segunda-feira, 11 de março de 2013

A Noite do Cardeal.


 



Escultura de Michelangelo Buonarotti


 
 
 
In memoriam José Sotero Caio, "Filósofo da Libertação”.

 

Hoje acordei mais uma vez leigo, e agora frustrado. No sonho acabara de ser eleito na Capela Sixtina, depois de renhida luta contra cardeal europeu de nome e estirpe ilustres. Relutei quando me impuseram a veste branca de Pontífice e o dourado báculo petrino e me veio à cabeça a história de obscuro vagabundo da Galiléia, a catar espigas entre os lírios do campo com seus discípulos, a dialogar com lavadeiras em Samaria, aquele cujo final destino culminara entre ladrões, dois revoltosos, como ele, acusados de sedição contra o Império gobal da época. Passou-me a nuvem de curta notícia da morte de três talibãs na guerra sem lógica do Afeganistão.

Na lembrança do mendigo de Assis, restaurador de igrejas, despi-me  compassadamente de todos os sinais externos da púrpura: berloques vermelhos do cardinalato a apontarem minha excelência entre os mortais, e em retirado aposento vesti a túnica de linho tecido à mão e sem costura, a Inconsútil, pus-me sandálias de pescador de Tiberíades e fui prestar o juramento de bem servir à Igreja. Fui sentar no último lugar da última fila de bancos da Basílica, de onde, como último dos últimos,   apascentaria meu rebanho. Ali era a sala do banquete, e tinha que ser o último dos convidados.

No primeiro sermão católico, em universal e infinito amplexo, falei aos mulçumanos e judeus, fraternos seguidores do Deus único e verdadeiro, fiel às suas alianças, reuni na mais exo-térica homilia Abraão, Maomé e Jesus, filho de Maria, para pacificarmos juntos no - Ser/Consciência/Beatitude, a trindade das pugnazes hostes de Rama e Krishna, iluminados da luz de Brahma, Vishnu e Shiva. Pedi mais, e abraçando os seguidores de Kali e das deusas madres, os devotos extáticos de Buda e dos sereníssimos fiéis mergulhados no Tao, pedi na primeira e creio na minha última  homilia que encontrássemos a chave do redil, de modo a retomar o caminho da reunião das ovelhas, para a comunhão entre o mundo interior do silêncio e a paisagem de realizações culturais dessa humanidade, até agora ferida e presa das querelas, dispersa por colossais distâncias dogmáticas geradas pelas delirantes teologias teístas, deístas e ateias, a brandirem dogmas como cimitarras, a deceparem mentes e corações desse enorme e único rebanho, o Homo sapiens sapiens e seus ancestrais ainda sobreviventes, envoltos todos no mistério da construção e destruição, cada um, gota a gota, homem a homem, ser vivo a ser vivo, cada qual rumo ao desconhecido.

Nos prolegômenos de meu discurso, ao rever na mente a incontrolada passagem dos meteoritos e bólidos vindos do vizinho campo de asteróides, fiz a insólita e emocionada homenagem aos nossos Irmãos-coragem, os fraternos cultivadores do Abismo - os agnósticos, ateus, e os  perplexos - todos os cientistas da galáxia interior e exterior, dos vórtices do invisível e do inconsciente, da microscópica e da macroscópica aventuras do mundo da  inquieta pesquisa sobre o  tempo inicial da criação, sobre a solidão do eu, aqueles que mergulham na agitada sopa de partículas explodidas de um hipotético marco zero, império do Nada e da Criação, eles humildemente a ensaiarem a complexa montagem desse balé magnífico de pluralidade e multiplicidade das aparências, a Epifania dos fenômenos, que se manifestam aos nossos manietados sentidos e mentes.

Bati no peito a minha culpa, minha máxima culpa, por nossa participação no milenar culto da dor, da infelicidade, que serviram até agora de pretexto para fazer a humanidade sublimar e suportar a exploração, a crueldade do sofrimento como instrumento da salvação e redenção. Proclamei a necessidade de amar acima de todas as coisas o despojamento gerado pelo culto da felicidade na Terra, o choque da alegria como a fonte redentora do Reino dos Céus, o reino de crianças e dos lírios que não tecem.
 


Claudio Sotero Caio – Brasília, 11 de março de 2013
 

1 comentário:

  1. "Na lembrança do mendigo de Assis, restaurador de igrejas..."

    Ao invocar, logo no início do sonho, o exemplo do Probrezinho de Assis, o autor do texto foi, de certo modo, profético, às vésperas da eleição do Pontífice Francisco I, a quem caberá a dura tarefa de restaurar a Igreja católica.

    ResponderEliminar