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Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida
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Notas Bárbaras (diário ocasional)
24 de Março
Acabou a sorte do bom tempo. Se bem que
frio, o azul no céu bate o cinzento a léguas. A concomitante baixa de
temperatura é compensada pela luminosidade que nos acende os interiores. Havia
neve anunciada para hoje com aviso de que podia complicar-nos o voo de
regresso, como aliás acabou acontecendo, pois o nosso voo ficou adiado para
amanhã já mesmo depois de as malas estarem a bordo. Por causa da neve? Qual
quê! O avião levantaria. Mas no pequeno aeroporto de Charlottesville a maquineta-guindaste
que faz a limpeza da neve nas asas do avião (de-icing) ficou sem fluido.
Incrível, mas verdadeiro. E hoje é domingo. Por isso houve que arranjar hotel
para pernoitarmos e arrostar com todas as inconveniências dos atrasos de um
dia. O importante, porém, foi o passeio até Monticello, o “pequeno monte” ao
lado de Charlottesville onde Thomas Jefferson construiu a sua famosa casa, mais
propriamente uma mansão.
Impossível registar aqui a imensidade de
novos dados que aprendi sobre o autor da Declaração da Independência dos EUA
(pelo menos do rascunho que acabou sendo o texto-base), um feito notável para
um jovem de apenas 33 anos. Admirador de há muito de Jefferson (presidente dos
EUA de 1801 a 1809), fiquei a conhecê-lo melhor quando me embrenhei na reedição
da correspondência dele com o Abade Correia da Serra (The Abbée Corrêa in
America, 1812-1820). The Contributions of the Diplomat Philosopher to the
Foundations of Our National Life, que era um extenso trabalho do
historiador Richard Beale Davies (uma longa introdução seguida da
correspondência do Abade com Jefferson e outros “pais da pátria”
norte-americana) perdido num volume da revista Transactions of the American
Philosophical Society. Transformei as cem largas páginas da revista num
volume de 375 porque solicitei um prefácio ao historiador da Brown, Professor
Gordon Wood, Pulitzer Prize e especialista no período da formação dos EUA, e um
posfácio ao Prof. Léon Bourdon, da Sorbonne, que havia publicado também um
volume com correspondência do Abade. (A FLAD patrocinou a tradução portuguesa a
sair em breve.) A minha admiração foi crescendo quando fui tomando conhecimento
do seu interesse pelos ideais da modernidade, mas também pela sua visão
poderosamente larga, o seu insaciável desejo de aprender (I cannot live
without books, dizia ele depois de, no final da vida e para saldar dívidas,
ter vendido os sete mil que tinha em casa, a ponto de depois reconstruir uma
biblioteca com mil). Lá estavam na parede da sala principal, o parlor,
quadros com retratos das figuras que mais admirava. Numa, o trio Francis Bacon
(foi obviamente nele que Jefferson bebeu o lema Knowledge is power que
escolheu para a Universidade da Virginia), Isaac Newton e John Locke, para ele
os mais brilhantes espíritos do pensamento. Por sinal, noutra parede está um
quadro de Fernão Magalhães ao lado de Colombo.
Nessa mesma sala está o seu exemplar de
uma camera oscura, para o tempo já muito aperfeiçoado da câmara
fotográfica em voga na época (vinte anos mais tarde Karl Marx iria usar metaforicamente
esse engenho para exemplificar a formação das ideologias na mente, pois a camera
oscura inverte as imagens do real). Jefferson não era inventor, todavia
interessava-se por novas invenções e depois trabalhava-as melhorando-as. Fazia
mesmo gala disso. Aconteceu assim com uma engenhoca interessantíssima de um
inglês: um aparelho assente sobre a escrivaninha com um espaço para folhas e
duas canetas. Qualquer movimento de uma delas era reproduzido fidedignamente
pela outra. Assim, era possível escrever o que quer que fosse e, em simultâneo,
reproduzi-la ao lado. Foi assim que guardou cópias de milhares de cartas.
Interessadíssimo em arquitectura,
desenhou ele próprio a casa e foi acompanhando a construção e fazendo mudanças
nela ao longo de quarenta anos. São inúmeras as curiosidades do edifício, como
por exemplo um sistema de pedir e fazer subir da cave garrafas de vinho para a
mesa de jantar sem os criados terem de estar presentes a escutar as conversas;
ou um catavento com prolongamento para a entrada da casa de modo a permitir
ver-se a direcção do vento sem ter de se ir lá fora olhar para o telhado.
Jefferson adorava receber amigos e as
visitas ficavam em casa dele semanas e meses. E eram sempre muitas. Foi assim que lá ficou o nosso Abade Correia da Serra que com o
ex-presidente privou imenso, conversando inclusivamente acerca dos planos para
a criação da Universidade da Virginia, o último grande empreendimento de Jefferson.
O Abade era o único visitante co quarto no primeiro andar e cinquenta anos
depois a neta de Jeferson ainda se lhe referia como “o quarto do Abade”. Não
vou repetir o que escrevi noutros lugares. Citarei apenas Jefferson, em carta a
um amigo referindo-se à decisão do Abade de regressar a Portugal, afirmando que
nenhum outro visitante estrangeiro deixava atrás tanto querido pesar como ele.
Esta nota continuaria em panegírico dos
dois, Jefferson e o Abade, mas há que encerrá-la. Nenhuma referência fiz ainda
aos imensos jardins e hortas que rodeiam a casa. Jefferson dizia Nenhuma ocupação
é mais agradável para mim do que a cultura da terra, e nenhuma cultura é
comparável à de um jardim (que em inglês inclui flores e vegetais). Claro
que tinha a enorme ajuda de escravos. Esse capítulo negro, durante tanto tempo
silenciado, está hoje, graças às revelações que ao longo das últimas décadas
foram surgindo, amplamente documentado e abertamente recontado por todo o
Monticello e repetido aos grupos de vinte pessoas que de dez em dez minutos
iniciam uma visita guiada à casa. Inclusivamente o facto de ele ter tido uma
amante negra de quem teve vários filhos. A mulher de Jefferson, antes de
morrer, ainda muito jovem, pediu-lhe que não voltasse a casar. Ele cumpriu. A
senhora esqueceu-se, porém, de lhe proibir tudo o mais que se pode fazer sem o casamento.
Regressando ao jardim: o nosso Abade era
um botânico exímio e os dois tinham mais esse elemento em comum. Entre muitos
outros, aliás. Dele Jefferson escreveu a um amigo: é o homem mais culto que
conheci em qualquer país. Enfim, toda a casa de Monticello é um mimo
revelador da grandeza do espírito de Jefferson, da sua curiosidade insaciável (Não
há nada no mundo que não me interesse conhecer). Daí aquela grande tirada
de John Kennedy quando um dia ofereceu um jantar na Casa Branca a todos os prémios
Nobel americanos: Nunca nesta sala esteve reunida tanta massa cinzenta desde
a última vez que Thomas Jefferson almoçou aqui sozinho.
Falta apenas acrescentar que Monticello
vive apenas de donativos oferecidos à Fundação Jefferson e das entradas dos visitantes.
Não tem apoios do governo.
Onésimo Teotónio de Almeida
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