quarta-feira, 25 de março de 2015

Seis semanas de reportagem numa Angola proibida - 3.

 
 
         Seis semanas de reportagem numa Angola proibida.
 
Regresso a um palimpsesto da memória.
 
 
 
3.
 
 
       Regressámos à Jamba, de novo a pé até depois do Caminho-de-Ferro de Benguela, novamente em unimogs pelas picadas, e bem depressa, de noite, impossível dormir com as sacadas do caminho. Na Jamba, novas visitas. Conheci um médico são-tomense, prisioneiro, que todos fingiam não ser prisioneiro. Consegui, quando os meus cicerones se distraíram, falar um pouco com ele, ambos entre dentes, no meio dum espaço enorme, a céu aberto, com dezenas de pessoas andando de um lado para o outro, e nós os dois absolutamente concentrados nas palavras sussurradas, na sua condição de médico-prisioneiro, na morada e telefone da mulher em Portugal, que eu contactaria depois. Assim fiz, logo que cheguei a Portugal: ela fingiu ter interesse no marido.
         Na reportagem que enviei sobre o ataque ao Alto Chicapa seguia a seguinte mensagem para Wilton Fonseca: “Wilton: tudo bem. Segue notícia em primeira mão. Por favor manda dizer se está tudo bem em minha casa [Tinha havido cheias na região de Lisboa]. Pedi notícias duas vezes e não obtive resposta. Eduardo.” As emissoras internacionais continuavam sem mencionar os meus despachos. Desta vez, exigi que Savimbi me desse uma explicação. Ela veio depois: todas as minhas notícias tinham sido entregues no destinatário, a Agência NP. Só no meu regresso eu entenderia o mistério. 
         Na Jamba, na última noite, já de madrugada, entrevistei Savimbi. Desta vez, o que sobressaiu não foi o líder carismático, mas o vendedor de banha da cobra. As minhas perguntas sobre a conivência entre a UNITA e as Forças Armadas portuguesas e até a PIDE e sobre o apoio da África do Sul do apartheid criaram embaraço que ele escondia com desdém e pedindo a colaboração nas respostas aos seus adjuntos, que assistiam à entrevista na cubata redonda. Um deles era o general Puna, que mais tarde desertou da UNITA. Outro era Jaka Jamba, que tremia, e, não é metáfora gasta, tremia como varas verdes na presença do líder e face às perguntas embaraçosas. Havia medo, visível e invisível, na presença de Savimbi.
 
Com Savimbi na pista aérea da Jamba antes do regresso a Portugal.
 
 
         No dia seguinte, voltámos à pista de terra batida da Jamba. Savimbi esteve na despedida, ou talvez seja melhor dizer que esteve na chegada da equipa de reportagem de Barata-Feio, com um peso mediático maior do que o meu, repórter de uma das agências noticiosas portuguesas e, para mais, autor de notícias de que não chegavam ecos à savana. Naquele momento, tudo me parecia ter sido em vão.
         Partimos num avião maior do que o pequeno jacto da vinda. Este era mais barulhento, com as suas hélices movidas por motores Rolls Royce. Regressámos a Kinshasa, para nós um paraíso. Um hotel de cinco estrelas, uma enorme piscina a que me atirei para salvar uma zairense que saltara para a água sem saber nadar. A mulher quase me afogou, enquanto todos os presentes assistiam sem reagir. Não agradeceu. Riu-se. Passada meia hora, apareceu o japonês que ela acompanhava, para me agradecer.
         Cheguei ao princípio duma manhã de Dezembro a Lisboa. Telefonei para a minha mulher. E telefonei para Wilton Fonseca, pedindo explicações sobre a não publicação das minhas reportagens, resultado de seis semanas num território em guerra, seis semanas interessantes, mas difíceis, com provações e o horror dum pequeno grande acto de guerra. Seis semanas para escrever notícias e seis semanas sem que nenhuma notícia tivesse sido publicada. Fonseca não tinha nenhuma explicação, nem esfarrapada, quanto mais convincente. Só dizia, “calma, calma”. No dia seguinte, novo telefonema, já de casa. E a mesma “calma, calma”, calma que não tive, e ameacei partir a loiça toda. Só depois, quando regressei à agência, começaram a sair em linha os telexes com os meus trabalhos, escritos à mão em Angola, transmitidos pela UNITA para Lisboa e entregues à NP. Eu tinha sido vítima de uma outra guerra, uma guerra interna à qual eu era alheio, e guerra que, desconfiava eu, resultava também do peso de chumbo que o conflito Leste-Oeste impunha então sobre todos nós. E fui vítima do ostracismo dos camaradas de trabalho, que me censuraram por ter ido, me censuraram por não ter dito nada — apenas cumprira o acordado com Fonseca —, me censuraram por ter estado no “lado errado” de Angola. Ainda recordo o local exacto no degradado palacete da Lapa em que um camarada me censurou por ter ido ao “lado errado”. A guerra no interior da agência de notícias e a guerra entre facções políticas pró e contra a UNITA ou o MPLA, o conflito planetário entre o Ocidente e o Leste motivaram uma censura do meu trabalho que a UNITA não fizera, apesar de os meus textos enviados de Angola incluírem elementos desagradáveis para o movimento.
         Alguns media portugueses publicaram as minhas reportagens, sem grande destaque, apesar de ser o primeiro jornalista português a reportar longamente daquela zona de Angola. Publicá-las, apesar da máxima objectividade que lhes imprimi, apesar de imensa informação relevante sobre a política e a vida numa parte da antiga maior colónia portuguesa, era, naquela altura, “tomar partido”. Não se podia informar sobre o que não se gosta. Ainda hoje é assim.
         Mais tarde, quis visitar a Angola do MPLA. Queria provar a minha independência. Era uma ideia insensata, louca. Reuni-me num café da Avenida da República, já destruído, com uma funcionária da Embaixada da Angola em Lisboa, furiosa com o trabalho que eu tinha feito, mas que, sem eu o perceber de imediato, talvez me tenha salvo a vida: recomendou-me vivamente que não fosse. É tão fácil morrer. Outros me recomendaram o mesmo. Não fui.
         São estas memórias de uma reportagem engolida pela história. Os vencidos da guerra esvanecem-se, desaparecem, os registos apodrecem sem uso, o passado é uma poeira, reescreve-se  com palimpsestos rápidos e incómodos sobre que já lá vai e sobre glórias futuras que estão sempre por vir. Não interessa recordar. Esqueçamos.
 
 
Eduardo Cintra Torres
Caxias, Março de 2015
 
 
 
 
Nota. As fotografias aqui apresentadas são de minha autoria, excepto a última, cuja autor já não recordo. Foram digitalizadas a partir de positivos realizados em 1983/4 na Agência Notícias de Portugal. Os negativos fazem hoje parte do acervo da agência LUSA. Apenas procedi a simples acertos de brilho, nitidez, exposição e saturação em algumas da imagens. Usei nalgumas uma Voitgländer e noutras uma máquina russa cuja marca e modelo não anotei.
 
 
 

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