domingo, 15 de março de 2015

Our Kids, entre outros livros.

 
 
 
 
 
 
Com a amizade de sempre, o Pedro Lomba, uma das pessoas mais lidas e mais cultas da sua geração, mandou-me a referência a um livro recente, cuja existência desconhecia. Em Our Kids, Robert Putnam discute a questão da crescente desigualdade de rendimentos nos Estados Unidos, e sobretudo que efeitos isso tem no sistema educativo norte-americano. Concorde-se ou não com o que escreve o autor de Bowling Alone, ninguém contesta a seriedade e a profundidade das suas abordagens. Existe uma excelente recensão ao livro de Putnam, que devo a outro Pedro, um outro amigo de sempre, o Pedro Magalhães. Aqui, um vídeo desenvolvido, de uma palestra de Putnam em Georgetown, e este, mais breve:
 
 
 

 
 
 
 
 
Sem ter ainda lido o livro, outro grande amigo, o Onésimo Teotónio de Almeida, nas conversas por e-mail que mantemos diariamente, mandou-me uma das suas «notas bárbaras», apontamentos que, com imensa generosidade, partilha com a legião imensa dos que admiramos a sua joie de vivre. Palavra puxa palavra, recordei-lhe um documentário que vi há uns tempos e que muito me impressionou, The Ivory Tower. Não sei se já falei dele aqui no Malomil, nem interessa. O que interessa, pois fala com saber de experiência feita, é a resposta do Onésimo. Dirão que é opinião, pessoal, subjectiva. Ainda bem. O Onésimo pensa pela sua cabeça, fala com base na experiência. É dos espíritos mais livres e independentes que conheço. O que diz não vai em cantigas nem em cartilhas. Mandou-me esta mensagem que, com a sua autorização, aqui transcrevo:

 
Lembrei-me de lhe enviar este artigo. Poderá ser tão exagerado para o positivo como Ivory Tower é para o negativo. Como lhe disse, não vi o filme, apenas o trailer. Conheço os argumentos e tenho lido, ao longo das décadas, sobre aquelas críticas. Lido livros também. Um deles tenho aqui à mão e li há dez anos – The University in Ruins, de Bill Readings – mas já li vários outros. Também aqui à mão está um que acho mais pertinente por ser de um antigo Reitor (President) de Harvard, Derek Bok, Universities in the Market Place. Levanta problemas mais sérios, como o da comercialização do ensino superior.  Há muitos sobre o tema e as críticas surgem de todos os lados. Nos EUA nada está isento de profundas críticas, mesmo de académicos que recebem salários de superstars nas universidades mas têm o direito de expressar os seus pontos de vista e publicá-los nas editoras do sistema universitário que eles próprios criticam.
 
Só direi uma coisa: se há instituição no mundo ainda preocupada com a meritocracia, com os valores democráticos, com dar oportunidade aos que não nasceram num berço de fadas, aos que nunca puderam entrar numa universidade por não terem posses, é a universidade americana. Espero não escandalizá-lo ao dizer-lhe isso, mas poderia sentar-me consigo horas e horas a falar-lhe destas realidades. A começar pelo needs blind, que permite qualquer jovem entrar na universidade por mérito e com bolsa completa se os pais não puderem colaborar com nada (porque o aluno primeiro é seleccionado mediante critérios académicos e só depois a sua candidatura passa para o Departamento de Financial Aid a fim de ser decidido, com base na informação do IRS, qual o montante que os pais podem pagar). E seria importante lembrar que na universidade americana não se espera que, após a licenciatura, sejam os pais a pagar. O aluno ou a empresa em que trabalha pagam para o mestrado. Para o doutoramento, porém, é a  universidade que financia porque ela está disposta a investir se o aluno está disposto a mergulhar a sério num doutoramento. Nas melhores universidades, o doutoramento é absolutamente gratuito para os melhores. Quer dizer, a universidade paga tudo para a grande maioria dos alunos de doutoramento. E o compromisso é tomado por cinco anos. Por exemplo, todos os anos o meu departamento aceita para o doutoramento dois ou três alunos que são admitidos por cinco anos (às vezes seis) com tudo pago e com um salário que lhes permite viver. Não folgadamente, mas com um mínimo de decência. Além disso, poderia falar-lhe do imenso esforço que as universidades fazem para atrair minorias - alunos e professores. Se eu contasse algumas histórias, pouca gente em Portugal me acreditaria.
 
Mas regressando à meritocracia e ao lugar que ela ocupa no ideário da universidade americana: os exemplos poderiam começar com figuras muito conhecidas, como Obama, e acabar comigo, que fui o primeiro da minha família a ir para a universidade, pois antes de mim ficaram-se apenas pelo Liceu. Ir dos Açores estudar para uma universidade no Continente era uma despesa enormíssima. É verdade que vim daí com a licenciatura, no entanto as portas aqui estiveram sempre abertas para mim e para tantos outros como eu. E continuam. 
 
Digo isto com a maior das sinceridades. Faço-o em particular, mas já o fiz publicamente muitas vezes. Devo no entanto acrescentar que, quando o fiz publicamente, fui com frequência bombardeado. Em vez de as pessoas ouvirem o meu testemunho e aproveitarem para se informar melhor, preferiram reagir ideologicamente. Sem o dizer explicitamente, pensaram-me vendido ao sistema.
 
Quarenta e tantos anos de experiência nada podem quando as convicções ideológicas das pessoas é que dominam as suas cabeças.
 

Um abraço amigo do
 
Onésimo
 
 
 
 
 

4 comentários:

  1. Ola,

    Bom, ha aqui um ponto que julgo não estar a bater certo. Tanto quanto percebo, quando se afirma que as desigualdades entre ricos e pobres em termos de acesso à educação têm crescido, ninguém esta a dizer que a "culpa" ou a responsabilidade esta principalmente nas universidades. Pode perfeitamente suceder que as universidades sejam completamente impregnadas de espirito igualitario, ou redistributivo, e que tenham programas adaptados (tais como bolsas de estudo etc.) e que, apesar disso, as desigualdade estejam em progressão no pais. Isto porque a politica das universidades so representa um factor entre outros, e de relevância bastante diminuta, com incidência sobre o problema de que trata o livro (livro que não li e sobre o qual, por conseguinte, não tenho opinião, nem negativa, nem positiva).

    De modo que não vejo contradição alguma entre o que é relatado sobre o livro e o que é afirmado no texto do Onésimo T. de Almeida...

    Boas

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    1. Inteiramente de acordo.
      Recordo, porém, que o meu e-mail se referia apenas ao filme Ivory Tower, que é sobre a universidade americana, e que o António Araújo andava há tempos a sugerir-me que eu visse. Os leitores desse meu e-mail não podem adivinhar que ele vinha na sequência de uma outra troca de e-mails sobre a crescente desigualdade na sociedade americana. Nesse contexto, eu referira ao António Araújo que o fenómeno vinha já sendo notado há muitos anos e citei-lhe a propósito uma expressão que encontrei vai para 15 anos no livro Philosophy and Social Hope, de Richard Rorty: "the Brazilianization of America".

      Onésimo

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  2. Sem querer ser sectária e preconceituosa - mas sendo - espero que o Pedro Lomba não seja um certo senhor do governo muito cheio de ideias para o regresso de uma gota de entre o mar de portugueses válidos e competentes, formados e pagos por nós e pelo governo que os expoliou de futuro e sem peias os sacudiu.

    Muito interessante o sistema americano. Com o perdão de Onésimo que me parece uma pessoa bem disposta e competente, não é uma carta sua que me informa sobre como funciona bem a universidade nos USA. Também há bolsas em Portugal. Ajudam. Mas as assimetrias sociais não se resolvem com três ou quatro bolsas em cada departamento.

    Não me pronuncio sobre obras que não li.

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    1. Naturalmente não pode pronunciar-se sobre as obras que não leu mas ao pronunciar-se deve ter em conta o que leu e as suas conclusões não têm a ver com o que eu disse. A sua afirmação sobre Portugal está correcta mas comparra o que se passa nas universidades nos dois lados do Atlântico não faz qualquer sentido.
      onésimo

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