Escultura de Michelangelo Buonarotti
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In memoriam
José Sotero Caio, "Filósofo da Libertação”.
Hoje acordei mais uma vez leigo, e agora
frustrado. No sonho acabara de ser eleito na Capela Sixtina, depois de renhida
luta contra cardeal europeu de nome e estirpe ilustres. Relutei quando me impuseram
a veste branca de Pontífice e o dourado báculo petrino e me veio à cabeça a
história de obscuro vagabundo da Galiléia, a catar espigas entre os lírios do
campo com seus discípulos, a dialogar com lavadeiras em Samaria, aquele cujo final
destino culminara entre ladrões, dois revoltosos, como ele, acusados de sedição
contra o Império gobal da época. Passou-me a nuvem de curta notícia da morte de
três talibãs na guerra sem lógica do Afeganistão.
Na lembrança do mendigo de Assis, restaurador
de igrejas, despi-me compassadamente de todos
os sinais externos da púrpura: berloques vermelhos do cardinalato a apontarem minha
excelência entre os mortais, e em retirado aposento vesti a túnica de linho
tecido à mão e sem costura, a Inconsútil, pus-me sandálias de pescador de
Tiberíades e fui prestar o juramento de bem servir à Igreja. Fui sentar no
último lugar da última fila de bancos da Basílica, de onde, como último dos
últimos, apascentaria meu rebanho. Ali
era a sala do banquete, e tinha que ser o último dos convidados.
No primeiro sermão católico, em universal
e infinito amplexo, falei aos mulçumanos e judeus, fraternos seguidores do Deus
único e verdadeiro, fiel às suas alianças, reuni na mais exo-térica homilia
Abraão, Maomé e Jesus, filho de Maria, para pacificarmos juntos no -
Ser/Consciência/Beatitude, a trindade das pugnazes hostes de Rama e Krishna, iluminados
da luz de Brahma, Vishnu e Shiva. Pedi mais, e abraçando os seguidores de Kali
e das deusas madres, os devotos extáticos de Buda e dos sereníssimos fiéis mergulhados
no Tao, pedi na primeira e creio na minha última homilia que encontrássemos a chave do redil,
de modo a retomar o caminho da reunião das ovelhas, para a comunhão entre o mundo
interior do silêncio e a paisagem de realizações culturais dessa humanidade,
até agora ferida e presa das querelas, dispersa por colossais distâncias
dogmáticas geradas pelas delirantes teologias teístas, deístas e ateias, a
brandirem dogmas como cimitarras, a deceparem mentes e corações desse enorme e
único rebanho, o Homo sapiens sapiens
e seus ancestrais ainda sobreviventes, envoltos todos no mistério da construção
e destruição, cada um, gota a gota, homem a homem, ser vivo a ser vivo, cada qual
rumo ao desconhecido.
Nos prolegômenos de meu discurso,
ao rever na mente a incontrolada passagem dos meteoritos e bólidos vindos do
vizinho campo de asteróides, fiz a insólita e emocionada homenagem aos nossos Irmãos-coragem,
os fraternos cultivadores do Abismo - os agnósticos, ateus, e os perplexos - todos os cientistas da galáxia interior
e exterior, dos vórtices do invisível e do inconsciente, da microscópica e da
macroscópica aventuras do mundo da
inquieta pesquisa sobre o tempo
inicial da criação, sobre a solidão do eu, aqueles que mergulham na agitada sopa
de partículas explodidas de um hipotético marco zero, império do Nada e da
Criação, eles humildemente a ensaiarem a complexa montagem desse balé magnífico
de pluralidade e multiplicidade das aparências, a Epifania dos fenômenos, que
se manifestam aos nossos manietados sentidos e mentes.
Bati no peito a minha culpa, minha
máxima culpa, por nossa participação no milenar culto da dor, da infelicidade,
que serviram até agora de pretexto para fazer a humanidade sublimar e suportar
a exploração, a crueldade do sofrimento como instrumento da salvação e redenção.
Proclamei a necessidade de amar acima de todas as coisas o despojamento gerado
pelo culto da felicidade na Terra, o choque da alegria como a fonte redentora
do Reino dos Céus, o reino de crianças e dos lírios que não tecem.
Claudio Sotero Caio – Brasília, 11 de março de 2013
"Na lembrança do mendigo de Assis, restaurador de igrejas..."
ResponderEliminarAo invocar, logo no início do sonho, o exemplo do Probrezinho de Assis, o autor do texto foi, de certo modo, profético, às vésperas da eleição do Pontífice Francisco I, a quem caberá a dura tarefa de restaurar a Igreja católica.