quinta-feira, 9 de maio de 2019

Discutir o Acto Colonial (V) - Os Académicos.

 
 
 
 
 
O primeiro académico a publicar um estudo específico foi o Professor auxiliar do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeira da Universidade Técnica de Lisboa Armando Gonçalves Pereira, de origem goesa: a)- entendia a designação como mera tradução do inglês e imprópria, visto que, destinando-se o Acto Colonial a ser apenas um capítulo da futura Constituição, bastava falar de Bases; b)- a publicação fora inoportuna porque, afinal, nada resolvia nem inovava; c)- o seu aspecto nacionalista devia ser considerado; d)- a natureza constitucional do Acto tinha vantagens e inconvenientes e era mesmo «o aspecto mais delicado do Decreto»[1].
 O Professor da Escola Superior Colonial José Gonçalo de Santa Rita distinguiu os objectivos políticos de ordem interna e os de ordem externa. Quanto aos primeiros estavam em causa: i)- a unificação administrativa de cada colónia; ii)- a supressão do regime dos Altos-Comissários; iii)- a fiscalização pelo Governo da administração financeira e económica das colónias; e iv)- o desenvolvimento da solidariedade económica entre a metrópole e as colónias. Quanto às relações exteriores, o Acto Colonial era informado pelo princípio da nacionalização – quer não permitindo o exercício particular de prerrogativas de administração pública quer limitando o regime das concessões. Depois, a adopção da terminologia colonial, comprovava que se abandonara o «antigo e muitas vezes condenado» sistema da assimilação. Quanto aos indígenas, pela primeira vez um texto constitucional referia-se-lhes especialmente, o que as constituições anteriores tinham evitado «cuidadosamente». Sobre a aptidão colonizadora, natalidade, emigração e colonização, Santa Rita concordava com a recente proposição do Ministro das Colónias, Armindo Monteiro, ao defender que «para colonizar não basta ter emigrantes e não basta ter capitais: é preciso ter colonos»[2].
Quer como jurista quer como “homem de Estado”, Marcelo Caetano foi quem mais aprofundou a matéria. Essencialmente, considerava que o Acto Colonial instituíra um regime de «autonomia temperada», que diferia profundamente no seu espírito e sistema do regime de assimilação, mesmo na forma descentralizada, desenvolvendo 7 tópicos: i)- afirmação da unidade e solidariedade; ii)- especialidade da legislação colonial; iii)- extensão de poderes dos Governadores; iv)- assídua intervenção tutelar do Ministro das Colónias; v)- autonomia financeira; vi)- regime jurídico especial para os indígenas; vii)- graduação da descentralização, consoante se tratasse de colónias de governo geral ou de colónias de governo simples[3].
Curiosamente, a primeira monografia sobre a Constituição de 1933 foi escrita em francês e apresentada como tese na Universidade de Lovaina, em 1935. Ao abordar o Acto Colonial, o seu Autor mantém o tom geral de valoração positiva (e, até, encomiástica) dos princípios e espírito do texto constitucional. Defendia a solução mista adoptada: o sistema da autonomia, em matéria económica e financeira; o sistema de assimilação moderada, no relativo ao regime jurídico de pessoas e bens; e o sistema da sujeição, quanto à gestão colonial, a qual ficava completamente submetida ao Ministro das Colónias[4].
Em 1938, o docente da Faculdade de Direito de Lisboa Fernando Emydio da Silva, procurou responder a duas questões, sinteticamente enunciadas: 1) Quais eram os princípios do Acto Colonial; 2) Em que medida eram acatados?
         A primeira questão mereceu maior desenvolvimento. Em sua opinião o Acto Colonial reformulava três velhos princípios da tradição português: a)- a ideia de unidade; b)- a ideia de colaboração indígena; c)- a ideia de valorização. Acrescia um quarto princípio, este proveniente da «estrutura do regime actual»: a independência financeira das colónias (“cada colónia, o seu orçamento”; “cada orçamento, o seu equilíbrio”)[5].
Ministro das Colónias de 1931 a 1935, Armindo Monteiro regressou ao ensino na Faculdade de Direito de Lisboa após a sua exoneração como Embaixador em Londres, a 20 de Setembro de 1943, na sequência de divergências com Salazar. Uma das suas actividades docentes imediatas foi a regência da disciplina de Administração Colonial. Na sua opinião, resultava do Acto Colonial serem três os princípios que dominavam a construção jurídica e política do Império Colonial Português[6]:
         i)- definição do objectivo histórico da nação portuguesa (artigo 2.º);
         ii)- a concepção do Império Colonial como parte integrante da nação, mas formando por si um conjunto;
         iii)- o princípio da solidariedade do Império entre si e com a Metrópole.
A discutida e discutível fórmula do artigo 2.º – «É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas […]» – fora usada «talvez porque o país estava ainda mal preparado para ver na actividade colonial a finalidade superior da nação». Representava «por assim dizer, uma forma de transição» entre os portugueses de mentalidade ibérica e os portugueses de mentalidade ultramarina. Aceitava, todavia, que o artigo 2.º não teria «a concisão e o rigor que poderia ter» quer quanto ao termo colonizar quer quanto à expressão domínios ultramarinos.
Justificava a polémica designação Império Colonial Português em quatro parágrafos: a)- era necessário indicar a existência e os limites do Império; b)- a expressão entrara já na linguagem corrente; porém, em 1926, quando o Ministro João Belo a lançara, «foi recebida por muitos como uma fanfarronada»; c)- nessa época, muita era a gente convicta «de que o País não tinha capacidade para possuir colónias e que estas estavam destinadas a perder-se»; d)- a fórmula impusera-se definitiva e completamente: «foi adoptada primeiro na linguagem oficial, depois pelo homem da rua e pelas chancelarias. Por fim hoje todos os Governos do mundo falam do Império Colonial Português como de uma realidade que não se discute»[7].
Finalmente o princípio da solidariedade constava dos artigos 5.º e 6.º do Acto Colonial e desenvolvia-se na ordem política e na ordem económica. Este princípio era a “alma do Império” e correspondia ao eixo do pensamento colonial de Armindo Monteiro[8].
 Discípulo de Marcelo Caetano, J. M. da Silva Cunha pronunciou-se especificamente sobre a natureza do Acto Colonial a propósito da sua “revogação” (efectivamente, simulada[9]). Defendeu que o Acto Colonial equilibrara «harmonicamente» as duas tendências da administração colonial portuguesa posterior a 1820, o sistema da assimilação uniformizadora e o regime republicano da descentralização: «sem prejudicar a unidade nacional do Império, [o Acto Colonial] respeitara o condicionalismo local e, até, certas aspirações dos colonos que tinham uma má recordação das colónias governadas do Terreiro do Paço»[10].
         Também aquando da sua revogação, Adriano Moreira, então leccionando Direito no mesmo Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, elaborou um desenvolvido estudo jurídico-político sobre o Acto Colonial. Publicou-o primeiro em 1951[11] e, depois, sob a temática mais geral de “O Institucionalismo Português”, reproduziu-o em 1961, com algumas alterações na parte final.
         Destacam-se as seguintes proposições, todas positivas sobre o Acto Colonial, embora a primeira, pelo menos, contrária às posições maioritárias:        a)- era «errada toda e qualquer atitude crítica que ligasse o problema da oportunidade do Acto Colonial ao problema da normalidade constitucional», pois só por si ele não tinha, inicialmente, natureza de lei constitucional; b)- a justificação última do Acto Colonial estava na afirmação de nacionalismo; c)- a expressão Império Colonial Português não significara «de modo algum, um desvio em face do princípio da unidade»; d)- a autonomia formal do Acto Colonial «poderia objectivamente explicar-se pela circunstância de versar matéria acima das conveniências políticas por tocar muito de perto a própria essência da Nação […]»[12].
Em síntese, Adriano Moreira defendia a orientação geral do Acto Colonial, em especial o princípio da «autonomia temperada» e, embora não se opondo abertamente à sua revogação, revelou uma série de apreensões e reservas[13]. Apesar das várias reformas que, enquanto Ministro do Ultramar, promoveu entre 1961 e 1963, as normas constitucionais mantiveram-se intocadas até à revisão de 1971. Porém, desta, será Adriano Moreira muito crítico, considerando que revogava “o conceito estratégico nacional” pois o Governo desistia «discretamente da missão nacional»[14].
 
 
António Duarte Silva


[1] Armando Gonçalves Pereira, As novas tendências da administração colonial, Lisboa, Ed. J. Rodrigues, 1931, pp. 220 e segs..
[2] José Gonçalo de Santa Rita, “O sentido do Acto Colonial”, in Revista da Faculdade de Letras – Tomo II, n.º 2 (Separata), Lisboa, 1935.
[3] Marcelo Caetano, Direito Público Colonial Português (lições coligidas por Mário Neves), Lisboa, 1934, pp. 105 e segs.
[4] Francisco I. Pereira dos Santos, Un Etat Corporatif – La Constitution Sociale et Politique Portugaise, 2.ª ed., Paris/Porto, Librairie du Recueil Sirey/ Editora Educação Nacional, 1940, p. 415.
[5] Fernando Emydio da Silva, “Comunicação feita à Academia de Ciências Coloniais de Paris, em 16 de Fevereiro de 1938”, in O Mundo Português, Volume V, n.º 51, Março de 1938, pp. 99 e segs.
[6] Armindo Monteiro, Administração Colonial (Apontamentos das lições feitas pelo professor Doutor Armindo Monteiro ao curso do 3.º jurídico, coligidos por Augusto Ramos), Lisboa, 1944-1945, pp. 268 e segs.
[7] lbidem, p. 273.
[8] Assim, Manuel de Lucena, “Monteiro, Armindo Rodrigues de Sttau”, in António Barreto/Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal, Vol. 8, Suplemento, Porto, Figueirinhas, 1999, pp. 521/523.
[9] Como explico in O Império e a Constituição Colonial Portuguesa (c. 1914-1974), Lisboa, Imprensa de História Contemporânea, 2018. (cfr. Parte V).
[10] Silva Cunha, “O Acto Colonial e as propostas de lei para a sua alteração”, in Revista do Ultramar, Ano III, n.º 25, Lisboa, Fevereiro de 1951, p. 6.
[11] Adriano Moreira, “A Revogação do Acto Colonial”, in Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos, Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa, Ano I, n.º 3, 1951, pp. 3 e segs.  
[12] Idem, Política Ultramarina, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1961, pp. 308 e segs.
[13] Manuel de Lucena, Os lugar-tenentes de Salazar – Biografias, Lisboa, Aletheia, 2015, pp. 286/289.
[14] Adriano Moreira, Revisão Constitucional, Lisboa, s. n., 1971, pp. 11/12.

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