… e nessa hora sentiu medo.
José Luandino Vieira, Luuanda, 1963
Não sabemos ao certo qual a duração da
cerimónia, nem quanto tempo o soba falou ao povo. Mas, tomada a decisão, em
breves instantes apenas fuzilaram cinco vidas. Dos cadáveres então feitos cortaram
as cabeças. E depois o soba colocou as cabeças nos paus, onde ficaram expostas
sete dias. Os paus, esses, permaneceram para sempre, à vista de todos, na Sanzala
Mihinjo, Abril de 1961. Nem uma palavra, um gesto, um choro de criança sequer.
O
relatório militar que aqui se publica na íntegra pela primeira vez – sem a identificação do nome do signatário – constitui um documento de
extrema singularidade ([1]).
Trata-se de uma cópia pertencente ao Arquivo da PIDE/DGS, na Torre do Tombo ([2]),
que tudo indicia ser o único exemplar existente deste documento. Todos os
outros foram destruídos pelo fogo.
Sobre
o contexto em que foi produzido, queremos apenas reter o essencial: a acção
punitiva teve lugar nas proximidades do Rio Bengo, na zona da Funda e do
Catete, a poucas dezenas de quilómetros de Luanda. A operação decorreu num
momento histórico de grande tensão, sendo temporalmente muito próxima da
sublevação da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, e, em particular, do
levantamento do 4 de Fevereiro desse ano, em Luanda, e dos massacres iniciados
pela UPA no Norte de Angola, em 15 de Março. As execuções na Sanzala Mihinjo
ocorrem em 27 de Abril de 1961, uma altura em que já estava em curso a
contra-ofensiva das autoridades portuguesas e das populações brancas
relativamente aos massacres da UPA, mas em que, na Metrópole, só há muito pouco
tempo a situação política e militar se clarificara, quer com a derrota do golpe
Botelho Moniz, em 13 de Abril, quer com o anúncio, pelo Presidente do Conselho,
da intenção de “andar rapidamente e em força” para a defesa de Angola ([3]).
Entre os crudelíssimos massacres da UPA, em meados de Fevereiro, e o anúncio
desta decisão por Salazar, em meados de Abril, tinham decorrido dois longos
meses. Para os brancos residentes no território, bem como para as autoridades
civis e militares, foram dois meses de horror e de indignação, de sentimentos
de abandono e desejos de retaliação e vingança.
É este, em traços gerais, o quadro
em que se desenvolve a auto-intitulada “acção punitiva de pacificação” na
Sanzala Mihinjo. Poder-se-ia, naturalmente, explicitar as condições em que tal
acção se desenrolou, bem como o processo que fez nascer este relatório e as
suas vicissitudes subsequentes, que levaram à destruição pelo fogo de todos os
exemplares do documento, de que salvou apenas aquele que agora publicamos ([4]).
Não é essa, em todo o caso, a perspectiva que nos interessa explorar neste
breve comentário. Ao invés, considera-se mesmo que devemos abstrair do contexto
em que o relatório foi produzido para que possamos proceder à sua leitura nos
termos em que o queremos fazer.
Nessa
leitura, o ponto crucial não consiste em “explicar” o documento mas em salientar,
pelo contrário, o que nele existe de auto-explicativo. Assim, pretendemos
abordá-lo sob o rawlsiano veil of
ignorance ou, talvez melhor, o protective
veil que a fotógrafa Margaret Bourke-White dizia ter utilizado para conseguir
captar algumas das primeiras imagens dos campos de concentração nazis e seus
sobreviventes. Bourke-White adiantava ainda que, para realizar aquele trabalho,
tivera de se munir de um self-imposed
stupor.
A assumida descontextualização do documento
evidencia que o propósito deste comentário não é historiográfico. De todo o
modo, importa sublinhar que a contextualização histórica do documento, a ser
feita, não conduziria necessariamente à condenação sumária nem, ao invés, à justificação
imediata – jurídica ou moral – dos actos praticados. Abstraímos da consideração
de saber sequer se tais actos eram justificados ou justificáveis naquele
específico contexto histórico. Basta-nos ter presente que, legitimados ou não
pelas circunstâncias de um tempo singular, nesse
mesmo tempo – quase a seguir, em Maio de 1961 – surgiu a instrução superior
para recolher todos os exemplares do relatório e destruí-los pelo fogo. Poderão
ter existido outras razões para tal directiva, mas não é descabido supor que se
pretendeu fazer desaparecer a prova documental de algo que se sabia ser
desconforme a regras – regras jurídicas, éticas ou outras, isso pouco interessa.
De resto, ao referir-se a uma acção de “pacificação”, e ao invocar normas (não
ordens) para a actividade operacional dimanadas superiormente, o próprio autor
do relatório intui a necessidade de um argumento legitimador dos factos ocorridos
na Sanzala Mihinjo.
O
documento possui uma temporalidade óbvia, mas, a par dela, uma a-temporalidade
que, justamente por ser menos óbvia, deve ser valorizada. Dir-se-á, antes de
mais, que, se acaso tivesse sido redigido como um libelo anticolonial ou como
um panfleto dos movimentos de libertação, dificilmente seria escrito doutra
forma. Explicando melhor: a narrativa é tão impressiva que quase somos levados
a crer na sua inverosimilhança. Ora, é precisamente a sua autenticidade – a autenticidade do inverosímil – que lhe
confere um carácter singularíssimo. A essa singularidade absoluta outra se
associa: a prova da autenticidade de um documento “inverosímil” é reforçada,
curiosamente, pela tentativa da sua ocultação. E esta tentativa de ocultação
constitui, por outro lado, um poderosíssimo argumento de des-legitimação dos
actos praticados na Sanzala Mihinjo – se acaso a acção tivesse sido justificada
e conforme às regras, por que motivo se teriam mandado destruir os relatórios
que a descrevem?
É
também surpreendente notar que o texto não é, nem pretende ser, mais do que um
relatório de uma operação militar, elaborado segundo os cânones da escrita
castrense. De acordo com tais cânones, numa primeira parte procede-se a uma
descrição dos factos, a que se segue uma avaliação dos seus efeitos na
população e nas tropas e, a terminar, uma conclusão sumária. No balanço final,
a operação é apresentada como uma “experiência benéfica” para o pessoal
militar, como se comprovou pelo “entusiasmo”, pela “rapidez” e pela
“eficiência” com que, logo a seguir, revistou outra sanzala, que se verificou
pertencer aos bailundos, a quem se restituíram as armas “com pancadas nas
costas”. Afastaram-se com gestos de adeus, de parte a parte, manifestação de
amizade que introduz aqui um ponto final no relatório que é também um ponto em
que se revela, de modo flagrante, a dicotomia schmittiana amigo/inimigo.
Aqueles, os bailundos, eram amigos, a
quem se devolviam as catanas e se davam palmadas nas costas. Os outros, de
etnia não especificada, eram potencialmente hostis, talvez até inimigos, já que
entre si tinham os agressores dos brancos. Na Sanzala Mihinjo, o Esquadrão foi
“fortemente sacudido” e, note-se, “posto pela primeira vez perante a realidade
de uma guerra total de sobrevivência sem quartel”. Também neste plano os
fuzilamentos da Sanzala Mihinjo foram uma cerimónia
– uma cerimónia de iniciação numa “guerra total”. Existe, pois, um duplo
registo simbólico no discurso do relatório: um, dirigido aos habitantes da
sanzala, “completamente esmagados pelo aparato da cerimónia”; outro, visando os
militares, que ficaram, “de uma maneira geral, pálidos”. As populações nativas
e o pessoal militar foram ambos obrigados, cada qual a seu modo e com
propósitos distintos, a experienciar a violência extrema, the brutality of fact, para usar palavras do pintor Francis Bacon. Dos
militares, 20% ficaram com “o olhar incerto e assustado”; outros 10% “prestes a
desmaiar”. “O resto portou-se bem”.
Subjaz a este discurso uma avaliação do comportamento dos militares em campo,
que é implicitamente condenatória daqueles que se deixaram abalar pelo que os
seus olhos viram. Daí se infere, por outro lado, que a violência não se
reflectia apenas sobre os moradores da sanzala, ao contrário do que uma análise
maniqueísta da situação (negros vs.
brancos; africanos vs. portugueses)
poderia fazer crer. Assinalava-se que, para os militares no terreno, essa era a
“primeira vez” – a que outras se seguiriam, possivelmente, dado o carácter
“total” e “sem quartel” da “guerra”. Sublinhe-se também esta expressão: guerra. O documento, recordemo-lo, é de
Abril de 1961.
Encontrando-se
na Funda, a coluna militar integrou uma viatura com dois civis e o regedor. Este
último informou os militares que tinham sido localizados na Sanzala Mihinjo os
agressores de José Augusto Moreira e de Joaquim da Silva Coelho. Aquela viatura
acabaria por ir à frente, para que o regedor, “um preto”, fosse entretanto
reunindo o povo e tivesse com ele uma “conversa sua”. Tudo sugere que esta era
uma expressão local, correspondendo provavelmente às palavras usadas pelo
próprio regedor, que o relatório incorpora no texto, entre aspas, sem todavia explicitar
o seu significado. Esta omissão explicativa é, também ela, assaz curiosa: antes
da intervenção do poder formal, corporizado pelos militares, existiu uma
intervenção da autoridade local, cujo conteúdo o relator se abstém de explicar.
Sendo essa intervenção própria do universo em que se situava, um universo a que
o poder formal era estranho, não se descreve o seu conteúdo nem o seu sentido.
Tratava-se de uma “conversa sua”, uma conversa
deles.
Esse
era o momento deles. E, sendo alheio
a esse momento, o poder formal abstinha-se de intervir – e até mesmo de explicar
em que consistiu. Era uma “conversa sua”, correspondendo ao modelo de
administração que Portugal instaurara nas colónias. A autoridade do regedor,
que havia sido posta em causa, era restaurada também por essa via, além da que
decorrera mais explicitamente da aparição em cena dos militares portugueses. O
regedor possuía o direito de ter a sua
conversa com aqueles que regia. O que recompunha a autoridade questionada
era, a um tempo, a intervenção reparadora do poder formalizado na sua máxima
potência (a militar) e, a outro tempo, a concessão de um espaço próprio de
afirmação do poder local. Há nisto a autoconsciência, por parte do detentor do
poder formal, da sua relativa “estranheza” perante o ambiente em que se movia –
e sobre o qual actuava com inusitada violência. A “conversa sua” ou o corte das
cabeças como expediente de pacificação, entre muitos outras passagens do
relatório, correspondem ao reconhecimento, pelo narrador, da sua exterioridade
em face da realidade que o circundava. É sintomático que os nomes dos
agressores ou do soba não sejam sequer mencionados. Apenas se identificam os
agredidos e o nome do furriel que deu a ordem de fogo. O regedor é identificado
tão-só como “um preto”.
Depois
da “conversa sua” do regedor, re-autorizado
pela acção dos Dragões através da devolução simbólica da espingarda, seria a
vez do oficial, um capitão de Cavalaria, comandante das tropas e autor do
relatório, ter também a sua conversa.
Já não com o povo da sanzala, mas com aqueles que o soba e o regedor tinham
previamente separado do resto da população. Aliás, em momento algum o comandante
dos Dragões se dirige verbalmente a todo o povo, actuando sempre por intermédio
do regedor ou do soba, uma vez mais segundo os códigos do modelo colonial
português. A mensagem essencial que transmite às gentes da sanzala é simbólica
e não-verbal, feita a partir de gestos e dispositivos cénicos de grande
dramaticidade (v.g., a exposição das
cabeças nos paus; a permanência por tempo indefinido dos paus na sanzala).
Os
agressores são “separados” pelo regedor e pelo soba – o acto de separação e de
afastamento, bem como a necessidade de o explicitar em relatório (“separou 5
dos agressores”), é, também ele, significativo. Numa nova confissão de
exterioridade face ao ambiente em que actuava, o autor do relatório apresenta o
povo da sanzala como um corpo uno, uma massa informe (de negros) da qual era
necessário extrair os que haviam estado na “confusão com os brancos”. Todo o
povo foi convocado para assistir à cerimónia: homens e mulheres, novos e
velhos, crianças (nem um choro de criança
sequer). O facto de ser necessário apartar os agressores do resto do povo mostra
que aqueles se haviam misturado com este. Resta saber se a atribuição ao soba e
ao regedor da tarefa de separar os agressores indiciava tão-só a concessão
àqueles do seu espaço próprio de intervenção ou, mais do que isso, denotava a
incapacidade de os militares desempenharem a tarefa em causa. E se nessa
incapacidade vai inscrita a suposição implícita de que todos eram potenciais
“terroristas”. Só a esta luz, à luz de um ambiente de suspeição generalizada
que rodeava as acções de contra-guerrilha, se compreende a necessidade de
colocar as cabeças nos paus e de deixar os paus por tempo indefinido, como
sinal de aviso. É esse, no limite, o único argumento capaz de explicar o
ocorrido na Sanzala Mihinjo. Caso contrário, tudo não passou de uma retaliação
cega, um puro gesto de barbárie sem qualquer efeito útil do ponto de vista da
prevenção e da dissuasão de novas agressões. E convém, ainda assim, nunca
confundir uma eventual utilidade
desta acção com a sua legitimidade.
Os
marcados para morrer eram os que tinham estado na “confusão com os brancos”.
Uma vez mais, tudo indicia tratar-se de uma expressão usada no local, que o
relatório incorpora. “Confusão com os brancos” não pretende configurar-se aqui
como um eufemismo, mas como um conceito que recobre várias realidades possíveis,
tanto podendo equivaler a uma querela verbal sem consequências como a uma confrontação
física violenta, com mortos e feridos. No caso em apreço, era evidente que a
“confusão” tinha sido violenta, já que as vítimas, como o relatório afirma, se
encontravam “quase irreconhecíveis”. Daí que o uso da expressão “confusão com
os brancos” (ao invés de “agressão aos brancos”, por exemplo) seja um ponto a
salientar. Será, porventura, uma concessão linguística ao modo de falar dos
autóctones. Mas também, possivelmente, uma consequência da impossibilidade de
apurar, com razoável certeza, a autoria de cada um dos actos em concreto e os
diferentes graus de culpabilidade dos vários envolvidos no ataque. Mesmo
perante essa impossibilidade de apurar culpas, decidiu-se avançar para os
fuzilamentos. A Sanzala Mihinjo, em Abril de 1961, não foi um espaço livre de
Direito, mas um território em que, por algumas horas, vigorou um Direito-outro.
O
texto abandona brevemente o registo típico de um relatório militar e adquire um
sentido narrativo muito diverso, ao introduzir o discurso directo:
“–
Quem é que tirou a espingarda?”, perguntou o oficial.
“–
Fui eu, disse um deles”.
A
descrição adquire, pois, e em pleno, a vivacidade que o narrador lhe quis
imprimir. Aqui, saliente-se a circunstância, absolutamente decisiva para
alcançarmos o impacto deste texto, de o relator se entregar a algumas
digressões de natureza “literária”, com uso de expedientes retóricos e figuras de
estilo (“cabeças submissamente viradas para o chão” ou “baioneta mais impaciente”) e frases curtas, sincopadas
e incisivas, para obter um efeito “cortante” sobre o leitor (um efeito tão
“cortante” como o das catanas, somos tentados a dizê-lo).
O
interrogatório é um momento – um instante breve – de interlocução do oficial
com o grupo dos agressores, que culmina com a confissão, por parte de “um
deles”, do acto de apropriação da espingarda do regedor. Esse acto relevava
também do domínio do simbólico, já que é em torno dele que o oficial centra o seu
interrogatório sumaríssimo. Note-se que, no início, ainda a coluna não estava
na Sanzala Mihinjo, já existia a informação que os agressores haviam confessado
o seu acto. Restava saber qual retirara a espingarda ao regedor. O capitão dos
Dragões, ao acercar-se dos agressores, pretende saber especificamente quem
praticara tal gesto de desautorização. E tem o cuidado de deixar relatado que o
soba devolvera a espingarda ao regedor, sendo interessante salientar a
centralidade da acção do soba: é ele quem devolve a espingarda como é ele quem
“avança” no terreno e coloca as cabeças nos paus (“Avançou o soba. Colocou as
cabeças nos paus”).
Existem,
portanto, dois momentos distintos no “julgamento” dos agressores: aquele em que
o regedor e o soba os separam do resto do povo e aquele em que o oficial os
interroga. Não há notícia de ter sido pronunciado um veredicto, pelo que não é
descabido supor que o destino dos acusados tenha ficado marcado logo no momento
em que são seleccionados entre o povo da Sanzala Mihinjo, pelo regedor e pelo
soba.
Nessa
hipótese, o diálogo do oficial português com o grupo torna-se irrelevante para
o desfecho do processo, consistindo numa mera afirmação de autoridade e numa
avalização pública da decisão das entidades locais, o soba e o regedor. Em todo
o caso, é possível sustentar, ao invés, que o momento decisivo foi o do interrogatório
dos agressores pelo oficial de Cavalaria. Mas também se pode defender que não é
possível determinar o momento e o autor da decisão final. Ou até que,
verdadeiramente, essa decisão não existiu na Sanzala Mihinjo, estando já tomada
quando a coluna militar para aí se dirige. A morte dos cinco negros estaria,
assim, como que pressuposta na deslocação dos Dragões à Sanzala Mihinjo.
Seja
como for, é indiscutivelmente a autoridade portuguesa que se assume, em última
instância, como responsável por tudo aquilo que o relatório designa por
“cerimónia”. É a autoridade portuguesa que interroga os agressores, é ela que
os executa e, enfim, é ela que determina que procedimentos deveriam ser tomados:
quanto ao enterro dos corpos, quanto ao tempo que as cabeças deveriam ficar
expostas, quanto
à manutenção para sempre dos paus, à vista de todos. Dos paus, especificamente preparados para este efeito, dois não foram utilizados – e também nessa ausência vai implícito o sinal de aviso que se pretendia transmitir. Existe, em todo o cerimonial, uma preocupação de minúcia tão intensa quanto perversa. As cabeças foram colocadas com os rostos virados para o chão: mais do que respeitosamente, com os rostos submissamente virados para o chão. Essa era mensagem a mais óbvia. Os paus sem cabeça, aguardando serem ocupados, constituíam a outra mensagem, menos evidente, dirigida aos presentes, a advertência de que qualquer um poderia sofrer tratamento idêntico ao que agora tinha sido dado aos agressores. Para isso dois paus ficaram no terreno, sem cabeças.
à manutenção para sempre dos paus, à vista de todos. Dos paus, especificamente preparados para este efeito, dois não foram utilizados – e também nessa ausência vai implícito o sinal de aviso que se pretendia transmitir. Existe, em todo o cerimonial, uma preocupação de minúcia tão intensa quanto perversa. As cabeças foram colocadas com os rostos virados para o chão: mais do que respeitosamente, com os rostos submissamente virados para o chão. Essa era mensagem a mais óbvia. Os paus sem cabeça, aguardando serem ocupados, constituíam a outra mensagem, menos evidente, dirigida aos presentes, a advertência de que qualquer um poderia sofrer tratamento idêntico ao que agora tinha sido dado aos agressores. Para isso dois paus ficaram no terreno, sem cabeças.
A
mutilação de cadáveres foi um gesto frequente nos massacres praticados na
altura em Angola. Como, de resto, noutros conflitos coevos, bastando recordar o
“sorriso da Cabília” que, durante a guerra da Argélia, a FLN infligia às suas
vítimas. Tratava-se, num caso como no outro, de um acto aviltante: o “sorriso
de Cabília” equivalia a um ersatz da
degolação das cabras e das ovelhas, representando, ao que parece, um signo
particularmente vergonhoso para os aldeões argelinos. Em ambos os casos, na
Argélia e em Angola, estamos perante uma cerimónia
degradante, para usarmos os conceitos do labelling approach e da perspectiva interaccionista da abordagem da
criminalidade ou, melhor dizendo, do desvio. A profanação do cadáver, acto
tipificado criminalmente, correspondia àquilo que os partidários da UPA haviam
feito nos massacres do Norte de Angola, como o atestam as fotografias
publicadas, por exemplo, num opúsculo de propaganda divulgado na época, com o
título Genocídio contra Portugal, ou
na recente obra da jornalista Felícia Cabrita, Massacres em África. Não raramente, a genitália das vítimas era extirpada
e utilizada para reforçar o sentido de opróbrio e aviltamento, com o óbvio
propósito de amplificar o impacto de uma mensagem que tinha como destinatários
os sobreviventes, despertando neles sentimentos de ódio e de raiva, de medo e
pavor, de indignação, e desejos vindicativos de justicialismo taliónico, exercido
exactamente nos mesmos moldes da
ofensa praticada ([5]).
Daí a razão pela qual também na contra-ofensiva portuguesa aos massacres da UPA
se praticaram profanações dos cadáveres.
Mais
ou menos nessa altura, os estudos
ultramarinistas procuraram interpretar as mutilações de cadáveres à luz das
representações mentais das populações autóctones. A obra Maza, do antigo seminarista Eduardo dos Santos, investigador da
Junta de Investigações do Ultramar, fornece um bom exemplo desse esforço teorético
([6]).
A capa mostra uma catana a escorrer sangue. Segundo o autor, existiria um
“credo terrorista”, o qual se desdobrava em várias crenças ou convicções, como
“a crença obsidiante na ‘independência’ de Angola” e a crença em Nzâmbi (Deus), “tendo Lumumba
substituído a Cristo nos actos do culto”. O título do livro, Maza, evoca a crença de que era possível
tornar em água “os projécteis saídos das armas dos Europeus” (registe-se a
expressão “Europeus”). A isto associava-se a convicção segundo a qual “um corpo
mutilado não pode ressuscitar (no dia da ‘independência’), nem gozar da vida
eterna”. Daí decorria o seguinte:
“a
simples matança dos Europeus não bastava; era preciso mutilá-los. […]
O
terrorista, confiado na ajuda de Nzâmbi
e, mais em concreto, nos poderes da magia, matava e destruía, ciente da sua
indemnidade. Dos casos fortuitos, em que a morte pudesse surgir, havia o
recurso da ressurreição.
Simplesmente, os cadáveres não podiam ser mutilados, e os cabecilhas, que, por
certo, não contavam com a possibilidade de os Europeus praticarem semelhantes
torpezas, não cuidaram ou não foram capazes de impor uma destrinça para o dia
da ‘independência’ de Angola: os cadáveres retalhados dos Brancos não ressuscitariam; os dos terroristas,
mutilados ou não, ressuscitariam.
Não, a ideologia terrorista ensinava apenas que os mortos, brancos ou pretos,
ressuscitariam se não fossem esquartejados”.
Ainda
que algo confusa, esta tentativa de explicação para as mutilações das vítimas
dos ataques da UPA no Norte de Angola permite talvez perceber o espírito
subjacente à instrução do oficial de Cavalaria para que, na Sanzala Mihinjo,
duas cabeças fossem espetadas nos paus. Será descabido emitir um juízo sobre a
eficácia dessa medida do ponto de vista dissuasório ou preventivo – na
perspectiva “pacificadora”, para usar as palavras do relatório. Desde logo,
porque desconhecemos as circunstâncias concretas do tempo e lugar em que tudo
decorreu, afirmação que não implica qualquer atitude desculpatória ou
justificativa para o que se passou na Sanzala Mihinjo. O ponto que interessa
salientar é que o gesto do capitão português constitui, em si mesmo, um acto expressivo
de dominação colonial realizado através de extrema violência. De dominação colonial porque é concretizado a partir
de uma ideia preconcebida acerca das representações mentais do outro, do outro colonizado.
Com razão ou sem ela, considerava-se que aquela linguagem simbólica e
não-verbal, a linguagem da cabeça nos paus, era a única que o povo da sanzala
entendia. E, por outro lado, que a mutilação dos corpos era também a única
forma de alcançar, ainda que de forma brutal, a eficácia “pacificadora” que a
acção buscava atingir. Ao ordenar o corte das cabeças, e a exibição destas durante
sete dias, à vista de todos, considera-se implicitamente que era esse o modo de
tratamento adequado à situação em causa, aquele que correspondia às convicções
dos nativos em torno da ressurreição dos mortos. É esta pressuposição sobre um
sistema de crenças alheio e estranho – a imposição pela força de um
pré-conceito cultural – que, em síntese, permite classificar o gesto do capitão
como um acto de pura violência colonial.
Em
simultâneo ou logo a seguir ao interrogatório, monta-se o dispositivo para
proceder aos fuzilamentos. Como se disse, estes são designados por “cerimónia”.
Mais precisamente, a “cerimónia” não começa no momento em que o regedor chega à
sanzala ou em que o oficial interroga os detidos. A “cerimónia” inicia-se cinco
minutos depois de estar montado um dispositivo integrado, numa primeira linha,
pelo pelotão de fuzilamento e, depois, por uma segunda linha de “cortadores de
cabeças”. A identificação destes não é efectuada, pelo que tanto poderiam ser
militares portugueses como autóctones (o que é mais provável).
Repare-se também na mescla de
aspectos cerimoniais tipicamente castrenses, perfeitamente predefinidos
(“Clarim tocou ombro, arma, apresentar arma”), e outros que pretendem ir ao
encontro do que se entendia ser – uma vez mais, num gesto de violência colonial
– a cosmovisão das populações nativas. O cerimonial tem elementos historicamente
sedimentados na tradição militar ocidental (v.g.,
os códigos e protocolos de um fuzilamento marcial) e outros que correspondem a
uma tentativa de reconstrução de elementos especificamente africanos: o papel reservado
ao soba, o corte das cabeças, a presença simbólica dos paus. Mas, se virmos
bem, este último conjunto de elementos não emerge espontaneamente da comunidade
local, antes corresponde àquilo que o oficial supunha ser o modo como aquelas populações
viam o mundo. Possivelmente, estava certo nessa sua suposição. Em todo o caso,
é a visão do oficial de Cavalaria que prevalece em absoluto sobre as demais. Nem
registo existe de qualquer auscultação do soba e do regedor quanto ao desfecho
deste episódio.
Actuando
sozinho, o comandante do esquadrão teve de improvisar no local uma ritualização
compósita, europeia e africana, para alcançar o máximo efeito psicológico junto
da população. Conseguiu-o. Como sempre sucede quando se aplica a pena capital,
o destinatário da mensagem punitiva não é o condenado, mas os que lhe
sobrevivem. O condenado é um pretexto,
e o essencial do discurso autoritário não se centra nele mas nos que o
circundam e presenciam a sua morte. A acção visava muito mais advertir o povo
da sanzala do que punir os agressores. E, para o efeito, havia que exibir uma
força avassaladora, absoluta e esmagadoramente superior a todas as demais. E
havia que fazê-lo através de uma encenação que, além da exibição de força,
evidenciasse que o poder formal, se quisesse, podia ser tão ou mais violento e
brutal do que o daqueles que ousaram questioná-lo. Era fundamental alcançar um
efeito tal que entre o povo não se ouvisse nem “um choro de criança sequer”.
Não por acaso, o balanço refere, num registo positivo, que os habitantes da
sanzala tinham ficado “completamente esmagados pelo aparato da cerimónia”. A
acção alcançara o seu propósito.
A
personalidade do oficial, plasmada na narrativa, não é alheia aos factos
ocorridos – e talvez resida aí a explicação última de tudo o que se passou. O
documento é de tal forma impressivo que dele se pode dizer que condensa e
resume uma personalidade inteira. Simplesmente, esse não é um ponto que
pretendamos explorar neste comentário. Descartamos, por isso, o trecho em que o
relatório articula uma pretensa teoria sobre o corte das catanas e o modo como
as lâminas devem bater, “em movimento de translação ao longo do fio. Golpe de
corte dos alfanges árabes”. Por muito impressivos que sejam, esses
considerandos tornam-se acessórios para o ponto nuclear da acção, sendo até
dispersivos em relação a ele. Os considerandos do oficial servem apenas para
evidenciar que, na sua perspectiva, o tipo de acção como a que teve lugar na
Sanzala Mihinjo era passível de reiteração, caso as circunstâncias o exigissem.
E, desse modo, assume-se que uma execução sumária sem julgamento nem garantias
de defesa, seguida da profanação dos cadáveres através do corte das suas cabeças,
era um expediente justificado e legítimo, tão justificado e tão legítimo que
poderia ser repetido as vezes que fosse necessário.
Paradoxalmente, a mensagem que o
soba transmite ao povo é justamente a inversa daquela que o oficial português
aplica no terreno. O soba justifica o que se irá passar (“explicando a razão da
cerimónia”) à luz da necessidade de garantir, de futuro, o cumprimento de
processos de justiça pública e formal: “quando tem razão de queixa, faz mesmo
queixa no regedor, não pode fazer mesmo
justiça pelas suas mãos”. É, aliás, o soba que anuncia: “Aqueles homens
quis matar mesmo. Vai morrer… etc. etc.”. O relatório utiliza o discurso
directo, buscando a fidedignidade através da transcrição, real ou caricaturada,
da forma de falar o português própria das populações locais. O “etc. etc.” tem
afinidades com a não explicitação do significado do “conversa sua”: é mais um
momento em que o narrador, em regra extremamente minucioso na descrição da
cerimónia, se abstém de entrar em detalhes. Na sua perspectiva, era mais
importante relatar ao mais ínfimo pormenor o ritual das execuções – ponto
supérfluo, já que os seus superiores facilmente imaginariam como decorrera – do
que as intervenções do soba e do regedor ou o processo que levara ao
fuzilamento. Mais ainda: nos termos em que se encontra formulado, torna-se
difícil perceber o que efectivamente se passara na “confusão com os brancos”.
Somos informados à exaustão de todos os passos do cerimonial, mas, se
observarmos de perto o relatório, concluímos que através dele não é possível
perceber o que efectivamente se passou na “confusão com os brancos” e, mais decisivamente
ainda, quais as motivações dos agressores. É impossível determinar se tais
motivações possuíam sequer uma natureza política, se os agressores estavam
integrados em alguma organização ou dela eram simpatizantes, se o ataque aos
brancos se inseria ainda na onda de massacres da UPA e na violência política
reinante na região. Os agredidos tinham sindo assaltados quando levavam um
indígena preso ao regedor da Funda, a pedido deste. Mas que razão conduzira o
regedor a solicitar a detenção do indígena? Quem era este e o que fizera? Quem
eram os dois civis que acompanhavam o regedor no Land-Rover vermelho? Os agredidos? E como se apossara um dos
agressores da espingarda do regedor, se este, pelo relato dos factos,
aparentemente não se encontrava no local da “confusão”? Havia também um guia,
de cuja existência só nos apercebemos no final do texto – de onde surgiu e onde
se encontrava? O mais novo dos condenados, na iminência de ser executado,
revelou que três agressores já tinham fugido. Quem eram? E por que razão esse
facto não foi apurado nos interrogatórios? O relatório não oferece resposta a
qualquer destas perguntas, todas, ou quase todas, essenciais para uma
reconstituição completa dos factos.
Desse
modo, não admira que da leitura do texto surja a irreprimível sensação de que,
além de descrever o aparato de violência que tinha por destinatários os negros
e os militares dos Dragões, o relatório procura evidenciar uma capacidade de
domínio que é ostentada também de baixo
para cima, ou seja, que é dirigida aos superiores hierárquicos do oficial e
aos demais destinatários do documento.
Retomando o que dizíamos, existe um
indiscutível paradoxo, ou até uma evidente contradição, entre os motivos
invocados para o acto – a reafirmação da justiça formal e a proscrição da vindicta privada – e o acto em si mesmo,
que se desenrola à margem dos dispositivos instituídos para a salvaguarda da legalidade.
Em termos mais directos: ao invés de capturar os suspeitos para os submeter ao
julgamento de um tribunal, com um processo próprio e garantias de defesa, os
Dragões portugueses optaram por um simulacro de justiça que culminou na
execução sumária de cinco seres humanos. Talvez aos seus olhos não estivessem a
perpetrar um gesto de vindicta privada.
Talvez se vissem a si próprios como a corporização da autoridade suprema, a um
ponto tal que dispensaria a intervenção de todas as restantes (v.g., os tribunais). Ou talvez, mais
simplesmente, considerassem que as razões do tempo e do local, no rescaldo dos
massacres da UPA, configuravam uma situação de estado de necessidade que, mais do que justificar, obrigava a que as coisas assim se
processassem. “Isto é impressionante, mas tem
de ser”, disseram os dois civis presentes no local. Tem de ser.
Os
paus ficaram no local, “à espera de futuros não respeitadores da lei”.
Antevia-se, portanto, a possibilidade de o mesmo cerimonial se repetir, caso
necessário. Pelo menos, foi essa a mensagem transmitida – e tudo sugere que a
advertência foi inscrita e marcada no próprio terreno. Só assim se explica a
presença, por tempo indefinido, dos paus na Sanzala Mihinjo (“os paus ficam
para sempre”). Desempenhariam aí, de certo modo, papel idêntico ao dos
pelourinhos existentes nas vilas e aldeias do Portugal de onde provieram os
militares do 1º Esquadrão dos Dragões. Dos negros que morreram, nem sequer o
nome conseguiremos alguma vez saber. Como não sabemos, aliás, se uma acção
deste tipo foi de novo posta em prática pelos Dragões.
Simplesmente – e este ponto é curiosíssimo,
na sua ironia –, a necessidade de reiteração de outras acções “pacificadoras”
deste género, em detrimento do recurso aos mecanismos da justiça formal,
representa, em certa medida, uma confissão de derrota do modelo colonial. Este
mostrava-se incapaz de assegurar a paz e a justiça através dos dispositivos
trazidos da Europa. Em situações-limite como esta, era obrigado (tem de ser…) ao reconhecer a inoperância
dos mecanismos de prevenção e repressão trazidos da Europa. Não era a presença
do regedor que evitaria a repetição de incidentes, mas a exposição das cabeças
no cimo dos paus. Ao ceder à “lógica africana”, imaginária ou real, que julgava
ser o único modo de tratar estes casos (a ideia de que os negros só entendiam aquela linguagem), o oficial
implicitamente certifica o falhanço do projecto colonizador.
Dir-se-á
que esta afirmação corresponde a uma extrapolação excessiva feita a partir de
um caso isolado. Existem, em todo o caso, outros testemunhos que permitem levantar
a hipótese (sublinha-se, a hipótese) de a mutilação dos cadáveres – o corte de
cabeças, em particular – ter sido praticada noutros lugares e circunstâncias ([7]).
Tal não equivale, de modo algum, à emissão de um juízo de valor global sobre a
acção e o comportamento das tropas portuguesas em África. Todavia, se o poder
formal português, para conseguir pacificar as populações, se sentia na
contingência de praticar actos idênticos aos dos “terroristas”, replicando os
massacres da UPA, isso significa o reconhecimento da crise profunda do modelo
colonial que vinha sendo aplicado nos territórios ultramarinos. É que,
sublinhe-se, tais actos da UPA foram condenados com veemência e indignação justamente
por serem adversos aos princípios e valores civilizacionais que se queriam
instaurar nos trópicos. A presença dos portugueses em África só tinha sentido e
justificação se, no cumprimento de uma mission
civilizatrice, tal como proclamado pelo propagandismo do regime, conseguisse
pôr termo a uma cultura que permitia actos de barbárie como aqueles que a UPA
perpetrara. Se, em situações-limite, tivesse de falar a linguagem as catanas e
dos paus para se fazer ouvir, isso punha claramente em causa a razão de ser de
um projecto colonizador que se assumia, antes de mais, como um projecto
civilizador. Não por acaso, Eduardo dos Santos refere que os dirigentes da UPA
“não contavam com a possibilidade de os Europeus praticarem semelhantes
torpezas”. Mas fizeram-no. E, ao fazê-lo, numa dimensão e numa escala que
caberá à História apurar, revelaram que tiveram de ceder à linguagem do colonizado, já que não fora possível instaurar a linguagem do colonizador. Outra hipótese
se suscita, e não implausível: a linguagem
do colonizador transportava já, em si mesma, o discurso das cabeças nos
paus. Não necessitou de se “africanizar” para que da sua voz se ouvisse o som e
a fúria. Eis um ponto sobre o qual só poderemos reflectir e opinar quando
tivermos uma informação factual mais completa e fidedigna da presença
portuguesa em África, designadamente no tempo da guerra. Esse é um trabalho que
compete aos historiadores realizar e que ultrapassa em muito o âmbito e o
propósito deste brevíssimo comentário.
***
O relatório é acompanhado de um croquis do dispositivo montado no
terreno. A dado trecho, fala-se de seis armas que dispararam, quando sabemos,
por outra passagem do documento, que eram cinco os agressores condenados à
morte. É possível que existisse um atirador suplementar no pelotão de
fuzilamento. Desconhecemos os procedimentos utilizados em situações análogas,
mas, no relatório, parece existir um lapso na indicação de seis atiradores (“As
6 P. M. dispararam”). Necessitámos, por isso, de verificar o número de vítimas
e de atiradores. No desenho, surgem assinalados os terroristas, os membros do
pelotão de fuzilamento e os cortadores de cabeças. Com a ponta do lápis,
percorremos o croquis e, com a
legenda “terroristas”, contámos cinco pequenos círculos. A cada um corresponde
uma vida.
DRAGÕES – 1º
ESQUADRÃO
ASSUNTO: ACÇÃO PUNITIVA DE PACIFICAÇÃO DE 250930 ABR
NA SANZALA MIHINJO
Para cumprimento no exarado em alínea c) nº 2 das Normas
para a actividade operacional, nº 2 do C. M. A. (Q.G.-3ª Rep.) 21ABR61
Pelas 09H00 o Esquadrão (-) estava na
Funda, onde integrou na coluna um “Land-Rover vermelho” com dois civis e o
regedor da localidade (um preto). Este informou que pelo menos 5 dos agressores
de [...] e [...] estavam na Sanzala MIHINJO,
já tinha estado com eles e que tinham confessado.
às 09H30 estávamos a 1 Klm. da sanzala.
Avançou a viatura dos civis com mais o guia da coluna – o
[...], armado de 375 com a missão de deixar o regedor na
sanzala para ir reunindo o povo para uma “conversa sua”.
Às 09H45 partiu a coluna a toda a velocidade, cercando a
sanzala. Operação em U apoiando as extremidades no Rio Bengo.
Pelas 10H00 o regedor e o soba da sanzala separou 5 dos
agressores que se sentaram no chão, com guarda.
Interrogados por mim, confessaram que tinham estado na
confusão com os brancos.
- Quem é que tirou a espingarda?
- Fui eu, disse um deles.
O Soba já tinha entregado a espingarda ao regedor.
Pelas 10H30 estava montado o dispositivo em anexo.
Às 10H35 deu-se início à cerimónia:
1 – O soba falou ao povo explicando a razão da cerimónia,
acrescentando: - Quando tem razão de queixa, faz mesmo
queixa no regedor, não pode fazer mesmo justiça pelas suas mãos. Aqueles homens
quis matar mesmo. Vai morrer… etc. etc.
2 – Clarim tocou a sentido, ombro arma, apresentar arma.
3 – Furriel [...] disse:
- Pelotão de execução, preparar, apontar.
Fogo.
4 – As 6 P.M. dispararam. Os terroristas caíram.
5 – Avançaram os cortadores de cabeças. Cumpriram a sua
missão.
6 – Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram
dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas
para o chão.
7 – Clarim tocou ombro arma, apresentar arma.
8 – Soba falou ao povo, explicando a razão porque tinham
ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei.
9 – Ao soba eu disse: os corpos podem ser enterrados as
cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre.
10 – O Esquadrão regressou ao Quartel.
11 – Levei a secção Penaguião ao Hospital para que vissem
os dois agredidos
- Um estava em coma, na reanimação.
- O outro já se sentava.
Ambos
quase irreconhecíveis, pois tinham sido barbaramente agredidos à catanada,
pedrada e paulada.
Foram
assaltados no Klm. 56 do C.F. – Fundo Cabiri, quando levavam um indígena preso
para o regedor da Funda: operação efectuada a pedido do regedor.
----
X ----
REACÇÕES:
Do povo da sanzala – completamente esmagados pelo aparato
da cerimónia. Nem uma palavra, um gesto, um choro de criança sequer.
Os condenados – inicialmente com ar arrogante, a
gesticular e falar muito com o regedor e soba. Quando se começaram a [?] os
paus, ficaram calados. O mais novo, nessa altura, disse que três já tinham
fugido. No final já estavam com a assistência indígena, completamente vencidos
e conformados.
Os civis – guia e 2 ocupantes do “Land Rover”, um pouco
impressionados:
- Isto é
impressionante, mas tem de ser.
O nosso pessoal militar: de uma maneira geral, pálidos.
Cerca de 20% com o olhar incerto e assustado. Cerca de 10% prestes a desmaiar.
O resto portou-se bem.
As catanas têm de estar bem afiadas (não estavam)
saltavam ao bater, como se fosse em borracha. O corte da catana requer a sua técnica
não deve ser em pancada directa e seca. A lâmina deve bater em movimento de
translação ao longo do fio. Golpe de corte dos alfanges árabes.
CONCLUSÃO
- – No respeitante ao efeito da cerimónia, no elemento indígena, teremos de esperar uns dias pelos relatórios dos administradores da região.
- – No pessoal: Foi fortemente sacudido e posto pela primeira vez perante a realidade de uma guerra total de sobrevivência sem quartel. A experiência foi-lhe benéfica, pois:
Quando
o pelotão parou, já na estrada de Catete, a ordem dada a uma secção para juntar
o pessoal e revistar uma pequena sanzala de um dos lados da estrada foi
cumprida com uma eficiência, rapidez e entusiasmo jamais vistos nas operações
anteriores desta natureza. No final verificou-se serem Bailundos. Foram-lhes
restituídas as catanas, enxadas e demais ferros com “pancadas nas costas”. O
Sargento enfermeiro interveio pela primeira vez, para pensar um buraco de uma
baioneta mais impaciente no braço de um deles. Afastámo-nos com gestos de
adeus, de parte a parte.
Luanda,
27 de Abril de 1961
O
COMANDANTE DO 1º ESQUADRÃO DE DRAGÕES
[ass.]
[identificação
no original]
Cap.
de Cavª
[1] Um pequeno trecho do relatório
foi publicado por Marcelo Bittencourt, “Modernidade e atraso na luta de libertação angolana”, in Daniel Aarão Reis e Denis Rolland (org.), Modernidades Alternativas, Rio de
Janeiro, Editôra FGV, 2008, pp. 277-294.
[2] ANTT-PIDE/DGS, Delegação de
Angola, NT 11568.
[3] Cf. António de Oliveira Salazar,
“Ao assumir a pasta da Defesa Nacional” [declarações proferidas, através da
Rádio e da Televisão, em 13 de Abril de 1961”, in Discursos e Notas Políticas. Vol. VI – 1959-1966, Coimbra, Coimbra Editora, 1967, pp. 123-124.
[4] De acordo com a documentação
existente na Torre do Tombo, o relatório do 1º Esquadrão de Dragões, datado de
27 de Abril, foi enviado pelo seu signatário – e comandante daquele Esquadrão
–, no dia 29, a duas entidades militares e ao director da delegação da PIDE em
Luanda. Em 12 de Maio, o subdirector da delegação da PIDE em Luanda enviou
cópia do relatório para Lisboa, em ofício endereçado ao director-geral daquela
polícia. O comandante da 3ª Região Militar determinaria, em 27 de Maio, a
destruição, pelo fogo de todos os exemplares do documento. Em cumprimento dessa
ordem, o comandante do 1º Esquadrão de Dragões enviou um ofício à delegação da
PIDE em Luanda, em 8 de Junho, solicitando-lhe que esta devolvesse o exemplar na
sua posse. A delegação da PIDE em Luanda devolve a documentação em 19 de Junho
e, a 21 desse mês, transmite à sede, em Lisboa, a directiva do comandante da 3ª
Região Militar. A cópia do relatório que ainda existe é, ao que tudo indicia, a
enviada à sede da PIDE, não tendo esta polícia, por conseguinte, dado
cumprimento às instruções das autoridades militares. Tal facto pode dever-se às
mais variadas razões. Tanto pode ter existido uma omissão involuntária como, ao
invés, um excesso de zelo burocrático que levou à conservação de cópia do
documento. Pode ainda ter havido uma intenção deliberada, por razões de outra
índole, para a PIDE guardar em seu poder cópia de um relatório que se revestia
de uma natureza claramente “comprometedora” para as autoridades militares.
[5] Ainda
recentemente, o padre Francisco Jorge, capelão militar que acompanhou o
batalhão que tomou Nambuangongo, explicava o facto de os portugueses cortarem
as cabeças dos guerrilheiros e de as colocarem em estacas à beira das estradas
e nas picadas: os indígenas só acreditavam que morreriam se fossem mutilados e,
por isso, havia que mostrar que os portugueses não só eram capazes de praticar
os mesmos actos bárbaros dos rebeldes da UPA como tinham o poder de matar
negros que se julgavam imunes às suas balas (cf. o depoimento do Pe.
Francisco Jorge na série televisiva da autoria de Joaquim Furtado, A Guerra, RTP, 4º episódio, 6-XI-2007),.
[6] Cf. Eduardo dos Santos, Maza. Elementos de Etno-História para a
interpretação do terrorismo no Noroeste de Angola, Lisboa, Edição do Autor,
1965, pp. 47ss.
[7] Cf., além do testemunho do
padre Francisco Jorge, citado na nota 5, o relato memorialístico de Otelo
Saraiva de Carvalho in Paulo Moura, Otelo.
O Revolucionário, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012, pp. 88ss
António Araújo
[texto publicado no livro O Império Colonial em Questão. Poderes, Saberes e Instituições, org. de Miguel Bandeira Jerónimo, Lisboa, Edições 70, 2012, com notícia no Público, aqui]
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