quinta-feira, 12 de março de 2015

A Espuma dos Dias (páginas dum diário).










Pablo Picasso (fotografia de David Douglas Duncan)

 




 
                                                                                   La mirada fuerte
        
Para os andaluzes, la mirada fuerte significa a maneira intensa de olhar algo, o poder de ver fundo naquilo que nos rodeia, o exame crítico da realidade circundante. E é na pintura que esta expressão melhor se sente com os quadros que os artistas nos deixam como testemunhos fixos da sua interpretação do mundo e da vida, do seu modo de os ver. Basta pensar nos óleos, por exemplo, de El Greco, Rembrandt, Vermeer, Van Gogh, Mondrian, Klee ou Picasso para nos darmos conta da força desse olhar que atravessa como um raio X a espessura das aparências sensíveis e delas retém o instantâneo duma paisagem, dum rosto, dum momento da vida que passa, duma cena de amor ou da visão dum certo rosto. Ontem, ao ver um longo documentário sobre Picasso, entendi o sentido profundo desta expressão andaluza aplicada à pintura: em todos os momentos do instrumento poderoso de uma pupila que radiografava a vida e o seu tempo, deixando depois desse cortejo de cenas e momentos que a sua mão plasmou numa tela ou num papel, essa visão singular que nos comove ou arrebata. Ao pintar Guernica, em 1937, Picasso conseguia criar um ícone que, para todo o sempre, simbolizaria o horror da tragédia da guerra de Espanha, associado ao atroz bombardeamento da aviação hitleriana sobre a cidade basca e o sofrimento sem limites dum povo esmagado pelo Behemoth da suástica. Todavia, para além da data e do facto trágico que ele evocava em proporções tão grandiosas, a sua mirada fuerte deixava-nos, sobretudo,  uma metáfora intemporal do sofrimento humano.
                                                                                             




Leonardo da Vinci
 
 
 
 
 
O pior mal
                                                                
  “Rien n’est jamais acquis à l’homme
                                 Ni sa force, ni sa faiblesse,  ni son coeur. 
                                                                           Et quand il croit ouvrir ses bras
                                                                    Son ombre est celle d’une croix,”
                                                                                                           Louis Aragon
 
“Vê: um palmo são os dias que me deste.
minha duração é um nada frente a ti;
todo o homem que se levanta é apenas um sopro,
apenas uma sombra o homem que caminha. (…).
 Os homens todos  são apenas um sopro.”
Salmo 39, 6-7 e 12.
 
 
Inegavelmente, o pior mal é ter nascido. Desse acidente cada um de nós involuntariamente é precipitado na vida e, pelo mesmo acto, condenado a vir morrer um dia, amarrado sem escapatória nenhuma a um corpo transitório, mortal, destinado a cair, mais adiante, mais tarde, noutro poço sem fundo. A sua vida e o seu destino, desde que tombámos do ventre materno, é sermos-para-a-morte, zum Tode sein, é uma condenação a desaparecermos depois duma passagem efémera pelo mundo sublunar, intermédio ao qual se associa todo o resto dum cortejo de males, maiores ou menores, que Hamlet, no seu monólogo na esplanada do palácio de Elsenore, enuncia como o lote de sofrimentos, dores e humilhações próprios da humana condição vivida sub specie temporis – todas essa chicotadas e mil pragas naturais que nos afligem a carcaça e o coração enquanto nos arrastamos debaixo dum céu indiferente e alheio aos erros dos que nos oprimem, às insolências que recebemos dos grandes, às penas do nosso amor desprezado e aos desdéns que o nosso espírito recebem dos nulos (Hamlet, acto II, cena I). Neste condenado das aflições humanas, que o bardo inglês pôs na boca do atormentado príncipe da Dinamarca, nada falta do rol de misérias que atormentam a espécie humana desde que cada homem tombou da vulva materna, anatomicamente situada entre as fezes e as ruínas, até que uma outra ferida da terra nos absorva na sua cova onde dormirá eternamente disperso e nulo o “pó levantado” que tínhamos sido. Todos os males de que sofremos desde que nascemos até que o nosso coração pare de bater e o nosso sangue coagule nos vasos do corpo, derivam afinal de um mal inicial, um mal maior, o mais determinante e mais aleatório de todos – já que nenhum de nós teve a sua vontade implicada no acto pelo qual foi criado, ou seja, o de termos nascido, esse mal inicial e supremo do qual derivam todos os mais como cortejo de acidentes e acasos das nossas vidas pequenas e vãs: o mal de termos nascido.
 
 




Fotografia de Shomei Tomatsu

                                                                        
 
 
 Lendo um texto taoísta
 
Num livro francês sobre o Taoísmo, Comprendre de Tao, de Isabelle Robinet, encontro estas passagens, que traduzo:
 
“Olhamos e não vemos nada, a isto se chama o Invisível.
Ouvimos e nada se ouve, é o que se chama o Inaudível.
Apalpamos e não tocamos em nada, que é o que se chama  Imperceptível.
Estas três coisas inescrutáveis fundem-se na Unidade.
O seu topo não é luminoso, o seu baixo não é tenebroso.
Desfiando-se sem fim, sem nome, regressado à Sem-Coisa,
Isso chama-se a Forma do Sem-Forma,
A Imagem do Sem-Coisa.
Isto chama-se o Indistinto, o elusivo.
Indo ao seu encontro, não lhe vemos a sua face.
Caminhando atrás dele, não se vê o que fica no fim dele.”
 
 



 
 
                          O leite e o sangue ou como fui expulso do jardim do Éden
 
 
                                      “The art of losing isn’t hard to master;
   So many things seem filled with the intent to be lost that their loss in no disaster.
(...)
                                                                  I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
                                                           Some realms I owned, two rivers, a continent.
                                                                          I miss them, but it wasn’t a disaster.”
                                                                                         Elizabeth Bishop, “One art”.
 
 
Foi nesta data de hoje que nasci, há 75 anos, em Moçambique, terra com a qual quase nada tenho a ver, a não ser como memória longínqua de infância passada ali e na África do Sul. Na antiga colónia portuguesa no Índico vivi poucos anos, já que os meus pais, pouco tempo volvido depois do meu nascimento, foram para Joanesburgo, em 1942, onde residi desde os três aos cinco anos, aprendendo a ler em inglês, fazendo os estudos primários num colégio marista na Koch Street, cidade que recordo ainda com uma nitidez fotográfica: o prédio onde vivíamos, o casal Cohen que era nosso vizinho, o nosso bairro, o parque perto dele, a cara de um colega e até a voz da minha professora inglesa, embora se tenha perdido o seu nome.
Esse jardim público perto de casa era o meu paraíso e nele havia uma estátua do Peter Pan que eu estimava com especial carinho, embora só muitos anos mais tarde viesse a conhecer as suas aventuras na Terra do Nunca, estátua que uma vez apareceu decapitada, o que deve ter sido a minha primeira impressão de absurdo e de violência na minha vida. Foi também nesse jardim que tive a oportunidade de presenciar a primeira cena que me chocou com horror e terror: uma mulher gorda, completamente ébria, partiu numa garrafa de leite na cabeça do marido, e este ficou muito hirto e de olhos abertos, com o líquido branco a escorrer pelos cabelos e pela cara, misturado com o sangue abundante que manava da ferida no crânio. O mais terrível do ocorrido estava, aliás, na aparente normalidade da cena, sem gritos nem gestos alucinados, como se a garrafa quebrada, a ferida e a mistura do leite e do sangue não passassem dum acaso sem significado nem qualquer sentimento de culpa ou maldade na sua origem. E era esta absurda normalidade aparente que mais angustiava a criança que eu então era, incapaz de dar um sentido qualquer aquele gesto delirante. Voltando logo para nossa casa, na companhia da minha irmã, após a absurda agressão da mulher embriagada, não consegui que alguém me explicasse como é que no mundo, e sobretudo naquele jardim aprazível cheio de araucárias, hibiscos, rosas e petúnias, podia ter-se passado aquele incidente, como é que cenas tais podiam suceder. Biblicamente, eu acabava de ser expulso do Éden, sem razão nem culpa, apenas porque o mundo era habitado por gente que se embriagava e agredia outros seres, ou, ainda mais estranho e incompreensível, decapitava estátuas de crianças, tudo isto sem razão nem qualquer finalidade.
 
 
 
João Medina




 

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