DE
COMO JORGE DE SENA TINHA DIREITO ÀS SUAS RAIVAS
(No
41º aniversário da morte de Jorge de Sena).
Entre os dias 7 e 13 de Setembro de 1966 realizou-se o VI
Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros nos Estados Unidos. A
primeira parte teve lugar na Harvard University, em Cambridge, Massachusetts, e
a segunda, na Hispanic Society of America, na Cidade de Nova Iorque.
Zelosamente empenhada vem a delegação oficial do
Brasil, em conivência tácita com a de Portugal, em impedir por todos os meios
possíveis e imaginários que o Eng. Jorge de Sena e prolífico escritor, já com o
seu doutoramento em literatura portuguesa, pela Universidade de São Paulo,
feito em 1964, e, portanto, devidamente credenciado em termos académicos, e com
a experiência de seis anos de professor competentíssimo nessa mesma
universidade, para já não falar da publicação de um vasto leque de estudos
seminais nos campos da literatura, cultura e crítica literária, possa continuar
a exercer o magistério de professor de literatura portuguesa e brasileira nos
Estados Unidos, especificamente na Universidade de Wisconsin, em Madison, para
que fora contratado no ano anterior, ou seja, em 1965.
Numa carta que Dona Mécia de Sena me escreveu, datada de 16
de Novembro de 1966, de Madison, Wisconsin, conta-me o que Jorge de Sena me
viria a confirmar, também por carta, poucos dias depois, a propósito do que
aconteceu durante o dito VI Colóquio:
“Quanto à comunicação [de Jorge] do Colóquio deve ser
publicada um dia, não sabemos quando, nas actas do Colóquio. Quando o [Raymond]
Sayers perguntou ao Armando Cortesão se a comunicação seria incluída no volume
que ele declarou seria feito em Portugal com as teses dos portugueses e
brasileiros que lhes aprouvesse este declarou que o Jorge não era brasileiro
nem português... era americano... que não, claro. [...] numa das
últimas [cartas] que o Jorge enviou [para “O tempo e o Modo”] seguia o relato
do comportamento vergonhoso que foi o da delegação portuguesa no Colóquio e da
brasileira que resolveu destruir o prestígio do Jorge aqui (o que foi
claramente dito ao Sayers com antecipação) pelo que o Pedro Calmon, a propósito
da tese, que por certo não lera, declarou que o meu marido era um incompetente
no ensino da literatura brasileira e que eram pessoas destas que para aqui
vinham. O Josué Montello pôs mais lenha [na fogueira] e o Afrânio [Coutinho]
deu o que ele julgou ser o golpe de misericórdia, dizendo que o Brasil
“generosamente” dera ao meu marido títulos que ele jamais merecera. Felizmente
que meu marido tinha no bolso um artigo do dito Afrânio em que ele dava largas
ao seu anti-portuguesismo vesgo (que providencialmente fora enviado ao Jorge) e
ele levara para mostrar ao Guerra da Cal, que era também visado e não pouco
nele. Uma coisa que deixou os norte-americanos agoniados e culminou em o
Montello por três vezes se oferecer para ensinar na Columbia [University]. À
terceira investida foi-lhe dito que a Columbia não estava interessada em
académicos, muito menos brasileiros. Claro que a delegação portuguesa estava
impante com o ataque, e não viam, os estúpidos, que estava triunfante a turma
do status quo na medida em que tentavam calar a única voz que ainda grita que o
rei vai nu”.
Afrânio Coutinho não só fez questão de propalar essas
execrandas aleivosias entre os membros do Colóquio, mas teve o desplante de
informar expressamente o chefe do Departamento de Espanhol e Português da
Universidade de Wisconsin, Professor Edward Mulvihill, que no Brasil tinham
dado o doutoramento a Jorge de Sena, por terem pena dele, uma vez que tinha de
sustentar a esposa e nove filhos.
Aos infames e infandos ataques ad hominem, por parte de Afrânio Coutinho, ripostou Jorge de Sena
que a rábida sanha de Afrânio contra Portugal e os académicos portugueses havia
chegado ao ponto de pontificar publicamente que o Padre António Vieira era
exclusivamente escritor brasileiro e de intimar os portugueses a jamais
incluí-lo nos manuais e antologias de literatura portuguesa e considerá-lo
escritor português; que a dita sanha de Afrânio Coutinho tinha chegado também
ao ponto de maldosamente intrigar junto da administração do Reader’s Digest,
onde o grande escritor português, Rodrigues Miguéis, exilado político nos
Estados Unidos, encontrara o seu honesto ganha-pão, para o despedirem
sumariamente, uma vez que ele, Rodrigues Miguéis, garantia Afrânio Coutinho,
não tinha competência para exercer esse cargo – o de tradutor desses livros
para Português – ele, Rodrigues Miguéis, que foi um dos melhores prosadores do
seu tempo, como as suas obras o provam à saciedade. E foi assim que Afrânio
Coutinho roubou descaradamente e despudoradamente o emprego a Rodrigues
Miguéis.
Sabendo de antemão que esses asquerosos ataques seriam
movidos contra Jorge de Sena, os organizadores americanos do VI Colóquio
Internacional de Estudos Luso-Brasileiros defenderam o Engenheiro, Escritor e
Professor Jorge de Sena com dois potentes e impenetráveis escudos:
conferiram-lhe a honra de ser o orador oficial da abertura da primeira parte do
Colóquio, realizado na Harvard University, onde ele proferiu a sua famosa
conferência sobre a “Situação da Literatura Portuguesa”, conferência que Jorge
de Sena classificara de “uma bomba medonha”, numa carta a Dante Moreira Leite,
de 25 de Agosto de 1966, e fizeram-no membro da prestigiosa Hispanic Society of
America, lado a lado com duas sumidades das letras portuguesas - a falecida
Carolina Michaelis de Vasconcellos e Fidelino de Figueiredo -,
factos que levaram Jorge de Sena a dizer-me justamente ufano, na tal longa
carta que me escreveu, por essa ocasião, que a todos esses sacanas que queriam
destruí-lo como professor universitário lhes “saíra o tiro pela culatra”.
Não tinha decorrido muito tempo sobre estes acontecimentos
quando, sob os auspícios do State Department, veio mais uma vez Afrânio
Coutinho visitar oficialmente alguns dos programas de Português nos Estados
Unidos, criados durante a presidência de Dwight Eisenhower, em resposta aos
desafios da “Guerra Fria”, com forte apoio financeiro do governo federal, para
incentivar o estudo das chamadas “línguas críticas”, entre as quais ocupava
lugar cimeiro a língua portuguesa, sobretudo em virtude das dimensões
continentais do Brasil.
E, claro está, que nesse tour tinha de estar incluída, como
esteve, a Universidade de Wisconsin, em pleno ano lectivo, uma vez que, por
esse tempo, essa Universidade tinha o melhor centro de estudos luso-brasileiros
dos Estados Unidos.
Como era da praxe, agendou-se uma espécie de seminário para
que Afrânio Coutinho, que – dizia-se - possuía a melhor biblioteca de
literatura comparada do Brasil, pudesse dialogar, sobretudo, com os alunos de
pós-graduação, entre os quais se encontrava o abaixo-assinado.
Por razões mais que óbvias, não se podia esperar, dadas as
peripécias de má memória referidas anteriormente, e outras semelhantes, que
Jorge de Sena participasse do tal seminário nem muito menos se encontrasse com
esse ilustre convidado do State Department. Mas isso não impediu que, por
razões protocolares e deontológicas, aconselhasse todos os seus alunos a
participar e a aprender.
Entretanto, numa aula do dia seguinte, não posso esquecer
que uma das primeiras perguntas que Jorge de Sena nos fez foi se Afrânio
Coutinho tinha finalmente resolvido, a contento de todos os participantes, a
momentosa e eterna questão sobre Dom Casmurro de Machado de Assis: se houve ou
não adultério, por parte de Capitu.
Como é que ele, Jorge de Sena, sabia que esse fora um dos
assuntos discutidos durante o dito encontro com Afrânio Coutinho? A resposta de
Jorge de Sena, com um sorriso a fugir levemente para a ironia, fazendo lembrar
a resposta dada pelos pais e pelos avós às criancinhas apanhadas a mentir, foi
que ele tinha um dedo mendinho que adivinhava essas
coisas.
Concluir
assim esta entrada do meu Diário destoaria do que, na realidade, a diabólica
perseguição movida contra Jorge de Sena, por ocasião do VI Colóquio
Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, representou na vida do meu saudoso
Mestre. É que tanta injustiça e tanta infâmia, da parte dos representantes
oficiais do país onde nasceu – Portugal – e do país que adoptou – o Brasil –,
abriram em Jorge de Sena uma ferida que o amargurou profundamente durante a
vida inteira.
Manchester,
29 de Maio de 2019
António
Cirurgião
Compreende-se melhor o contínuo desabafo em muitos prefácios e post-fácios (ele não ia em pós).
ResponderEliminarO simples Epitáfio de Eugénio de Andrade, a Sena dedicado ,dá a medida da integridade do falecido.
Bendito seu testemunho.
Obrigado.
Caro Sr. José,
EliminarEu é que lhe estou muito obrigado.
Saudações académicas.