sábado, 21 de março de 2015

A minha Ucrânia.

 
 

 
 
         A Teresa tem muitas saudades de Kiev e eu tenho muitas saudades da Teresa. Continua a Leste, e irá andar sempre a Leste daquilo que é supérfluo e nos inferniza os quotidianos. A Teresa procura centrar-se no essencial  das coisas, e passará o resto da vida nessa demanda, ingénua ou demencial. Mas tem razão, a Teresa. Do acessório pouco ficará na memória.
aqui falei de Douwe Draaisma, professor da Universidade de Groningen, autor de um livro traduzido em português, Porque é que a Vida Acelera à Medida que se Envelhece. Os temas que aborda e o seu apelido fazem pensar que se trata de um guru de auto-ajuda ou uma versão um pouco mais elaborada (o que não é difícil) do formidável Gustavo Santos. Nada disso, longe disso. Bem mais perto do essencial das coisas. Draaisma voltou à carga com um livro extraordinário, The Nostalgia Factory, Memory, Time and Ageing. Nas primeiras páginas, entra a matar com uma história encantadora. Uma vez, uma equipa de investigadores universitários procurou saber qual era a memória viva mais antiga da Holanda. Foram falar, obviamente, com a senhora mais idosa dos Países Baixos. Hendrikje Schipper nascera em 1890. Nascera prematuramente, o que à época significava morte certa. Mas não, sobreviveu mais 115 anos. Hendrikje, a anciã neerlandesa, sobreviveu porque a sua avó a levou recém-nascida para junto da lareira, onde a amparou ao colo durante semanas. Quando foi entrevistada, em 2005, a memória mais antiga de Hendrikje era dessa avó. Lembrava-se dela quando tinha três anos de idade, um episódio de criança para sempre guardado nos esconsos da sua mente. Os académicos que a entrevistaram não tiveram a certeza, como é evidente, se a recordação íntima de Hendrikje Schipper correspondia a um facto real ou não passava de algo que foi sendo impresso na sua memória à força de tanto o lembrar e contar, ano após ano. Que os mais velhos se recordam sobretudo da infância é algo sabido desde há muito. O que fizeram na véspera esfuma-se nas brumas do Alzheimer e doutras tormentas. Mas aquilo que é mais antigo, aquilo que remonta à infância mais precoce, é o que lembram de forma mais vívida e intensa. Nós, que estamos imersos na espuma quotidiana, na lufa-lufa da semana que agora terminou, temos de fazer um esforço para gravar na memória este ou aquele episódio, como ainda hoje me lembrava uma operária da fábrica da nostalgia.
Os álbuns de fotografias sempre foram um antídoto contra o esquecimento, breviários íntimos pejados de imagens que, como dizia a publicidade, servem para mais tarde recordar. Já agora, da vasta bibliografia sobre o tema destaco um livro, Photographic Memory. The Album in the Age of Photography. E, também já agora, uma pequena observação sobre o nosso tempo, tão contraditório: do mesmo passo que procuramos guardar a memória nos lugares mais perecíveis e efémeros, como telemóveis e outros artefactos techno, nasceu a moda, bem ao gosto twee, de coleccionar álbuns antigos de fotografia. Tenho alguns, mas raramente os mostro por sentir que não tenho  o direito de o fazer, que seria uma devassa ignóbil, uma intrusão abusiva na intimidade alheia, na biografia dos que já morreram.
Há quem tenha encontrado uma forma de aumentar ainda mais a carga emocional da observação de retratos velhos. Recorre-se ao follow-up, mostrando o antes e o depois, o passado e o presente. A Teresa tem saudades da Ucrânia. A jornalista Daisy Sindelar resolveu a coisa de forma mais expedita. Recolheu memórias familiares num arquivo a que chamou My Ukraine. Memory and Identity. São, por ora, quinze histórias, contadas como um pequeno conto, emolduradas por fotografias de antes e de agora. Cada história melhor do que a outra, sobretudo porque, como diz a autora, em quase todas há alegria e há esperança, ao contrário da imagem terrífica que temos de uma terra tão martirizada. Sim, houve risos e festas na Ucrânia, almoçaradas que duraram horas, música e vinho a copo, mesmo nos piores momentos. Houve momentos-Kodak na cidade e no campo, com histórias que, se amanhã chover, vale a pena ler.
 
 
 

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