala Mihinjo foram uma cerimónia – uma cerimónia de iniciação numa “guerra total”. Existe, pois, um duplo registo simbólico no discurso do relatório: um, dirigido aos habitantes da sanzala, “completamente esmagados pelo aparato da cerimónia”; outro, visando os militares, que ficaram, “de uma maneira geral, pálidos”. As populações nativas e o pessoal militar foram ambos obrigados, cada qual a seu modo e com propósitos distintos, a experienciar a violência extrema, the brutality of fact, para usar palavras do pintor Francis Bacon. Dos militares, 20% ficaram com “o olhar incerto e assustado”; outros 10% “prestes a desmaiar”. “O resto portou-se bem”. Subjaz a este discurso uma avaliação do comportamento dos militares em campo, que é implicitamente condenatória daqueles que se deixaram abalar pelo que os seus olhos viram. Daí se infere, por outro lado, que a violência não se reflectia apenas sobre os moradores da sanzala, ao contrário do que uma análise maniqueísta da situação (negros vs. brancos; africanos vs. portugueses) poderia fazer crer. Assinalava-se que, para os militares no terreno, essa era a “primeira vez” – a que outras se seguiriam, possivelmente, dado o carácter “total” e “sem quartel” da “guerra”. Sublinhe-se também esta expressão: guerra. O documento, recordemo-lo, é de Abril de 1961. 
Encontrando-se na Funda, a coluna militar integrou uma viatura com dois civis e o regedor. Este último informou os militares que tinham sido localizados na Sanzala Mihinjo os agressores de José Augusto Moreira e de Joaquim da Silva Coelho. Aquela viatura acabaria por ir à frente, para que o regedor, “um preto”, fosse entretanto reunindo o povo e tivesse com ele uma “conversa sua”. Tudo sugere que esta era uma expressão local, correspondendo provavelmente às palavras usadas pelo próprio regedor, que o relatório incorpora no texto, entre aspas, sem todavia explicitar o seu significado. Esta omissão explicativa é, também ela, assaz curiosa: antes da intervenção do poder formal, corporizado pelos militares, existiu uma intervenção da autoridade local, cujo conteúdo o relator se abstém de explicar. Sendo essa intervenção própria do universo em que se situava, um universo a que o poder formal era estranho, não se descreve o seu conteúdo nem o seu sentido. Tratava-se de uma “conversa sua”, uma conversa deles.
Esse era o momento deles. E, sendo alheio a esse momento, o poder formal abstinha-se de intervir – e até mesmo de explicar em que consistiu. Era uma “conversa sua”, correspondendo ao modelo de administração que Portugal instaurara nas colónias. A autoridade do regedor, que havia sido posta em causa, era restaurada também por essa via, além da que decorrera mais explicitamente da aparição em cena dos militares portugueses. O regedor possuía o direito de ter a sua conversa com aqueles que regia. O que recompunha a autoridade questionada era, a um tempo, a intervenção reparadora do poder formalizado na sua máxima potência (a militar) e, a outro tempo, a concessão de um espaço próprio de afirmação do poder local. Há nisto a autoconsciência, por parte do detentor do poder formal, da sua relativa “estranheza” perante o ambiente em que se movia – e sobre o qual actuava com inusitada violência. A “conversa sua” ou o corte das cabeças como expediente de pacificação, entre muitos outras passagens do relatório, correspondem ao reconhecimento, pelo narrador, da sua exterioridade em face da realidade que o circundava. É sintomático que os nomes dos agressores ou do soba não sejam sequer mencionados. Apenas se identificam os agredidos e o nome do furriel que deu a ordem de fogo. O regedor é identificado tão-só como “um preto”.
Depois da “conversa sua” do regedor, re-autorizado pela acção dos Dragões através da devolução simbólica da espingarda, seria a vez do oficial, um capitão de Cavalaria, comandante das tropas e autor do relatório, ter também a sua conversa. Já não com o povo da sanzala, mas com aqueles que o soba e o regedor tinham previamente separado do resto da população. Aliás, em momento algum o comandante dos Dragões se dirige verbalmente a todo o povo, actuando sempre por intermédio do regedor ou do soba, uma vez mais segundo os códigos do modelo colonial português. A mensagem essencial que transmite às gentes da sanzala é simbólica e não-verbal, feita a partir de gestos e dispositivos cénicos de grande dramaticidade (v.g., a exposição das cabeças nos paus; a permanência por tempo indefinido dos paus na sanzala).
Os agressores são “separados” pelo regedor e pelo soba – o acto de separação e de afastamento, bem como a necessidade de o explicitar em relatório (“separou 5 dos agressores”), é, também ele, significativo. Numa nova confissão de exterioridade face ao ambiente em que actuava, o autor do relatório apresenta o povo da sanzala como um corpo uno, uma massa informe (de negros) da qual era necessário extrair os que haviam estado na “confusão com os brancos”. Todo o povo foi convocado para assistir à cerimónia: homens e mulheres, novos e velhos, crianças (nem um choro de criança sequer). O facto de ser necessário apartar os agressores do resto do povo mostra que aqueles se haviam misturado com este. Resta saber se a atribuição ao soba e ao regedor da tarefa de separar os agressores indiciava tão-só a concessão àqueles do seu espaço próprio de intervenção ou, mais do que isso, denotava a incapacidade de os militares desempenharem a tarefa em causa. E se nessa incapacidade vai inscrita a suposição implícita de que todos eram potenciais “terroristas”. Só a esta luz, à luz de um ambiente de suspeição generalizada que rodeava as acções de contra-guerrilha, se compreende a necessidade de colocar as cabeças nos paus e de deixar os paus por tempo indefinido, como sinal de aviso. É esse, no limite, o único argumento capaz de explicar o ocorrido na Sanzala Mihinjo. Caso contrário, tudo não passou de uma retaliação cega, um puro gesto de barbárie sem qualquer efeito útil do ponto de vista da prevenção e da dissuasão de novas agressões. E convém, ainda assim, nunca confundir uma eventual utilidade desta acção com a sua legitimidade.  
Os marcados para morrer eram os que tinham estado na “confusão com os brancos”. Uma vez mais, tudo indicia tratar-se de uma expressão usada no local, que o relatório incorpora. “Confusão com os brancos” não pretende configurar-se aqui como um eufemismo, mas como um conceito que recobre várias realidades possíveis, tanto podendo equivaler a uma querela verbal sem consequências como a uma confrontação física violenta, com mortos e feridos. No caso em apreço, era evidente que a “confusão” tinha sido violenta, já que as vítimas, como o relatório afirma, se encontravam “quase irreconhecíveis”. Daí que o uso da expressão “confusão com os brancos” (ao invés de “agressão aos brancos”, por exemplo) seja um ponto a salientar. Será, porventura, uma concessão linguística ao modo de falar dos autóctones. Mas também, possivelmente, uma consequência da impossibilidade de apurar, com razoável certeza, a autoria de cada um dos actos em concreto e os diferentes graus de culpabilidade dos vários envolvidos no ataque. Mesmo perante essa impossibilidade de apurar culpas, decidiu-se avançar para os fuzilamentos. A Sanzala Mihinjo, em Abril de 1961, não foi um espaço livre de Direito, mas um território em que, por algumas horas, vigorou um Direito-outro.  
O texto abandona brevemente o registo típico de um relatório militar e adquire um sentido narrativo muito diverso, ao introduzir o discurso directo:
“– Quem é que tirou a espingarda?”, perguntou o oficial.
“– Fui eu, disse um deles”.
A descrição adquire, pois, e em pleno, a vivacidade que o narrador lhe quis imprimir. Aqui, saliente-se a circunstância, absolutamente decisiva para alcançarmos o impacto deste texto, de o relator se entregar a algumas digressões de natureza “literária”, com uso de expedientes retóricos e figuras de estilo (“cabeças submissamente viradas para o chão” ou “baioneta mais impaciente”) e frases curtas, sincopadas e incisivas, para obter um efeito “cortante” sobre o leitor (um efeito tão “cortante” como o das catanas, somos tentados a dizê-lo).
O interrogatório é um momento – um instante breve – de interlocução do oficial com o grupo dos agressores, que culmina com a confissão, por parte de “um deles”, do acto de apropriação da espingarda do regedor. Esse acto relevava também do domínio do simbólico, já que é em torno dele que o oficial centra o seu interrogatório sumaríssimo. Note-se que, no início, ainda a coluna não estava na Sanzala Mihinjo, já existia a informação que os agressores haviam confessado o seu acto. Restava saber qual retirara a espingarda ao regedor. O capitão dos Dragões, ao acercar-se dos agressores, pretende saber especificamente quem praticara tal gesto de desautorização. E tem o cuidado de deixar relatado que o soba devolvera a espingarda ao regedor, sendo interessante salientar a centralidade da acção do soba: é ele quem devolve a espingarda como é ele quem “avança” no terreno e coloca as cabeças nos paus (“Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus”).   
Existem, portanto, dois momentos distintos no “julgamento” dos agressores: aquele em que o regedor e o soba os separam do resto do povo e aquele em que o oficial os interroga. Não há notícia de ter sido pronunciado um veredicto, pelo que não é descabido supor que o destino dos acusados tenha ficado marcado logo no momento em que são seleccionados entre o povo da Sanzala Mihinjo, pelo regedor e pelo soba.
Nessa hipótese, o diálogo do oficial português com o grupo torna-se irrelevante para o desfecho do processo, consistindo numa mera afirmação de autoridade e numa avalização pública da decisão das entidades locais, o soba e o regedor. Em todo o caso, é possível sustentar, ao invés, que o momento decisivo foi o do interrogatório dos agressores pelo oficial de Cavalaria. Mas também se pode defender que não é possível determinar o momento e o autor da decisão final. Ou até que, verdadeiramente, essa decisão não existiu na Sanzala Mihinjo, estando já tomada quando a coluna militar para aí se dirige. A morte dos cinco negros estaria, assim, como que pressuposta na deslocação dos Dragões à Sanzala Mihinjo.       
Seja como for, é indiscutivelmente a autoridade portuguesa que se assume, em última instância, como responsável por tudo aquilo que o relatório designa por “cerimónia”. É a autoridade portuguesa que interroga os agressores, é ela que os executa e, enfim, é ela que determina que procedimentos deveriam ser tomados: quanto ao enterro dos corpos, quanto ao tempo que as cabeças deveriam ficar expostas, quanto
à manutenção para sempre dos paus, à vista de todos. Dos paus, especificamente preparados para este efeito, dois não foram utilizados – e também nessa ausência vai implícito o sinal de aviso que se pretendia transmitir. Existe, em todo o cerimonial, uma preocupação de minúcia tão intensa quanto perversa. As cabeças foram colocadas com os rostos virados para o chão: mais do que respeitosamente, com os rostos submissamente virados para o chão. Essa era mensagem a mais óbvia. Os paus sem cabeça, aguardando serem ocupados, constituíam a outra mensagem, menos evidente, dirigida aos presentes, a advertência de que qualquer um poderia sofrer tratamento idêntico ao que agora tinha sido dado aos agressores. Para isso dois paus ficaram no terreno, sem cabeças.   
A mutilação de cadáveres foi um gesto frequente nos massacres praticados na altura em Angola. Como, de resto, noutros conflitos coevos, bastando recordar o “sorriso da Cabília” que, durante a guerra da Argélia, a FLN infligia às suas vítimas. Tratava-se, num caso como no outro, de um acto aviltante: o “sorriso de Cabília” equivalia a um ersatz da degolação das cabras e das ovelhas, representando, ao que parece, um signo particularmente vergonhoso para os aldeões argelinos. Em ambos os casos, na Argélia e em Angola, estamos perante uma cerimónia degradante, para usarmos os conceitos do labelling approach e da perspectiva interaccionista da abordagem da criminalidade ou, melhor dizendo, do desvio. A profanação do cadáver, acto tipificado criminalmente, correspondia àquilo que os partidários da UPA haviam feito nos massacres do Norte de Angola, como o atestam as fotografias publicadas, por exemplo, num opúsculo de propaganda divulgado na época, com o título Genocídio contra Portugal, ou na recente obra da jornalista Felícia Cabrita, Massacres em África. Não raramente, a genitália das vítimas era extirpada e utilizada para reforçar o sentido de opróbrio e aviltamento, com o óbvio propósito de amplificar o impacto de uma mensagem que tinha como destinatários os sobreviventes, despertando neles sentimentos de ódio e de raiva, de medo e pavor, de indignação, e desejos vindicativos de justicialismo taliónico, exercido exactamente nos mesmos moldes da ofensa praticada ([5]). Daí a razão pela qual também na contra-ofensiva portuguesa aos massacres da UPA se praticaram profanações dos cadáveres. 



 
Mais ou menos nessa altura, os estudos ultramarinistas procuraram interpretar as mutilações de cadáveres à luz das representações mentais das populações autóctones. A obra Maza, do antigo seminarista Eduardo dos Santos, investigador da Junta de Investigações do Ultramar, fornece um bom exemplo desse esforço teorético ([6]). A capa mostra uma catana a escorrer sangue. Segundo o autor, existiria um “credo terrorista”, o qual se desdobrava em várias crenças ou convicções, como “a crença obsidiante na ‘independência’ de Angola” e a crença em Nzâmbi (Deus), “tendo Lumumba substituído a Cristo nos actos do culto”. O título do livro, Maza, evoca a crença de que era possível tornar em água “os projécteis saídos das armas dos Europeus” (registe-se a expressão “Europeus”). A isto associava-se a convicção segundo a qual “um corpo mutilado não pode ressuscitar (no dia da ‘independência’), nem gozar da vida eterna”. Daí decorria o seguinte:

“a simples matança dos Europeus não bastava; era preciso mutilá-los. […]
O terrorista, confiado na ajuda de Nzâmbi e, mais em concreto, nos poderes da magia, matava e destruía, ciente da sua indemnidade. Dos casos fortuitos, em que a morte pudesse surgir, havia o recurso da ressurreição. Simplesmente, os cadáveres não podiam ser mutilados, e os cabecilhas, que, por certo, não contavam com a possibilidade de os Europeus praticarem semelhantes torpezas, não cuidaram ou não foram capazes de impor uma destrinça para o dia da ‘independência’ de Angola: os cadáveres retalhados dos Brancos não ressuscitariam; os dos terroristas, mutilados ou não, ressuscitariam. Não, a ideologia terrorista ensinava apenas que os mortos, brancos ou pretos, ressuscitariam se não fossem esquartejados”.    
 
Ainda que algo confusa, esta tentativa de explicação para as mutilações das vítimas dos ataques da UPA no Norte de Angola permite talvez perceber o espírito subjacente à instrução do oficial de Cavalaria para que, na Sanzala Mihinjo, duas cabeças fossem espetadas nos paus. Será descabido emitir um juízo sobre a eficácia dessa medida do ponto de vista dissuasório ou preventivo – na perspectiva “pacificadora”, para usar as palavras do relatório. Desde logo, porque desconhecemos as circunstâncias concretas do tempo e lugar em que tudo decorreu, afirmação que não implica qualquer atitude desculpatória ou justificativa para o que se passou na Sanzala Mihinjo. O ponto que interessa salientar é que o gesto do capitão português constitui, em si mesmo, um acto expressivo de dominação colonial realizado através de extrema violência. De dominação colonial porque é concretizado a partir de uma ideia preconcebida acerca das representações mentais do outro, do outro colonizado. Com razão ou sem ela, considerava-se que aquela linguagem simbólica e não-verbal, a linguagem da cabeça nos paus, era a única que o povo da sanzala entendia. E, por outro lado, que a mutilação dos corpos era também a única forma de alcançar, ainda que de forma brutal, a eficácia “pacificadora” que a acção buscava atingir. Ao ordenar o corte das cabeças, e a exibição destas durante sete dias, à vista de todos, considera-se implicitamente que era esse o modo de tratamento adequado à situação em causa, aquele que correspondia às convicções dos nativos em torno da ressurreição dos mortos. É esta pressuposição sobre um sistema de crenças alheio e estranho – a imposição pela força de um pré-conceito cultural – que, em síntese, permite classificar o gesto do capitão como um acto de pura violência colonial.     
Em simultâneo ou logo a seguir ao interrogatório, monta-se o dispositivo para proceder aos fuzilamentos. Como se disse, estes são designados por “cerimónia”. Mais precisamente, a “cerimónia” não começa no momento em que o regedor chega à sanzala ou em que o oficial interroga os detidos. A “cerimónia” inicia-se cinco minutos depois de estar montado um dispositivo integrado, numa primeira linha, pelo pelotão de fuzilamento e, depois, por uma segunda linha de “cortadores de cabeças”. A identificação destes não é efectuada, pelo que tanto poderiam ser militares portugueses como autóctones (o que é mais provável).  
            Repare-se também na mescla de aspectos cerimoniais tipicamente castrenses, perfeitamente predefinidos (“Clarim tocou ombro, arma, apresentar arma”), e outros que pretendem ir ao encontro do que se entendia ser – uma vez mais, num gesto de violência colonial – a cosmovisão das populações nativas. O cerimonial tem elementos historicamente sedimentados na tradição militar ocidental (v.g., os códigos e protocolos de um fuzilamento marcial) e outros que correspondem a uma tentativa de reconstrução de elementos especificamente africanos: o papel reservado ao soba, o corte das cabeças, a presença simbólica dos paus. Mas, se virmos bem, este último conjunto de elementos não emerge espontaneamente da comunidade local, antes corresponde àquilo que o oficial supunha ser o modo como aquelas populações viam o mundo. Possivelmente, estava certo nessa sua suposição. Em todo o caso, é a visão do oficial de Cavalaria que prevalece em absoluto sobre as demais. Nem registo existe de qualquer auscultação do soba e do regedor quanto ao desfecho deste episódio.      
Actuando sozinho, o comandante do esquadrão teve de improvisar no local uma ritualização compósita, europeia e africana, para alcançar o máximo efeito psicológico junto da população. Conseguiu-o. Como sempre sucede quando se aplica a pena capital, o destinatário da mensagem punitiva não é o condenado, mas os que lhe sobrevivem. O condenado é um pretexto, e o essencial do discurso autoritário não se centra nele mas nos que o circundam e presenciam a sua morte. A acção visava muito mais advertir o povo da sanzala do que punir os agressores. E, para o efeito, havia que exibir uma força avassaladora, absoluta e esmagadoramente superior a todas as demais. E havia que fazê-lo através de uma encenação que, além da exibição de força, evidenciasse que o poder formal, se quisesse, podia ser tão ou mais violento e brutal do que o daqueles que ousaram questioná-lo. Era fundamental alcançar um efeito tal que entre o povo não se ouvisse nem “um choro de criança sequer”. Não por acaso, o balanço refere, num registo positivo, que os habitantes da sanzala tinham ficado “completamente esmagados pelo aparato da cerimónia”. A acção alcançara o seu propósito.     
            A personalidade do oficial, plasmada na narrativa, não é alheia aos factos ocorridos – e talvez resida aí a explicação última de tudo o que se passou. O documento é de tal forma impressivo que dele se pode dizer que condensa e resume uma personalidade inteira. Simplesmente, esse não é um ponto que pretendamos explorar neste comentário. Descartamos, por isso, o trecho em que o relatório articula uma pretensa teoria sobre o corte das catanas e o modo como as lâminas devem bater, “em movimento de translação ao longo do fio. Golpe de corte dos alfanges árabes”. Por muito impressivos que sejam, esses considerandos tornam-se acessórios para o ponto nuclear da acção, sendo até dispersivos em relação a ele. Os considerandos do oficial servem apenas para evidenciar que, na sua perspectiva, o tipo de acção como a que teve lugar na Sanzala Mihinjo era passível de reiteração, caso as circunstâncias o exigissem. E, desse modo, assume-se que uma execução sumária sem julgamento nem garantias de defesa, seguida da profanação dos cadáveres através do corte das suas cabeças, era um expediente justificado e legítimo, tão justificado e tão legítimo que poderia ser repetido as vezes que fosse necessário.      
            Paradoxalmente, a mensagem que o soba transmite ao povo é justamente a inversa daquela que o oficial português aplica no terreno. O soba justifica o que se irá passar (“explicando a razão da cerimónia”) à luz da necessidade de garantir, de futuro, o cumprimento de processos de justiça pública e formal: “quando tem razão de queixa, faz mesmo queixa no regedor, não pode fazer mesmo justiça pelas suas mãos”. É, aliás, o soba que anuncia: “Aqueles homens quis matar mesmo. Vai morrer… etc. etc.”. O relatório utiliza o discurso directo, buscando a fidedignidade através da transcrição, real ou caricaturada, da forma de falar o português própria das populações locais. O “etc. etc.” tem afinidades com a não explicitação do significado do “conversa sua”: é mais um momento em que o narrador, em regra extremamente minucioso na descrição da cerimónia, se abstém de entrar em detalhes. Na sua perspectiva, era mais importante relatar ao mais ínfimo pormenor o ritual das execuções – ponto supérfluo, já que os seus superiores facilmente imaginariam como decorrera – do que as intervenções do soba e do regedor ou o processo que levara ao fuzilamento. Mais ainda: nos termos em que se encontra formulado, torna-se difícil perceber o que efectivamente se passara na “confusão com os brancos”. Somos informados à exaustão de todos os passos do cerimonial, mas, se observarmos de perto o relatório, concluímos que através dele não é possível perceber o que efectivamente se passou na “confusão com os brancos” e, mais decisivamente ainda, quais as motivações dos agressores. É impossível determinar se tais motivações possuíam sequer uma natureza política, se os agressores estavam integrados em alguma organização ou dela eram simpatizantes, se o ataque aos brancos se inseria ainda na onda de massacres da UPA e na violência política reinante na região. Os agredidos tinham sindo assaltados quando levavam um indígena preso ao regedor da Funda, a pedido deste. Mas que razão conduzira o regedor a solicitar a detenção do indígena? Quem era este e o que fizera? Quem eram os dois civis que acompanhavam o regedor no Land-Rover vermelho? Os agredidos? E como se apossara um dos agressores da espingarda do regedor, se este, pelo relato dos factos, aparentemente não se encontrava no local da “confusão”? Havia também um guia, de cuja existência só nos apercebemos no final do texto – de onde surgiu e onde se encontrava? O mais novo dos condenados, na iminência de ser executado, revelou que três agressores já tinham fugido. Quem eram? E por que razão esse facto não foi apurado nos interrogatórios? O relatório não oferece resposta a qualquer destas perguntas, todas, ou quase todas, essenciais para uma reconstituição completa dos factos.      
Desse modo, não admira que da leitura do texto surja a irreprimível sensação de que, além de descrever o aparato de violência que tinha por destinatários os negros e os militares dos Dragões, o relatório procura evidenciar uma capacidade de domínio que é ostentada também de baixo para cima, ou seja, que é dirigida aos superiores hierárquicos do oficial e aos demais destinatários do documento.
            Retomando o que dizíamos, existe um indiscutível paradoxo, ou até uma evidente contradição, entre os motivos invocados para o acto – a reafirmação da justiça formal e a proscrição da vindicta privada – e o acto em si mesmo, que se desenrola à margem dos dispositivos instituídos para a salvaguarda da legalidade. Em termos mais directos: ao invés de capturar os suspeitos para os submeter ao julgamento de um tribunal, com um processo próprio e garantias de defesa, os Dragões portugueses optaram por um simulacro de justiça que culminou na execução sumária de cinco seres humanos. Talvez aos seus olhos não estivessem a perpetrar um gesto de vindicta privada. Talvez se vissem a si próprios como a corporização da autoridade suprema, a um ponto tal que dispensaria a intervenção de todas as restantes (v.g., os tribunais). Ou talvez, mais simplesmente, considerassem que as razões do tempo e do local, no rescaldo dos massacres da UPA, configuravam uma situação de estado de necessidade que, mais do que justificar, obrigava a que as coisas assim se processassem. “Isto é impressionante, mas tem de ser”, disseram os dois civis presentes no local. Tem de ser.  
            Os paus ficaram no local, “à espera de futuros não respeitadores da lei”. Antevia-se, portanto, a possibilidade de o mesmo cerimonial se repetir, caso necessário. Pelo menos, foi essa a mensagem transmitida – e tudo sugere que a advertência foi inscrita e marcada no próprio terreno. Só assim se explica a presença, por tempo indefinido, dos paus na Sanzala Mihinjo (“os paus ficam para sempre”). Desempenhariam aí, de certo modo, papel idêntico ao dos pelourinhos existentes nas vilas e aldeias do Portugal de onde provieram os militares do 1º Esquadrão dos Dragões. Dos negros que morreram, nem sequer o nome conseguiremos alguma vez saber. Como não sabemos, aliás, se uma acção deste tipo foi de novo posta em prática pelos Dragões.   
            Simplesmente – e este ponto é curiosíssimo, na sua ironia –, a necessidade de reiteração de outras acções “pacificadoras” deste género, em detrimento do recurso aos mecanismos da justiça formal, representa, em certa medida, uma confissão de derrota do modelo colonial. Este mostrava-se incapaz de assegurar a paz e a justiça através dos dispositivos trazidos da Europa. Em situações-limite como esta, era obrigado (tem de ser…) ao reconhecer a inoperância dos mecanismos de prevenção e repressão trazidos da Europa. Não era a presença do regedor que evitaria a repetição de incidentes, mas a exposição das cabeças no cimo dos paus. Ao ceder à “lógica africana”, imaginária ou real, que julgava ser o único modo de tratar estes casos (a ideia de que os negros só entendiam aquela linguagem), o oficial implicitamente certifica o falhanço do projecto colonizador.    
Dir-se-á que esta afirmação corresponde a uma extrapolação excessiva feita a partir de um caso isolado. Existem, em todo o caso, outros testemunhos que permitem levantar a hipótese (sublinha-se, a hipótese) de a mutilação dos cadáveres – o corte de cabeças, em particular – ter sido praticada noutros lugares e circunstâncias ([7]). Tal não equivale, de modo algum, à emissão de um juízo de valor global sobre a acção e o comportamento das tropas portuguesas em África. Todavia, se o poder formal português, para conseguir pacificar as populações, se sentia na contingência de praticar actos idênticos aos dos “terroristas”, replicando os massacres da UPA, isso significa o reconhecimento da crise profunda do modelo colonial que vinha sendo aplicado nos territórios ultramarinos. É que, sublinhe-se, tais actos da UPA foram condenados com veemência e indignação justamente por serem adversos aos princípios e valores civilizacionais que se queriam instaurar nos trópicos. A presença dos portugueses em África só tinha sentido e justificação se, no cumprimento de uma mission civilizatrice, tal como proclamado pelo propagandismo do regime, conseguisse pôr termo a uma cultura que permitia actos de barbárie como aqueles que a UPA perpetrara. Se, em situações-limite, tivesse de falar a linguagem as catanas e dos paus para se fazer ouvir, isso punha claramente em causa a razão de ser de um projecto colonizador que se assumia, antes de mais, como um projecto civilizador. Não por acaso, Eduardo dos Santos refere que os dirigentes da UPA “não contavam com a possibilidade de os Europeus praticarem semelhantes torpezas”. Mas fizeram-no. E, ao fazê-lo, numa dimensão e numa escala que caberá à História apurar, revelaram que tiveram de ceder à linguagem do colonizado, já que não fora possível instaurar a linguagem do colonizador. Outra hipótese se suscita, e não implausível: a linguagem do colonizador transportava já, em si mesma, o discurso das cabeças nos paus. Não necessitou de se “africanizar” para que da sua voz se ouvisse o som e a fúria. Eis um ponto sobre o qual só poderemos reflectir e opinar quando tivermos uma informação factual mais completa e fidedigna da presença portuguesa em África, designadamente no tempo da guerra. Esse é um trabalho que compete aos historiadores realizar e que ultrapassa em muito o âmbito e o propósito deste brevíssimo comentário.           
 
***
 
            O relatório é acompanhado de um croquis do dispositivo montado no terreno. A dado trecho, fala-se de seis armas que dispararam, quando sabemos, por outra passagem do documento, que eram cinco os agressores condenados à morte. É possível que existisse um atirador suplementar no pelotão de fuzilamento. Desconhecemos os procedimentos utilizados em situações análogas, mas, no relatório, parece existir um lapso na indicação de seis atiradores (“As 6 P. M. dispararam”). Necessitámos, por isso, de verificar o número de vítimas e de atiradores. No desenho, surgem assinalados os terroristas, os membros do pelotão de fuzilamento e os cortadores de cabeças. Com a ponta do lápis, percorremos o croquis e, com a legenda “terroristas”, contámos cinco pequenos círculos. A cada um corresponde uma vida.   
 

 
 
DRAGÕES – 1º ESQUADRÃO
ASSUNTO: ACÇÃO PUNITIVA DE PACIFICAÇÃO DE 250930 ABR NA SANZALA MIHINJO
 
 
            Para cumprimento no exarado em alínea c) nº 2 das Normas para a actividade operacional, nº 2 do C. M. A. (Q.G.-3ª Rep.) 21ABR61
 
            Pelas 09H00 o Esquadrão (-) estava na Funda, onde integrou na coluna um “Land-Rover vermelho” com dois civis e o regedor da localidade (um preto). Este informou que pelo menos 5 dos agressores de [...]  e [...] estavam na Sanzala MIHINJO, já tinha estado com eles e que tinham confessado.
            às 09H30 estávamos a 1 Klm. da sanzala.
            Avançou a viatura dos civis com mais o guia da coluna – o [...], armado de 375 com a missão de deixar o regedor na sanzala para ir reunindo o povo para uma “conversa sua”.
            Às 09H45 partiu a coluna a toda a velocidade, cercando a sanzala. Operação em U apoiando as extremidades no Rio Bengo.
            Pelas 10H00 o regedor e o soba da sanzala separou 5 dos agressores que se sentaram no chão, com guarda.
            Interrogados por mim, confessaram que tinham estado na confusão com os brancos.
            - Quem é que tirou a espingarda?
            - Fui eu, disse um deles.
            O Soba já tinha entregado a espingarda ao regedor.
            Pelas 10H30 estava montado o dispositivo em anexo.
            Às 10H35 deu-se início à cerimónia:
            1 – O soba falou ao povo explicando a razão da cerimónia, acrescentando: - Quando tem razão de queixa, faz mesmo queixa no regedor, não pode fazer mesmo justiça pelas suas mãos. Aqueles homens quis matar mesmo. Vai morrer… etc. etc.
            2 – Clarim tocou a sentido, ombro arma, apresentar arma.
            3 – Furriel [...] disse:
            - Pelotão de execução, preparar, apontar. Fogo.
            4 – As 6 P.M. dispararam. Os terroristas caíram.
            5 – Avançaram os cortadores de cabeças. Cumpriram a sua missão.
            6 – Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas para o chão.
            7 – Clarim tocou ombro arma, apresentar arma.
            8 – Soba falou ao povo, explicando a razão porque tinham ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei.
            9 – Ao soba eu disse: os corpos podem ser enterrados as cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre.
            10 – O Esquadrão regressou ao Quartel.
            11 – Levei a secção Penaguião ao Hospital para que vissem os dois agredidos
            - Um estava em coma, na reanimação.
            - O outro já se sentava.
Ambos quase irreconhecíveis, pois tinham sido barbaramente agredidos à catanada, pedrada e paulada.
Foram assaltados no Klm. 56 do C.F. – Fundo Cabiri, quando levavam um indígena preso para o regedor da Funda: operação efectuada a pedido do regedor.
 
---- X ----
 
            REACÇÕES:
            Do povo da sanzala – completamente esmagados pelo aparato da cerimónia. Nem uma palavra, um gesto, um choro de criança sequer.
            Os condenados – inicialmente com ar arrogante, a gesticular e falar muito com o regedor e soba. Quando se começaram a [?] os paus, ficaram calados. O mais novo, nessa altura, disse que três já tinham fugido. No final já estavam com a assistência indígena, completamente vencidos e conformados.
            Os civis – guia e 2 ocupantes do “Land Rover”, um pouco impressionados:
                        - Isto é impressionante, mas tem de ser.
            O nosso pessoal militar: de uma maneira geral, pálidos. Cerca de 20% com o olhar incerto e assustado. Cerca de 10% prestes a desmaiar. O resto portou-se bem.
            As catanas têm de estar bem afiadas (não estavam) saltavam ao bater, como se fosse em borracha. O corte da catana requer a sua técnica não deve ser em pancada directa e seca. A lâmina deve bater em movimento de translação ao longo do fio. Golpe de corte dos alfanges árabes.
 
CONCLUSÃO
  1. – No respeitante ao efeito da cerimónia, no elemento indígena, teremos de esperar uns dias pelos relatórios dos administradores da região.
  2. – No pessoal: Foi fortemente sacudido e posto pela primeira vez perante a realidade de uma guerra total de sobrevivência sem quartel. A experiência foi-lhe benéfica, pois:
Quando o pelotão parou, já na estrada de Catete, a ordem dada a uma secção para juntar o pessoal e revistar uma pequena sanzala de um dos lados da estrada foi cumprida com uma eficiência, rapidez e entusiasmo jamais vistos nas operações anteriores desta natureza. No final verificou-se serem Bailundos. Foram-lhes restituídas as catanas, enxadas e demais ferros com “pancadas nas costas”. O Sargento enfermeiro interveio pela primeira vez, para pensar um buraco de uma baioneta mais impaciente no braço de um deles. Afastámo-nos com gestos de adeus, de parte a parte.

Luanda, 27 de Abril de 1961
 
O COMANDANTE DO 1º ESQUADRÃO DE DRAGÕES
[ass.]
[identificação no original]
Cap. de Cavª
 
 
           
 



[1] Um pequeno trecho do relatório foi publicado por Marcelo Bittencourt, “Modernidade e atraso na luta de libertação angolana”, in Daniel Aarão Reis e Denis Rolland (org.), Modernidades Alternativas, Rio de Janeiro, Editôra FGV, 2008, pp. 277-294.
[2] ANTT-PIDE/DGS, Delegação de Angola, NT 11568.
[3] Cf. António de Oliveira Salazar, “Ao assumir a pasta da Defesa Nacional” [declarações proferidas, através da Rádio e da Televisão, em 13 de Abril de 1961”, in Discursos e Notas Políticas. Vol. VI – 1959-1966, Coimbra, Coimbra Editora, 1967, pp. 123-124. 
[4] De acordo com a documentação existente na Torre do Tombo, o relatório do 1º Esquadrão de Dragões, datado de 27 de Abril, foi enviado pelo seu signatário – e comandante daquele Esquadrão –, no dia 29, a duas entidades militares e ao director da delegação da PIDE em Luanda. Em 12 de Maio, o subdirector da delegação da PIDE em Luanda enviou cópia do relatório para Lisboa, em ofício endereçado ao director-geral daquela polícia. O comandante da 3ª Região Militar determinaria, em 27 de Maio, a destruição, pelo fogo de todos os exemplares do documento. Em cumprimento dessa ordem, o comandante do 1º Esquadrão de Dragões enviou um ofício à delegação da PIDE em Luanda, em 8 de Junho, solicitando-lhe que esta devolvesse o exemplar na sua posse. A delegação da PIDE em Luanda devolve a documentação em 19 de Junho e, a 21 desse mês, transmite à sede, em Lisboa, a directiva do comandante da 3ª Região Militar. A cópia do relatório que ainda existe é, ao que tudo indicia, a enviada à sede da PIDE, não tendo esta polícia, por conseguinte, dado cumprimento às instruções das autoridades militares. Tal facto pode dever-se às mais variadas razões. Tanto pode ter existido uma omissão involuntária como, ao invés, um excesso de zelo burocrático que levou à conservação de cópia do documento. Pode ainda ter havido uma intenção deliberada, por razões de outra índole, para a PIDE guardar em seu poder cópia de um relatório que se revestia de uma natureza claramente “comprometedora” para as autoridades militares.              
[5] Ainda recentemente, o padre Francisco Jorge, capelão militar que acompanhou o batalhão que tomou Nambuangongo, explicava o facto de os portugueses cortarem as cabeças dos guerrilheiros e de as colocarem em estacas à beira das estradas e nas picadas: os indígenas só acreditavam que morreriam se fossem mutilados e, por isso, havia que mostrar que os portugueses não só eram capazes de praticar os mesmos actos bárbaros dos rebeldes da UPA como tinham o poder de matar negros que se julgavam imunes às suas balas (cf. o depoimento do Pe. Francisco Jorge na série televisiva da autoria de Joaquim Furtado, A Guerra, RTP, 4º episódio, 6-XI-2007),.
[6] Cf. Eduardo dos Santos, Maza. Elementos de Etno-História para a interpretação do terrorismo no Noroeste de Angola, Lisboa, Edição do Autor, 1965, pp. 47ss.
[7] Cf., além do testemunho do padre Francisco Jorge, citado na nota 5, o relato memorialístico de Otelo Saraiva de Carvalho in Paulo Moura, Otelo. O Revolucionário, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012, pp. 88ss







António Araújo




[texto publicado no livro O Império Colonial em Questão. Poderes, Saberes e Instituições, org. de Miguel Bandeira Jerónimo, Lisboa, Edições 70, 2012, com notícia no Público, aqui]

  



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