Escondido
no meio de um bairro tipicamente desinteressante, com as casas monótonas na
cadência e no aspecto que as últimas décadas imobiliárias nos legaram de forma
tão pródiga, está o Mosteiro de Santa Maria La Real de las Huelgas, uma jóia de
Burgos.
Não
se dá por ele até à última curva. Não se distingue por altas torres ou pela
imponência, nem pelo isolamento – está assimilado pela cidade, embora quando fotografado
de longe se intua o enquadramento original. Contudo, pela sua história, pelo
misticismo que a clausura permitiu conservar e pelo seu acervo único, o Mosteiro
merece uma visita.
Uma
história de séculos de abadessas, coroações e influência real em Castela resumida
a meia dúzia de linhas não seria mais do que uma compilação de informações
recolhida aqui e ali, na internet que quase
tudo sabe. Apenas duas ou três notas, que resultam da experiência
pessoal da visita para motivar o interesse de quem passar por Burgos, até
porque o Mosteiro não tem a divulgação que merece, porventura por impedirem a
fotografia no interior.
A
voz da guia chega-nos pelos auriculares, para não perturbar a oração das habitantes.
É casa de monjas de clausura da Ordem de Cister, popularmente conhecidas por
bernardas, em memória do fundador da Ordem. É ainda – e também praticamente
desde a fundação no século XII – o principal mosteiro desta congregação em
Espanha. O facto de as monjas permanecerem imperturbáveis há tantos séculos
explica a preservação de tantos elementos arquitectónicos e artísticos sem restauros
que lhes roubem a autenticidade.
O
exterior é sóbrio, embora a amplitude do pátio impressione. A igreja,
interessante sem ser espectacular. Vestígios da primitiva arquitectura mudéjar,
belíssimos capitéis dos claustros e escultura com história, como a imagem
articulada do Apóstolo Santiago para armar cavaleiros os Reis de Castela.
É,
contudo, na sua condição
de Panteão Real que reside o especial interesse do Mosteiro e também
a ligação a Portugal, por três presenças femininas na nave central da igreja.
Huelgas
foi fundado em 1187 pelo Rei Alfonso VIII de Castela e sua mulher, a Rainha
Leonor Plantageneta – filha dos célebres Henrique II de Inglaterra e Leonor da
Aquitânia (como tal, irmã dos Reis Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra). Alfonso
VIII (numeração contestada por alguma historiografia uma vez que se trata, na
verdade, do primeiro Alfonso rei apenas de Castela) era neto de Alfonso VII de
Leão e Castela, que reconheceu a soberania portuguesa em 1143 e cuja morte voltou
a ditar a separação dos reinos de Leão e de Castela.
Grande
impulsionadora do mosteiro destinado a Panteão Real de Castela, a Rainha Leonor
parece ter-se inspirado na Abadia de Fontevraud, no vale do Loire, fortemente
ligada à sua família. A Abadessa de Huelgas teve um privilégio raro de
dependência directa do Papa, o que terá ao longo de séculos enfurecido
sucessivos bispos de Burgos. Tal como Henrique II e Leonor da Aquitânia em
Fontevraud, Alfonso
e Leonor têm os seus túmulos no presbitério, onde sucessivas
gerações de monjas e poderosas abadessas puderam agradecer o precioso legado
deixado pelos monarcas.
Nas
três naves da igreja sucedem-se as arcas tumulares. Embora longe do esplendor
que a perícia dos escultores dará ao eterno descanso dos seus sucessores, são
belos exemplos de heráldica tumular, conservando-se ainda a policromia
original em alguns deles. É, de resto, nestes túmulos que está a
origem de um dos pontos fundamentais da visita: o Museu
das Telas Medievais. As Invasões Francesas levaram quase todos os
anéis e as espadas, mas deixaram as roupas com que os reis e os seus filhos foram
sepultados. Estas conservaram-se, algumas quase imaculadas, constituindo um
espólio extraordinário que faz deste um verdadeiro museu da moda do século XIII
e XIV, com modelos originais das roupas cerimoniais da corte de Castela.
Imperdível.
Junto
ao altar-mor, do lado da epístola, situa-se o túmulo da Infanta D. Branca de
Portugal. Foi a filha mais velha do Rei D. Afonso III e da Rainha D. Beatriz –
e nasceu em 1258, já depois de o Papa condenar o rei português por bigamia. Afonso,
bolonhês consorte, tinha ainda viva e furiosa a primeira mulher, a bolonhesa
que lhe emprestara o título e o prestígio para derrubar o irmão. O futuro Rei
D. Dinis nascerá em 1261, já depois da morte da Condessa D. Matilde e sem que
houvesse impedimento ao casamento dos pais.
A
Rainha D. Beatriz era, por sua vez, filha ilegítima do Rei Alfonso X de Leão e
Castela – chamado o Sábio. Foi para junto do pai que partiu, levando as filhas,
pelos desentendimentos com o filho, poucos anos após a subida ao trono de D.
Dinis. Após a conturbada sucessão do avô (a que não é alheio o Mosteiro das
Huelgas, onde jaz o pretendente derrotado, Alfonso
de la Cerda) e por ordem do tio, Sancho IV de Leão e Castela, a
Infanta Dona Branca partiu para o mosteiro burgalês tão ligado à família.
Branca de
Portugal foi Senhora de Huelgas, mas não abadessa – a
tradição ditava desde a fundação que uma infanta, em representação do rei,
‘rivalizasse’ com a abadessa. Sancho IV doou-lhe o vasto património do
Mosteiro, ao qual ela acrescentou o seu enorme património pessoal. Não lhe são
conhecidos ímpetos usurários como a mais recente D. Branca que se tornou famosa
por cá, mas a lista dos seus negócios imobiliários não deixa de impressionar. O
seu túmulo
é uma beleza. Em estilo mudéjar, é uma sucessão de armas de Portugal,
de seu pai, e de Castela e Leão, de sua mãe. Rodeiam-no as fabulosas tapeçarias
dadas pelo Imperador Carlos V em pagamento de uma dívida, que se conservam
penduradas no presbitério, intocadas ao fim de 500 anos.
À
vista, ainda que longe do coração, conserva-se o túmulo de outra descendente
dos reis portugueses mas de má memória por cá. Margarida de Sabóia, Duquesa de
Mântua, a vice-rainha e prima direita (atendendo à data, não se aceitarão já
reclamações por nomeação de familiares) que Felipe III mandou para Lisboa para
governar em seu nome em 1634, esperando talvez que o seu pulso firme e
determinação tivessem em Portugal o mesmo sucesso que haviam tido em Mântua. O
1.º de Dezembro conduziu-a a Espanha, morrendo em Miranda de Ebro e sendo
sepultada no Mosteiro das Huelgas com a dignidade real que almejou na sua
conturbada vida. Deixou descendência que se espalharia pelos tronos (incluindo
o português) e mesmo pelas guilhotinas da Europa.
Para
o fim, com inversão cronológica, a história da última abadessa com ascendência
real que o mosteiro teve e que é amplamente mencionada na visita. O seu túmulo
(vazio, segundo algumas fontes) está na mesma nave central mas em zona que não
se visita e a ligação lusa envolve o Pasteleiro de Madrigal que queria ser Rei
de Portugal, história particularmente saborosa
entre os falsos (?) sebastiões.
Ana de Áustria
y Mendoza era filha de D. Juan de Áustria, o
vencedor da Batalha de Lepanto. Este era filho ilegítimo do Imperador Carlos V
e irmão de Felipe II de Espanha. A mãe, Ana de Mendoza, fora aia da Infanta D.
Joana de Áustria, também filha de Carlos V e mãe do nosso Rei D. Sebastião. Órfã
de pai aos 10 anos, Ana foi enclausurada pelo seu tio Felipe II no Mosteiro de
Nossa Senhora da Graça, em Madrigal de las Altas Torres.
Madrigal
já estava inscrita na história de Espanha por ter sido berço de Isabel a
Católica, nascida no
palácio que daria lugar ao convento onde Ana se encontrava ao
cuidado das agostinhas e onde professou, possivelmente contrariada, em 1589. O
tio levava então 9 anos como Rei de Portugal e o primo, o Rei D. Sebastião, 11
anos desaparecido.
A
parte trágica e curiosíssima da história começa em 1594. No Mosteiro de
Madrigal estava outro desterrado por Felipe II: Frei
Miguel dos Santos, agostinho, antigo pregador de D. Sebastião e de
D. António, Prior do Crato, a quem dera o seu apoio na disputa dinástica de
1580. O processo judicial e a historiografia colocam Frei Miguel, inconformado
com a união dos reinos, como urdidor da trama. Ainda há, contudo, quem defenda
que o Pasteleiro era mesmo D. Sebastião e a pastelaria a sua penitência pelo
desastre africano.
Gabriel
de Espinosa teria parecença física com o desaparecido
D. Sebastião. Era, para pasteleiro, surpreendentemente bem-falante e bom
cavaleiro, tendo chegado em 1594 a Madrigal. Em apenas três meses, conluiado
com o frade português e a monja real, Espinosa consegue pôr em polvorosa a
corte do poderoso Felipe II. Terá sido convencido pelo frade a aceitar o
disfarce e a deixar-se passar por rei. Juntos, terão convencido uma crédula Ana
de Áustria a juntar-se à causa, pela justiça da mesma e pela enorme piedade do
“rei-penitente”. A vontade desta de sair do Convento e quiçá ser Rainha de
Portugal seria tal que se envolveu para lá do que a tolerância do seu tio
permitia. Foi a posse de jóias da monja que determinou a detenção de Gabriel,
ou Sebastião, em Valladolid. Mas for a carta de Frei Miguel, tratando-o 23
vezes por ‘Majestade’ (um excesso, quando considerado que seria o comparsa de
uma trama, como dizem os crentes em que era realmente o rei português) que fez
soar os alarmes e as cartas para Felipe II.
Gabriel
de Espinosa foi preso, torturado e condenado. Terá confessado a farsa e o seu
contrário, mas morreu desafiante, com ares que todos reconheciam de grande
nobreza, mesmo os que o condenaram. Foi esquartejado por ordem directa do Rei
Felipe II, que não enviou a reconhecer o ‘parente’, como este sempre pediu.
Frei Miguel dos Santos, degradado do estado eclesiástico, morreria enforcado na
Plaza Mayor de Madrid, depois de, torturado também, ter confessado a urdidura.
A
sentença de D. Ana de Áustria determinou o seu envio para outro convento, que
veio a ser em Ávila, com a agravante de que não podia ser abadessa, nem ser
servida por monjas, apenas por “criadas comuns”. Estava ainda obrigada a um
jejum de pão e água a cada sexta-feira. Subido ao trono o seu primo Felipe III
em 1598, Ana de Áustria for perdoada por considerar o monarca que ela fora
enganada. Regressou a Madrigal e foi eleita Abadessa. Mais tarde, por ser
necessária uma nova autoridade para o Mosteiro das Huelgas rumou a Burgos, onde
obteve o mais alto cargo a que poderia aspirar uma eclesiástica em Espanha.
Teria porventura preferido reinar em Portugal, ao lado do seu sebastião, mas no
Mosteiro das Huelgas ficou a
sua memória como uma boa abadessa.
A
história pode, contudo, não ter sido tão simples. Mercedes Fórmica, escritora
espanhola desaparecida em 2002, associada à Falange, a Franco e a Primo de
Rivera, estudou Ana de Áustria e o processo de Madrigal. Estudou também a
criança referida na história como filha do pasteleiro e situa-a como filha não
apenas de Gabriel de Espinosa, mas também da monja real, dando-lhe o nome Clara
Eugenia de Áustria. Descrita nos textos históricos como tendo lábio
carnudo próprio dos Habsburgo espanhóis, teria nascido de um ‘casamento’
abençoado por Frei Miguel, o que justificaria a fúria acrescida de Felipe II.
Fórmica sugere a existência de uma linhagem sebastianista em Las Palmas e coloca
a Abadessa das Huelgas a sair do Mosteiro em 1628 para ir em busca da filha,
circunstância que explicaria o túmulo vazio.
Ademar
Vala Marques
(Fotografias:
Março de 2019)
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