quinta-feira, 14 de março de 2013

Ruin'Arte.

.

.
.

Quinta do Parreira - Oliveira de Azeméis




 
Movendo-se entre escombros e ruínas, Ruin'Arte é um dos mais marcantes blogues portugueses da actualidade. No ano passado, ganhou o prémio de Blogue do Ano, na categoria Arquitectura. Fomos falar com o seu autor, o fotógrafo Gastão de Brito e Silva.

 
 

P. - Quando nasceu o projecto Ruin'Arte?

R. - O projecto Ruin'Arte, estava em forma de embrião desde Maio de 1987, data em que viajava de comboio vindo da tropa e vislumbrei o Convento de Seiça por breves instantes num apeadeiro da Linha do Oeste. Renasceu depois em Novembro de 2008, com a primeira reportagem nesse mesmo monumento. O blogue só veio dois anos depois e após ter coleccionado umas boas dezenas de ruínas.
 
 
Forte da Graça - Elvas
 

P. - Em que consiste? Trata-se de um mero levantamento de ruínas ou tem um propósito de denúncia da degradação do património?


R. - Começou por ser um levantamento fotográfico, mas a necessidade de escrever e a curiosidade levaram este projecto mais além... acabando por se tornar num grito de socorro pelo imenso património decadente de Portugal. Não só é um autêntico baú de memórias colectivo, como um testemunho do nosso passado e presente, tentando também prevenir o futuro. Poderia dizer que é quase "fotografia de intervenção"...



Castelo da D. Chica - Braga




P. -  Já fizeste várias exposições, o Ruin'Arte ganhou o prémio de blogue do ano na categoria de arquitectura... para quando um livro?


R. - Sim, já fiz vinte exposições um pouco por todo o país, e o livro seria uma necessidade que se impõe desde o início. Seria o culminar do projecto e a sua verdadeira meta. No entanto, já fui algumas vezes contactado por editoras, mas, além de me exigirem patrocinadores, evitam pagar direitos de autor... Por isso, até agora essa parte continua por preencher. Poderiam ser feitos vários tomos: ruínas industriais, urbanas, clericais, palacianas, rurais, militares, hospitalares, humanas... Há de tudo, entre quase mil estruturas já fotografadas e daria um sem-fim de temas de interessantes que se poderiam abordar de várias formas... A desculpa da crise serve para tudo...
 
 
Fábrica das Devezas - Gaia
 
 
P. - As tuas fotografias revelam muito a marca do teu trabalho na publicidade, não achas?


R. - O meu trabalho na publicidade distinguia-se pelo excesso de cor e contraste de cada trabalho, uma forma de apresentação pela exploração do lado conceptual e do "habitat natural" de cada produto. As ruínas também têm o seu lado conceptual e vivem de um trabalho de contrastes, embora a linha gráfica adoptada pelo projecto seja bem diferente, há sempre um cunho pessoal em ambos os trabalhos.

 
P. - Como trabalhas? Documentas-te primeiro, pesquisas os locais? Como encontras aqueles sítios incríveis, que ninguém ou poucos conhecem?

R. - O ideal é documentar-me primeiro e visitar depois, é a melhor forma de não deixar "pontas soltas", além de viver a ruína de uma forma mais profunda, mas como a maior parte das ruínas que visito são "acidentais", locais onde tropeço ou que se metem no meu caminho, a documentação na maior parte dos casos vem depois.

Tenho várias formas de pesquisa, quando me desloco a algum lugar, costumo ver no Google Earth: o que não tem telhado ou cujo jardim seja um "matagal", normalmente são ruínas... Pela sua dimensão, posso também avaliar o interesse de uma estrutura. Conto também com vários "amigos" cibernéticos que me vão dando conselhos, além de alguns fóruns sobre locais abandonados que proliferam na Internet.



Sanatório dos Ferroviários - Covilhã


P. - Há uma tradição de culto pelas ruínas, de Piranesi ao filme do Manuel Mozos. Em que medida te inseres nessa tradição? No fundo, gostas que as ruínas existam? Não há aqui um apreço implícito, mas perverso, pela degradação, em lugar de espaços arranjados e conservados?


R. - As ruínas do Piranesi eram essencialmente ruínas clássicas que adornavam os jardins românticos, e este trabalho tem pouco de romântico... Já o Manuel Mozos se debruça sobre a decadência de uma forma realista levando o público ao lado nostálgico. O Ruin'Arte pretende re-contar a história, reabilitar memórias, chamar a atenção para um desperdício económico e cultural de todo um país. As ruínas que me interessam são essencialmente a parte descurada do património que põe em perigo não só a nossa identidade como também a economia, a cultura e essencialmente a saúde pública, pois todas as ruínas representam vários perigos. Desde a estagnação económica, ao abrigo de marginais e perigosas derrocadas. Depois disso tudo, ainda vem a degradação cultural... Quem me dera que não houvesse ruínas! Apenas as do Piranesi têm sentido...

Confesso no entanto que as ruínas me dão uma adrenalina bestial... A invasão da propriedade, a introdução num local perigoso e, acima de tudo, reviver os locais que ainda guardam as suas memórias. É um misto de medo, frustração e realização, tal como ultrapassar as barreiras visíveis e invisíveis e viver o perigo constante em cada local. Tornou-se quase uma droga...
 
Moinhos de Santa Iria - Póvoa de Santa Iria
 

P. - Do teu trabalho de campo, o que falta ainda por descobrir? Que áreas do país ainda te escapam? E, já agora, quais os locais com melhores P. - ou piores! - ruínas?

R. - Num país que, segundo estatísticas do INE, tem perto de 350.000 ruínas, certamente falta-me muito terreno para desbravar. No entanto, já fotografei em todas as regiões, com excepção dos Açores. A falta de apoios limita obviamente o meu raio de acção, que é directamente proporcional ao preço dos combustíveis e ao tamanho da minha carteira, que todos os dias fica mais pequena...

Os locais melhores estão no Norte de Portugal, onde as quintas, chalets e solares, mosteiros e castelos, fábricas e sanatórios, aldeias e centros históricos sempre foram mais ricos em todos os aspectos... em quantidade e qualidade. Gostaria de organizar um périplo pelas Beiras, que estão pejadas de solares magníficos, pelo Alentejo onde há um sem número de mosteiros e conventos, pelas aldeias abandonadas de Trás-os-Montes, e trazer muita lenha para me queimar... Também a região de Lisboa e Vale do Tejo tem bons tesouros à minha espera.. Infelizmente, como é um trabalho voluntário cada dia que passa fico mais restringido ao meu código postal. Tenho uma agenda onde guardo coordenadas e, assim que possa, recomeçarei a palmilhar o país inteiro.

 
Convento de N. Sra. do Desterro - Monchique

P. - Se fosse possível fazer um «worst off», que locais colocarias?


R. - É uma pergunta difícil de responder, pois a qualidade de cada ruína prende-se além da sua envergadura, ao seu valor histórico, tal como ao seu aproveitamento. Posso dizer que o Paço das Alcáçovas, pela sua riquíssima história é um paradigma pelo seu estado de conservação, mas muito mais grave é o Forte de Graça em Elvas, que foi recentemente elevado a Património da Humanidade. Também a Torre de S. Sebastião da Caparica, às portas de Lisboa, constitui um autêntico crime de lesa-património cultural, pois é a primeira fortaleza de artilharia de costa do mundo português. Não posso omitir ainda a Torre das Águias em Brotas ou a do Carvalhal em Montemor-o-Novo, autênticos tesouros de arquitectura manuelina. Também há fábricas que pela sua história e envergadura são atentados à inteligência de um galináceo, tais como a Aliança, Moinhos de Santa Iria, A. C. da Cunha Morais, Captação da Foz de Sousa, Lanifícios da Arrentela, os moinhos da Baía do Seixal... De uma forma geral, os conventos e mosteiros eram riquíssimos no ponto de vista arquitectónico, além de constituírem vastas propriedades rurais que se encontram abandonadas, o que é outra forma de ruína: destaco por isso o Convento de Verride, o de Nossa Senhora de Seiça, o de Monfurado, onde vivi autênticas aventuras espirituais e fotográficas...




Central do Freixo - Porto
 


P. - Não falta coragem, até física, no teu trabalho de campo. Tens alguma experiência mais invulgar que queiras partilhar com os nossos leitores?

R. - Como disse, todas as ruínas são terrenos perigosos. É sem dúvida necessária alguma coragem para as abordar... As derrocadas e desabamentos são os maiores perigos, mas posso também ter "encontros imediatos"... e como normalmente ando só, todo o cuidado é pouco... Todos os riscos que corro penso serem calculados e até à data nunca tive nenhum dissabor. Apenas uma vez o meu cãopanheiro, o Edgar, começou a cair nas tábuas podres de um soalho; aí tive a noção de que já estava a arriscar demais. Foi na Quinta das Devezas, em Gaia, uma das mais perigosas ruínas que já fotografei, uma das mais belas também, mas tive que desistir porque a segurança deve estar acima de tudo, e o material fotográfico é caro que se farta... Numa outra ocasião, visitei uma ruína com um pequeno grupo, e um dos meus companheiros ia caindo do terceiro para o segundo andar por ter pisado umas tábuas podres... Como disse, é sempre uma questão de cuidado e risco calculado...

Por vezes encontro também vestígios de "locatários" e já cheguei a entrar num antro de consumidores de heroína. Nesses casos, o melhor é ir embora, ou se possível fazer "amizade", se não mostrarmos medo e os tratarmos com normalidade dificilmente se tornarão ameaçadores. Noutros casos fui aconselhado a não entrar pois seria certamente assaltado. Obviamente, não entrei. Aliás, saí...




 

Entrevista de António Araújo,

também publicada na edição de hoje do Papel

1 comentário: