Desde Janeiro de 1930, Salazar acumulava o
cargo de Ministro das Finanças com o de Ministro das Colónias interino, este
último especificamente para resolver a grave crise que Angola atravessava e a
polémica sobre política financeira que, a propósito, travara com Cunha Leal,
governador do Banco de Angola, demitindo-o[1].
Em 29 de Abril, através de uma extensa Nota
Oficiosa, comunicou ser necessário aditar imediatamente um Acto Colonial. Neste,
deveriam reunir-se não só «as garantias fundamentais da nação portuguesa como
potência colonial, as dos indígenas, as da governação ultramarina e as das
relações económicas e financeiras entre a Metrópole e as Colónias», como ainda,
aproveitando as Bases Orgânicas aprovadas pelo Ministro João Belo em 1926, proclamar-se
o «mais alto nacionalismo e uma barreira contra os factores de desorganização».
Mais dispunha a Nota Oficiosa que, embora já aprovado na generalidade pelo
Conselho de Ministros, o Acto Colonial seria divulgado publicamente a fim de
ser examinado e beneficiar das «observações aproveitáveis».
O
projecto foi publicado pelos jornais no dia seguinte, 30 de Abril de 1930. Para
o editorialista do vespertino Diário de
Lisboa um texto sobre tão delicada matéria envolvia dois aspectos de
importância transcendente: o constitucional e o colonial. Quanto ao primeiro, podia
deduzir-se irem ser convocadas Cortes Constituintes; quanto ao aspecto
colonial, visto tratar-se «de um assunto em que qualquer propósito de
especulação bem poderia ser tomado à conta de sacrilégio», esperava-se uma
opinião de todos os que para isso tinham autoridade e competência.
Imediatamente,
foram entrevistadas pelos jornais três personalidades: o Conde de
Penha Garcia, o general Norton de Matos e Aires de Ornelas, lugar-tenente de D.
Manuel II.
O
primeiro, então presidente da Sociedade de Geografia, onde dentro de dias iria
decorrer o III Congresso Colonial, destacou tratar-se de «um documento de alta
importância», provando que Salazar estava a considerar «o problema colonial,
nas suas grandes linhas, com decisão e um golpe de vista de conjunto»; além
disso, a abertura à discussão pública significava que Salazar pretendia pôr-se
«em contacto com a opinião das Colónias, para assim fortalecer a sua própria em
assuntos que não lhe eram familiares». Na sua conclusão pessoal, o diploma era
«nacionalista e centralizador» e correspondia, na matéria financeira, à «correcção
indispensável aos exageros provenientes da autonomia»[2].
Para Norton de Matos – Alto-Comissário em
Angola, cargo de que se demitira em 1925, e Embaixador em Londres, de que fora
exonerado em Junho de 1926 –, o projecto «não une, não harmoniza nem acalma».
Discordava do disposto nos artigos 3.º, 4.º e 5.º (sobre a forma e denominação
do Império Colonial), mas acentuava que nos artigos 7.º, 8.º e 9.º, apesar das
deficiências de redacção, residia a boa doutrina por, ao regularem a
propriedade dos territórios coloniais e as concessões, se destinarem a pôr «um
freio às abusivas e escandalosas explorações da soberania nacional». Também
apoiava o regime previsto para os indígenas; quanto à autonomia e descentralização
manifestava-se «francamente contrário às restrições começadas pelo falecido
comandante João Belo e agora continuadas»[3].
Mas desvalorizou-o – como provou, no ano seguinte, quando, embora defendendo
que toda a administração e governo de Portugal devia basear-se na Unidade
Nacional (cujo primeiro aspecto era a unidade territorial), qualificou o Acto
Colonial de mera Lei Orgânica, não lhe dando qualquer desenvolvimento[4].
Pelo lado dos “monárquicos africanistas” – a
quem, em 1926, coubera a primeira definição e comando da política colonial da
Ditadura Militar –, Aires de Ornelas não pretendia analisar o projecto no seu
articulado, limitando-se a destacar que ele defendia «com energia os interesses
de Portugal» e, além disso, reatava «a nossa altíssima e incomparável tradição
de povo colonizador»; considerava, por fim, bom e necessário que nesta se
insistisse com vista a reafirmar a posição portuguesa quer em Genebra quer nas
outras reuniões internacionais «em que se falaceia de mandatos»[5].
Também
o prolixo “colonial” e polemista, advogado, agricultor e industrial em
Moçambique, Eduardo de Almeida Saldanha (Viseu, 1874, Lourenço Marques, 1948) –
tentando, segundo acrescenta, chegar a Salazar ou, ao menos, à eventual
publicação no jornal Novidades – redigiu
um extenso e crítico artigo sobre o que qualificava de «pomposamente baptizado»[6] Acto
Colonial. Descobria nele oito princípios: i)- unidade de administração das
colónias (assim pondo termo à delegação de poderes em empresas particulares); ii)-
normalização da administração (acabando com o regime dos Altos- Comissários); iii)-
régie na exploração dos portos
comerciais; iv)- nacionalização da economia das colónias; v)- remuneração
obrigatória dos serviços prestados pelos indígenas ao Estado ou aos corpos
administrativos; vi)- cessação do trabalho indígena compelido a favor dos
particulares; vii)- responsabilização financeira das colónias directa e
exclusivamente perante a Metrópole; viii)- dever de honra dos Governadores em
sustentarem os direitos de soberania da Nação e promoverem o bem da colónia.
Ora, em sua opinião, só este último princípio constituía
novidade. Porém, mesmo esse não passava de «declaração piedosa». Por tudo isso,
concluía, o Acto Colonial era mera «comédia».
Anos antes, em 1924, impressionado pelo facto
de Portugal não ter opinião pública que se interessasse pelas coisas das
colónias, Augusto da Costa, jornalista do Jornal
do Comércio e Colónias, submetera a dezasseis intelectuais e militares um
“inquérito nacional” com quatro perguntas sobre o sentido, presente e futuro,
de Portugal enquanto potência colonial. Foram escolhidos: «os monárquicos
integralistas ou de sentido nacional e tradicional Alberto Monsaraz, Hipólito
Raposo, Pequito Rebelo e João Ameal […], o também integralista e escritor
colonial Américo Chaves de Almeida, o poeta também monárquico e nacionalista
Afonso Lopes Vieira, o economista Bento Carqueja, o escritor Sousa Costa, o
grande poeta modernista Fernando Pessoa, o pensador Fidelino Figueiredo, o
então jovem político de extrema-direita Marcelo Caetano […], o médico […]
Francisco Garcia, o marinheiro colonialista José Francisco da Silva, os
militares coloniais João de Almeida, Paiva Couceiro e João de Azevedo Coutinho»[7]. Duas
conclusões relevantes se retiravam do conjunto de respostas. Primeira: para a
maioria dos depoentes as colónias faziam parte da identidade portuguesa.
Segunda: prevalecia a ideia de que o destino das colónias seria, a prazo, a
independência, embora os “novos brasis” presumivelmente se mantivessem «ligados
a Portugal, com a sua identidade própria, o que passaria também pela
reafirmação da identidade portuguesa no jogo da política mundial»[8].
Como se verá, alguns destes depoentes
intervirão na apreciação pública do Acto Colonial. Ora, só em 1934 Augusto
Costa editou em livro estes depoimentos, mas então votava-se à «Apologia do
Império Colonial», como intitulou o posfácio[9].
Neste, sistematizava «os três dogmas do imperialismo português», salientando nunca ter sido um imperialismo de expansão ou de cobiça, antes e apenas, um imperialismo de consolidação do existente[10].
Mas o dogmatismo deste artigo – que, em grande
medida, antecipava a doutrina que Armindo Monteiro iria desenvolver na
construção e governo do Império Colonial – não era então absolutamente
coincidente com a ideologia governamental e, sobretudo, contrariava o sentido
da discussão preliminar do projecto do Acto Colonial, em que ainda intervieram
activamente os defensores da política colonial prosseguida pela Primeira
República, como se verá de seguida.
António Duarte
Silva
[1] Este texto, em seis partes, é uma reformulação (no estilo,
conteúdo e notas) do artigo “A discussão pública do Acto Colonial”, a publicar
in AAVV, Estudos em Homenagem do
Conselheiro Sousa Ribeiro (Presidente do Tribunal Constitucional).
[4] In O Primeiro de Janeiro, de 29 de
Maio e 3, 13, e 17 de Junho de 1931, transcritos apud “A Questão Colonial”, Boletim da Agência Geral das Colónias,
Ano 7.º, Julho de 1931, n.º 73, pp. 262 a 279.
[6] Eduardo de Almeida Saldanha,
“Projecto do ‘Acto Colonial’” apud Colónias,
Missões e Acto Colonial, Vila Nova de Famalicão, 1930, pp. 24 e segs. Não
se encontrou a pretendida publicação jornalística.
[7] Conforme síntese de Luís Reis Torgal,
“Do ‘Império às ‘Independências’. Colonialismo, Anticolonialismo e Identidades
nacionais”, in Estudos do Século XX,
n.º 3 Coimbra, CEIS 20/Quarteto, p. 11.
[9]
Augusto da Costa, Portugal Vasto Império - um inquérito nacional, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1934.
[10] Idem, “Os três dogmas do imperialismo
português”, in Boletim Geral das Colónias,
ano 8.º, Junho de 1932, n.º 84, pp. 154-155.
Sem comentários:
Enviar um comentário