Inspirado
pelo belíssimo
texto que o António Araújo escreveu no DN sobre a Semana Santa de
Sevilha, sobre as suas dezenas de irmandades e algumas duas suas curiosidades,
fui recuperar vídeos que fiz há dois anos, em Abril de 2017. Começam na já
célebre Madrugá dos sustos de que o
António fala e terminam no Domingo da Ressurreição.
Tinha
estado uns 20 anos antes e as diferenças entre as duas experiências não se
encontram a olho nu. A Semana Santa de Sevilha mantém o inimitável esplendor
barroco e continua a ser um inigualável espectáculo de arte e, em simultâneo,
um intenso momento de fé e de devoção popular.
Os
nazarenos continuam a impressionar, ainda há cera colorida no chão, sente-se o mesmo
perfume intenso de um incenso que por cá não há, ainda se ouvem saetas incríveis nos recantos da noite.
Perdeu-se um certo silêncio reverencial que marcava a proximidade de qualquer
andor. Foi substituído pela curiosidade turística e por uma nova descontração
na presença das santas imagens. Há um novo temor de que a Semana Santa se
converta meramente numa feira de vaidades, numa espécie mini-Disney, passando a
prevalecer a arte, a beleza e a curiosidade sobre a fé que deveria nortear os
cristãos naqueles dias. Não me pareceu, apesar de tudo, que esteja para breve.
É
verdade que há pessoas que vivem a Semana Santa de Sevilha com fervor
semelhante ao de um adepto de futebol que sabe a composição das equipas e os
resultados dos últimos 30 anos. Mas mesmo quando se nota alguma
superficialidade materialista e algum alheamento das práticas canónicas, não
deixa de se admirar a falta de vergonha com que milhares e milhares de jovens
estão nas ruas, se benzem e rezam perante as imagens da sua devoção.
Tivemos
a enorme sorte de ter um guia de excepção, o Pe. Antonio. Para além de ser um
dos mais brilhantes pregadores que alguma vez ouvi, falando com uma eloquência
capaz de fazer quebrar o coração mais impenitente, guiou-nos pelos pormenores e
pelos locais mais notáveis daqueles três dias.
Os vídeos mostram um pouco daquilo que o António tão bem descreveu. A beleza da
música e do canto popular, a qualidade da escultura, o esmero de cada conjunto,
entre alfaias e flores; o avanço dos populares em apertado ‘cangrejo’ diante do
pálio mais antigo, da Virgem del Valle; uma levantá
com o Señor de la Sentencia avançando entre nuvens de incenso e os seus
pitorescos legionários seguindo o trono de Pilatos e a súplica impotente da
mulher deste; o entusiasmo inigualável que Sevilha brinda à Esperanza Macarena,
entre aclamações, aplausos e chuvas de pétalas; a elegância tétrica do Senhor
do Silêncio, com a cruz levada à frente de forma tão bela quanto inusual; o
silêncio sepulcral que marca a passagem do Senhor do Gran Poder, a sua túnica
lisa bamboleando entre laranjeiras em plena madrugada; o popular Cristo de los
Gitanos regressando à sua igreja entre cornetas e tambores; o majestoso avanço do
Cristo da Conversão da Irmandade de Monserrat, obra extraordinária do escultor
Juan de Mesa ladeada pelos ladrões.
Uma
simbiose perfeita entre sagrado e profano. Procissões quando já se celebrou a
morte de Cristo e se deve esperar em silêncio a sua Ressurreição? Quase
blasfémia aos olhos dos liturgistas mais ortodoxos. Uma ‘bula’ pontifícia que,
para os compensar o sacrifício das procissões, permite aos sevilhanos comer
carne e seus presuntos e não jejuar em plena Sexta-feira Santa!? Uma
originalidade que merece sentença de excomunhão perpétua.
E,
no entanto, ali se reúnem milhares de almas, cada ano. Penitentes ou gratos.
Rezando por protecção ou por perdão. Por tradição, por curiosidade ou por fé,
mais ou menos profunda, mais ou menos de acordo com os cânones. “Poderosa e
excessiva, arrebatadora, contraditória”, como o António descreveu, mas sublime,
soleníssima, simultaneamente grandiosa e intimista, pródiga em momentos
inesquecíveis.
Ademar
Vala Marques
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