Seis semanas de reportagem numa Angola proibida.
Regresso a um palimpsesto da memória.
3.
Regressámos
à Jamba, de novo a pé até depois do Caminho-de-Ferro de Benguela, novamente em
unimogs pelas picadas, e bem depressa, de noite, impossível dormir com as
sacadas do caminho. Na Jamba, novas visitas. Conheci um médico são-tomense,
prisioneiro, que todos fingiam não ser prisioneiro. Consegui, quando os meus
cicerones se distraíram, falar um pouco com ele, ambos entre dentes, no meio
dum espaço enorme, a céu aberto, com dezenas de pessoas andando de um lado para
o outro, e nós os dois absolutamente concentrados nas palavras sussurradas, na
sua condição de médico-prisioneiro, na morada e telefone da mulher em Portugal,
que eu contactaria depois. Assim fiz, logo que cheguei a Portugal: ela fingiu
ter interesse no marido.
Na
reportagem que enviei sobre o ataque ao Alto Chicapa seguia a seguinte mensagem
para Wilton Fonseca: “Wilton: tudo bem. Segue notícia em
primeira mão. Por favor manda dizer se está tudo bem em minha casa [Tinha
havido cheias na região de Lisboa]. Pedi notícias duas vezes e não obtive
resposta. Eduardo.” As emissoras internacionais continuavam sem mencionar os
meus despachos. Desta vez, exigi que Savimbi me desse uma explicação. Ela veio
depois: todas as minhas notícias tinham sido entregues no destinatário, a Agência
NP. Só no meu regresso eu entenderia o mistério.
Na
Jamba, na última noite, já de madrugada, entrevistei Savimbi.
Desta vez, o que sobressaiu não foi o líder carismático, mas o vendedor de
banha da cobra. As minhas perguntas sobre a conivência entre a UNITA e as Forças
Armadas portuguesas e até a PIDE e sobre o apoio da África do Sul do apartheid
criaram embaraço que ele escondia com desdém e pedindo a colaboração nas
respostas aos seus adjuntos, que assistiam à entrevista na cubata redonda. Um
deles era o general Puna, que mais tarde desertou da UNITA. Outro era Jaka
Jamba, que tremia, e, não é metáfora gasta, tremia como varas verdes na presença
do líder e face às perguntas embaraçosas. Havia medo, visível e invisível, na
presença de Savimbi.
Com Savimbi na pista aérea da Jamba antes do regresso a Portugal.
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No
dia seguinte, voltámos à pista de terra batida da Jamba.
Savimbi esteve na despedida, ou talvez seja melhor dizer que esteve na chegada
da equipa de reportagem de Barata-Feio, com um peso mediático maior do que o
meu, repórter de uma das agências noticiosas portuguesas e, para mais, autor de
notícias de que não chegavam ecos à savana. Naquele momento, tudo me parecia
ter sido em vão.
Partimos
num avião
maior do que o pequeno jacto da vinda. Este era mais barulhento, com as suas hélices
movidas por motores Rolls Royce. Regressámos a Kinshasa, para nós um paraíso.
Um hotel de cinco estrelas, uma enorme piscina a que me atirei para salvar uma
zairense que saltara para a água sem saber nadar. A mulher quase me afogou,
enquanto todos os presentes assistiam sem reagir. Não agradeceu. Riu-se.
Passada meia hora, apareceu o japonês que ela acompanhava, para me agradecer.
Cheguei
ao princípio
duma manhã de Dezembro a Lisboa. Telefonei para a minha mulher. E telefonei
para Wilton Fonseca, pedindo explicações sobre a não publicação das minhas
reportagens, resultado de seis semanas num território em guerra, seis semanas
interessantes, mas difíceis, com provações e o horror dum pequeno grande acto
de guerra. Seis semanas para escrever notícias e seis semanas sem que nenhuma
notícia tivesse sido publicada. Fonseca não tinha nenhuma explicação, nem
esfarrapada, quanto mais convincente. Só dizia, “calma, calma”. No dia
seguinte, novo telefonema, já de casa. E a mesma “calma, calma”, calma que não
tive, e ameacei partir a loiça toda. Só depois, quando regressei à agência, começaram
a sair em linha os telexes com os meus trabalhos, escritos à mão em Angola,
transmitidos pela UNITA para Lisboa e entregues à NP. Eu tinha sido vítima de
uma outra guerra, uma guerra interna à qual eu era alheio, e guerra que,
desconfiava eu, resultava também do peso de chumbo que o conflito Leste-Oeste
impunha então sobre todos nós. E fui vítima do ostracismo dos camaradas de
trabalho, que me censuraram por ter ido, me censuraram por não ter dito nada — apenas
cumprira o acordado com Fonseca —, me censuraram por ter estado no “lado errado”
de Angola. Ainda recordo o local exacto no degradado palacete da Lapa em que um
camarada me censurou por ter ido ao “lado errado”. A guerra no interior da agência
de notícias e a guerra entre facções políticas pró e contra a UNITA ou o MPLA,
o conflito planetário entre o Ocidente e o Leste motivaram uma censura do meu
trabalho que a UNITA não fizera, apesar de os meus textos enviados de Angola
incluírem elementos desagradáveis para o movimento.
Alguns
media portugueses publicaram as minhas reportagens, sem grande destaque, apesar
de ser o primeiro jornalista português a reportar
longamente daquela zona de Angola. Publicá-las, apesar da máxima objectividade
que lhes imprimi, apesar de imensa informação relevante sobre a política e a
vida numa parte da antiga maior colónia portuguesa, era, naquela altura, “tomar
partido”. Não se podia informar sobre o que não se gosta. Ainda hoje é assim.
Mais
tarde, quis visitar a Angola do MPLA. Queria provar a minha independência.
Era uma ideia insensata, louca. Reuni-me num café da Avenida da República, já destruído,
com uma funcionária da Embaixada da Angola em Lisboa, furiosa com o trabalho
que eu tinha feito, mas que, sem eu o perceber de imediato, talvez me tenha
salvo a vida: recomendou-me vivamente que não fosse. É tão fácil morrer. Outros
me recomendaram o mesmo. Não fui.
São
estas memórias de uma reportagem engolida pela história. Os vencidos da guerra
esvanecem-se, desaparecem, os registos apodrecem sem uso, o passado é uma
poeira, reescreve-se com palimpsestos rápidos
e incómodos sobre que já lá vai e sobre glórias futuras que estão sempre por
vir. Não interessa recordar. Esqueçamos.
Eduardo
Cintra Torres
Caxias,
Março de 2015
Nota.
As fotografias aqui apresentadas são de minha autoria, excepto a última, cuja
autor já não recordo. Foram digitalizadas a partir de positivos realizados em
1983/4 na Agência Notícias de Portugal. Os negativos fazem hoje parte do acervo
da agência LUSA. Apenas procedi a simples acertos de brilho, nitidez, exposição
e saturação em algumas da imagens. Usei nalgumas uma Voitgländer e noutras uma
máquina russa cuja marca e modelo não anotei.
Palimpsesto
ResponderEliminarObrigado, vou já corrigir!
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