quinta-feira, 16 de maio de 2019

D. Branca, a ‘pasteleira’ e a prima nomeada | Portugal em Burgos.


 
 
Escondido no meio de um bairro tipicamente desinteressante, com as casas monótonas na cadência e no aspecto que as últimas décadas imobiliárias nos legaram de forma tão pródiga, está o Mosteiro de Santa Maria La Real de las Huelgas, uma jóia de Burgos.
Não se dá por ele até à última curva. Não se distingue por altas torres ou pela imponência, nem pelo isolamento – está assimilado pela cidade, embora quando fotografado de longe se intua o enquadramento original. Contudo, pela sua história, pelo misticismo que a clausura permitiu conservar e pelo seu acervo único, o Mosteiro merece uma visita.
 
 



 
 
 
Uma história de séculos de abadessas, coroações e influência real em Castela resumida a meia dúzia de linhas não seria mais do que uma compilação de informações recolhida aqui e ali, na internet que quase tudo sabe. Apenas duas ou três notas, que resultam da experiência pessoal da visita para motivar o interesse de quem passar por Burgos, até porque o Mosteiro não tem a divulgação que merece, porventura por impedirem a fotografia no interior.
A voz da guia chega-nos pelos auriculares, para não perturbar a oração das habitantes. É casa de monjas de clausura da Ordem de Cister, popularmente conhecidas por bernardas, em memória do fundador da Ordem. É ainda – e também praticamente desde a fundação no século XII – o principal mosteiro desta congregação em Espanha. O facto de as monjas permanecerem imperturbáveis há tantos séculos explica a preservação de tantos elementos arquitectónicos e artísticos sem restauros que lhes roubem a autenticidade.
O exterior é sóbrio, embora a amplitude do pátio impressione. A igreja, interessante sem ser espectacular. Vestígios da primitiva arquitectura mudéjar, belíssimos capitéis dos claustros e escultura com história, como a imagem articulada do Apóstolo Santiago para armar cavaleiros os Reis de Castela.
É, contudo, na sua condição de Panteão Real que reside o especial interesse do Mosteiro e também a ligação a Portugal, por três presenças femininas na nave central da igreja.
Huelgas foi fundado em 1187 pelo Rei Alfonso VIII de Castela e sua mulher, a Rainha Leonor Plantageneta – filha dos célebres Henrique II de Inglaterra e Leonor da Aquitânia (como tal, irmã dos Reis Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra). Alfonso VIII (numeração contestada por alguma historiografia uma vez que se trata, na verdade, do primeiro Alfonso rei apenas de Castela) era neto de Alfonso VII de Leão e Castela, que reconheceu a soberania portuguesa em 1143 e cuja morte voltou a ditar a separação dos reinos de Leão e de Castela.
 
 


 
 
 
Grande impulsionadora do mosteiro destinado a Panteão Real de Castela, a Rainha Leonor parece ter-se inspirado na Abadia de Fontevraud, no vale do Loire, fortemente ligada à sua família. A Abadessa de Huelgas teve um privilégio raro de dependência directa do Papa, o que terá ao longo de séculos enfurecido sucessivos bispos de Burgos. Tal como Henrique II e Leonor da Aquitânia em Fontevraud, Alfonso e Leonor têm os seus túmulos no presbitério, onde sucessivas gerações de monjas e poderosas abadessas puderam agradecer o precioso legado deixado pelos monarcas.
Nas três naves da igreja sucedem-se as arcas tumulares. Embora longe do esplendor que a perícia dos escultores dará ao eterno descanso dos seus sucessores, são belos exemplos de heráldica tumular, conservando-se ainda a policromia original em alguns deles. É, de resto, nestes túmulos que está a origem de um dos pontos fundamentais da visita: o Museu das Telas Medievais. As Invasões Francesas levaram quase todos os anéis e as espadas, mas deixaram as roupas com que os reis e os seus filhos foram sepultados. Estas conservaram-se, algumas quase imaculadas, constituindo um espólio extraordinário que faz deste um verdadeiro museu da moda do século XIII e XIV, com modelos originais das roupas cerimoniais da corte de Castela. Imperdível.
Junto ao altar-mor, do lado da epístola, situa-se o túmulo da Infanta D. Branca de Portugal. Foi a filha mais velha do Rei D. Afonso III e da Rainha D. Beatriz – e nasceu em 1258, já depois de o Papa condenar o rei português por bigamia. Afonso, bolonhês consorte, tinha ainda viva e furiosa a primeira mulher, a bolonhesa que lhe emprestara o título e o prestígio para derrubar o irmão. O futuro Rei D. Dinis nascerá em 1261, já depois da morte da Condessa D. Matilde e sem que houvesse impedimento ao casamento dos pais.
 
 



 
 
 
A Rainha D. Beatriz era, por sua vez, filha ilegítima do Rei Alfonso X de Leão e Castela – chamado o Sábio. Foi para junto do pai que partiu, levando as filhas, pelos desentendimentos com o filho, poucos anos após a subida ao trono de D. Dinis. Após a conturbada sucessão do avô (a que não é alheio o Mosteiro das Huelgas, onde jaz o pretendente derrotado, Alfonso de la Cerda) e por ordem do tio, Sancho IV de Leão e Castela, a Infanta Dona Branca partiu para o mosteiro burgalês tão ligado à família.
Branca de Portugal foi Senhora de Huelgas, mas não abadessa – a tradição ditava desde a fundação que uma infanta, em representação do rei, ‘rivalizasse’ com a abadessa. Sancho IV doou-lhe o vasto património do Mosteiro, ao qual ela acrescentou o seu enorme património pessoal. Não lhe são conhecidos ímpetos usurários como a mais recente D. Branca que se tornou famosa por cá, mas a lista dos seus negócios imobiliários não deixa de impressionar. O seu túmulo é uma beleza. Em estilo mudéjar, é uma sucessão de armas de Portugal, de seu pai, e de Castela e Leão, de sua mãe. Rodeiam-no as fabulosas tapeçarias dadas pelo Imperador Carlos V em pagamento de uma dívida, que se conservam penduradas no presbitério, intocadas ao fim de 500 anos.
À vista, ainda que longe do coração, conserva-se o túmulo de outra descendente dos reis portugueses mas de má memória por cá. Margarida de Sabóia, Duquesa de Mântua, a vice-rainha e prima direita (atendendo à data, não se aceitarão já reclamações por nomeação de familiares) que Felipe III mandou para Lisboa para governar em seu nome em 1634, esperando talvez que o seu pulso firme e determinação tivessem em Portugal o mesmo sucesso que haviam tido em Mântua. O 1.º de Dezembro conduziu-a a Espanha, morrendo em Miranda de Ebro e sendo sepultada no Mosteiro das Huelgas com a dignidade real que almejou na sua conturbada vida. Deixou descendência que se espalharia pelos tronos (incluindo o português) e mesmo pelas guilhotinas da Europa.
 


 
 
 
Para o fim, com inversão cronológica, a história da última abadessa com ascendência real que o mosteiro teve e que é amplamente mencionada na visita. O seu túmulo (vazio, segundo algumas fontes) está na mesma nave central mas em zona que não se visita e a ligação lusa envolve o Pasteleiro de Madrigal que queria ser Rei de Portugal, história particularmente saborosa entre os falsos (?) sebastiões.
Ana de Áustria y Mendoza era filha de D. Juan de Áustria, o vencedor da Batalha de Lepanto. Este era filho ilegítimo do Imperador Carlos V e irmão de Felipe II de Espanha. A mãe, Ana de Mendoza, fora aia da Infanta D. Joana de Áustria, também filha de Carlos V e mãe do nosso Rei D. Sebastião. Órfã de pai aos 10 anos, Ana foi enclausurada pelo seu tio Felipe II no Mosteiro de Nossa Senhora da Graça, em Madrigal de las Altas Torres.
Madrigal já estava inscrita na história de Espanha por ter sido berço de Isabel a Católica, nascida no palácio que daria lugar ao convento onde Ana se encontrava ao cuidado das agostinhas e onde professou, possivelmente contrariada, em 1589. O tio levava então 9 anos como Rei de Portugal e o primo, o Rei D. Sebastião, 11 anos desaparecido.
A parte trágica e curiosíssima da história começa em 1594. No Mosteiro de Madrigal estava outro desterrado por Felipe II: Frei Miguel dos Santos, agostinho, antigo pregador de D. Sebastião e de D. António, Prior do Crato, a quem dera o seu apoio na disputa dinástica de 1580. O processo judicial e a historiografia colocam Frei Miguel, inconformado com a união dos reinos, como urdidor da trama. Ainda há, contudo, quem defenda que o Pasteleiro era mesmo D. Sebastião e a pastelaria a sua penitência pelo desastre africano. 
Gabriel de Espinosa teria parecença física com o desaparecido D. Sebastião. Era, para pasteleiro, surpreendentemente bem-falante e bom cavaleiro, tendo chegado em 1594 a Madrigal. Em apenas três meses, conluiado com o frade português e a monja real, Espinosa consegue pôr em polvorosa a corte do poderoso Felipe II. Terá sido convencido pelo frade a aceitar o disfarce e a deixar-se passar por rei. Juntos, terão convencido uma crédula Ana de Áustria a juntar-se à causa, pela justiça da mesma e pela enorme piedade do “rei-penitente”. A vontade desta de sair do Convento e quiçá ser Rainha de Portugal seria tal que se envolveu para lá do que a tolerância do seu tio permitia. Foi a posse de jóias da monja que determinou a detenção de Gabriel, ou Sebastião, em Valladolid. Mas for a carta de Frei Miguel, tratando-o 23 vezes por ‘Majestade’ (um excesso, quando considerado que seria o comparsa de uma trama, como dizem os crentes em que era realmente o rei português) que fez soar os alarmes e as cartas para Felipe II. 
Gabriel de Espinosa foi preso, torturado e condenado. Terá confessado a farsa e o seu contrário, mas morreu desafiante, com ares que todos reconheciam de grande nobreza, mesmo os que o condenaram. Foi esquartejado por ordem directa do Rei Felipe II, que não enviou a reconhecer o ‘parente’, como este sempre pediu. Frei Miguel dos Santos, degradado do estado eclesiástico, morreria enforcado na Plaza Mayor de Madrid, depois de, torturado também, ter confessado a urdidura.
 


 
 
 
A sentença de D. Ana de Áustria determinou o seu envio para outro convento, que veio a ser em Ávila, com a agravante de que não podia ser abadessa, nem ser servida por monjas, apenas por “criadas comuns”. Estava ainda obrigada a um jejum de pão e água a cada sexta-feira. Subido ao trono o seu primo Felipe III em 1598, Ana de Áustria for perdoada por considerar o monarca que ela fora enganada. Regressou a Madrigal e foi eleita Abadessa. Mais tarde, por ser necessária uma nova autoridade para o Mosteiro das Huelgas rumou a Burgos, onde obteve o mais alto cargo a que poderia aspirar uma eclesiástica em Espanha. Teria porventura preferido reinar em Portugal, ao lado do seu sebastião, mas no Mosteiro das Huelgas ficou a sua memória como uma boa abadessa.

A história pode, contudo, não ter sido tão simples. Mercedes Fórmica, escritora espanhola desaparecida em 2002, associada à Falange, a Franco e a Primo de Rivera, estudou Ana de Áustria e o processo de Madrigal. Estudou também a criança referida na história como filha do pasteleiro e situa-a como filha não apenas de Gabriel de Espinosa, mas também da monja real, dando-lhe o nome Clara Eugenia de Áustria. Descrita nos textos históricos como tendo lábio carnudo próprio dos Habsburgo espanhóis, teria nascido de um ‘casamento’ abençoado por Frei Miguel, o que justificaria a fúria acrescida de Felipe II. Fórmica sugere a existência de uma linhagem sebastianista em Las Palmas e coloca a Abadessa das Huelgas a sair do Mosteiro em 1628 para ir em busca da filha, circunstância que explicaria o túmulo vazio.
Ademar Vala Marques
(Fotografias: Março de 2019)


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