sábado, 30 de março de 2013

Monticello.

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Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida




 
Notas Bárbaras (diário ocasional)
 
24 de Março
Acabou a sorte do bom tempo. Se bem que frio, o azul no céu bate o cinzento a léguas. A concomitante baixa de temperatura é compensada pela luminosidade que nos acende os interiores. Havia neve anunciada para hoje com aviso de que podia complicar-nos o voo de regresso, como aliás acabou acontecendo, pois o nosso voo ficou adiado para amanhã já mesmo depois de as malas estarem a bordo. Por causa da neve? Qual quê! O avião levantaria. Mas no pequeno aeroporto de Charlottesville a maquineta-guindaste que faz a limpeza da neve nas asas do avião (de-icing) ficou sem fluido. Incrível, mas verdadeiro. E hoje é domingo. Por isso houve que arranjar hotel para pernoitarmos e arrostar com todas as inconveniências dos atrasos de um dia. O importante, porém, foi o passeio até Monticello, o “pequeno monte” ao lado de Charlottesville onde Thomas Jefferson construiu a sua famosa casa, mais propriamente uma mansão.
Impossível registar aqui a imensidade de novos dados que aprendi sobre o autor da Declaração da Independência dos EUA (pelo menos do rascunho que acabou sendo o texto-base), um feito notável para um jovem de apenas 33 anos. Admirador de há muito de Jefferson (presidente dos EUA de 1801 a 1809), fiquei a conhecê-lo melhor quando me embrenhei na reedição da correspondência dele com o Abade Correia da Serra (The Abbée Corrêa in America, 1812-1820). The Contributions of the Diplomat Philosopher to the Foundations of Our National Life, que era um extenso trabalho do historiador Richard Beale Davies (uma longa introdução seguida da correspondência do Abade com Jefferson e outros “pais da pátria” norte-americana) perdido num volume da revista Transactions of the American Philosophical Society. Transformei as cem largas páginas da revista num volume de 375 porque solicitei um prefácio ao historiador da Brown, Professor Gordon Wood, Pulitzer Prize e especialista no período da formação dos EUA, e um posfácio ao Prof. Léon Bourdon, da Sorbonne, que havia publicado também um volume com correspondência do Abade. (A FLAD patrocinou a tradução portuguesa a sair em breve.) A minha admiração foi crescendo quando fui tomando conhecimento do seu interesse pelos ideais da modernidade, mas também pela sua visão poderosamente larga, o seu insaciável desejo de aprender (I cannot live without books, dizia ele depois de, no final da vida e para saldar dívidas, ter vendido os sete mil que tinha em casa, a ponto de depois reconstruir uma biblioteca com mil). Lá estavam na parede da sala principal, o parlor, quadros com retratos das figuras que mais admirava. Numa, o trio Francis Bacon (foi obviamente nele que Jefferson bebeu o lema Knowledge is power que escolheu para a Universidade da Virginia), Isaac Newton e John Locke, para ele os mais brilhantes espíritos do pensamento. Por sinal, noutra parede está um quadro de Fernão Magalhães ao lado de Colombo.
Nessa mesma sala está o seu exemplar de uma camera oscura, para o tempo já muito aperfeiçoado da câmara fotográfica em voga na época (vinte anos mais tarde Karl Marx iria usar metaforicamente esse engenho para exemplificar a formação das ideologias na mente, pois a camera oscura inverte as imagens do real). Jefferson não era inventor, todavia interessava-se por novas invenções e depois trabalhava-as melhorando-as. Fazia mesmo gala disso. Aconteceu assim com uma engenhoca interessantíssima de um inglês: um aparelho assente sobre a escrivaninha com um espaço para folhas e duas canetas. Qualquer movimento de uma delas era reproduzido fidedignamente pela outra. Assim, era possível escrever o que quer que fosse e, em simultâneo, reproduzi-la ao lado. Foi assim que guardou cópias de milhares de cartas.
Interessadíssimo em arquitectura, desenhou ele próprio a casa e foi acompanhando a construção e fazendo mudanças nela ao longo de quarenta anos. São inúmeras as curiosidades do edifício, como por exemplo um sistema de pedir e fazer subir da cave garrafas de vinho para a mesa de jantar sem os criados terem de estar presentes a escutar as conversas; ou um catavento com prolongamento para a entrada da casa de modo a permitir ver-se a direcção do vento sem ter de se ir lá fora olhar para o telhado.
Jefferson adorava receber amigos e as visitas ficavam em casa dele semanas e meses. E eram sempre muitas. Foi assim que lá ficou o nosso Abade Correia da Serra que com o ex-presidente privou imenso, conversando inclusivamente acerca dos planos para a criação da Universidade da Virginia, o último grande empreendimento de Jefferson. O Abade era o único visitante co quarto no primeiro andar e cinquenta anos depois a neta de Jeferson ainda se lhe referia como “o quarto do Abade”. Não vou repetir o que escrevi noutros lugares. Citarei apenas Jefferson, em carta a um amigo referindo-se à decisão do Abade de regressar a Portugal, afirmando que nenhum outro visitante estrangeiro deixava atrás tanto querido pesar como ele.
Esta nota continuaria em panegírico dos dois, Jefferson e o Abade, mas há que encerrá-la. Nenhuma referência fiz ainda aos imensos jardins e hortas que rodeiam a casa. Jefferson dizia Nenhuma ocupação é mais agradável para mim do que a cultura da terra, e nenhuma cultura é comparável à de um jardim (que em inglês inclui flores e vegetais). Claro que tinha a enorme ajuda de escravos. Esse capítulo negro, durante tanto tempo silenciado, está hoje, graças às revelações que ao longo das últimas décadas foram surgindo, amplamente documentado e abertamente recontado por todo o Monticello e repetido aos grupos de vinte pessoas que de dez em dez minutos iniciam uma visita guiada à casa. Inclusivamente o facto de ele ter tido uma amante negra de quem teve vários filhos. A mulher de Jefferson, antes de morrer, ainda muito jovem, pediu-lhe que não voltasse a casar. Ele cumpriu. A senhora esqueceu-se, porém, de lhe proibir tudo o mais que se pode fazer sem o casamento.
Regressando ao jardim: o nosso Abade era um botânico exímio e os dois tinham mais esse elemento em comum. Entre muitos outros, aliás. Dele Jefferson escreveu a um amigo: é o homem mais culto que conheci em qualquer país. Enfim, toda a casa de Monticello é um mimo revelador da grandeza do espírito de Jefferson, da sua curiosidade insaciável (Não há nada no mundo que não me interesse conhecer). Daí aquela grande tirada de John Kennedy quando um dia ofereceu um jantar na Casa Branca a todos os prémios Nobel americanos: Nunca nesta sala esteve reunida tanta massa cinzenta desde a última vez que Thomas Jefferson almoçou aqui sozinho.
Falta apenas acrescentar que Monticello vive apenas de donativos oferecidos à Fundação Jefferson e das entradas dos visitantes. Não tem apoios do governo.
 
Onésimo Teotónio de Almeida
 

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