Exame comparativo do romance de Lewis
Carroll (1865)
e do filme de animação de Walt Disney (1951)
Original de Alice Adventures Underground, com ilustrações de Lewis Carroll |
Alice Pleasance Liddell (1852-1934) (1) fotografia de Lewis Carroll; (2) fotografia de Julia Cameron; (3) aos 80 anos. |
O fascínio de Walt Disney
(1901-1966) pelos livros de Alice de Lewis Carroll (1832-1898) remonta ao seu
período de juvenil, manifestando-se depois nos começos da sua carreira de
cineasta, já que em 1923, tendo iniciado a sua actividade como produtor de
cinema, concebeu o projecto de transpor as aventuras da jovem vitoriana no
mundo onírico da fantasia, e dedicaria uma curta-metragem dos seus
Laugh-O-Grams à famosa heroína infantil, intitulado Alice’s Wonderland, com a participação duma actriz chamada Virginia
Davis num curto filme de animação. O enorme sucesso de Walt com o Mickey Mouse
(1928) e das séries animadas das Silly
Symphonies permitiu-lhe o lançamento dos primeiros grandes sucessos em
filmes de desenhos animados, de modo que essa curta-metragem, misturando imagem
real e animação, ficaria enterrada e esquecida no celulóide, até que, em 1932,
os estúdios Disney voltaram ao projecto de realizarem uma Alice no País das Maravilhas, combinando imagem real com animação,
dando a Mary Pickford (1893-1979) o papel de jovem visitante do mundo dos
sonhos, tendo comprado, para esse fim, os direitos autorais dos desenhos de
Tenniel, ainda em vigor nessa época. Entretanto, a partir de 1937, Disney
iniciara uma série de grandes filmes de longa-metragem que teria assinalado e
crescente sucesso com Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio, Fantasia (1940) e Dumbo
(1941), Cinderela (1950), etc.
1.Disney realiza uma longa metragem de Alice
Já em 1938, Disney voltara
ao seu velho sonho de fazer uma Alice, registando o título Alice in Wonderland e conseguindo que um grupo de colaboradores
tivesse o stroryboard pronto, convidado o artista Al Perkins e solicitando
o cineasta David S. Hall para o realizar (1939). Todavia, tropeçando na
relutância em servir-se dos desenhos oitocentistas de Tenniel – o mudo estético
conhecera entretanto as experiências do fauvismo, do cubismo e do surrealismo –,
Disney adiou uma vez mais a aventura de tornar a obra de Caroll num filme de
desenho animado. Passado o período da guerra mundial, só nos começos da década
de 50 – em plena guerra da Coreia (1950-53) e do macartismo (1950-54) –, a ideia
seria por fim posta em prática. Recorde-se, como mera curiosidade, que, algum
tempo antes, Disney pedira ao escritor inglês Aldous Huxley, expatriado na
América do Norte, para lhe redigir um guião, ideia que se mostraria, porém,
demasiado decepcionante. Entretanto, Disney convidaria uma artista que havia de
se revelar indispensável para dar ao filme um estilo moderno, acutilante e
inovador, ideal para uma adaptação rejuvenescida do livro do século anterior: Mary
Blair.[1] Estes
novos cenários e colorido foram então decisivos para que a Alice disneyana
começasse a tomar forma e a sua realização fosse uma verdadeira reinvenção da
velha história duma menina que visita o alucinante mundo dos sonhos, agora com
música, ritmo trepidante, enorme fantasia e humor delirante, bem para além dos
amáveis gracejos do reverendo britânico Dodgson. Este grande ciclo de desenhos
animados de longa-metragem combinariam de modo a criarem um estilo tipicamente
americano, o mundo Disney, composto de cuidadosos cenários e ambientes (florestas,
figuras caricaturas, movimentos habilidosamente estudados, efeitos especiais,
canções, cidades, jardins, etc.), splapstick,
sentimentalismo e cores sumptuosas, por vezes berrantes, num misto que
fascinaria multidões de cinéfilos por todo o mundo.
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Voltando ao advento de
Alice, diga-se que, depois de utilizar um orçamento considerável e uma produção
assaz demorada, confiada a três realizadores (C. Geromini, W. Jackson e H.
Luske) e com um guião escrito por mais de dez colaboradores, Disney logrou passar
finalmente para uma longa-metragem colorida o seu Alice no País das Maravilhas, estreado em Nova Iorque e em Londres
no mesmo dia, a 26-VII-1951. Os públicos dos dois lados do oceano não o
acolheram com um sucesso que legitimasse as obstinadas esperanças que os estúdios
Disney tinham despertado com tal projecto. Esta era a 13ª obra de fôlego do
famoso mestre da animação americana, o que não evitou que a recepção do filme
fosse pouco calorosa na Inglaterra e relativamente falhada no seu próprio país,
insucesso relativo de que só o filme seguinte, Peter Pan (1955), adaptação de outro célebre clássico infantil da
literatura britânica, este de James Barrie, o resgataria. Acrescente-se que, depois de Branca de Neve, Pinóquio ou
Cinderela, esta Alice no País das Maravilhas
suscitou, tanto domesticamente como na Inglaterra, bastante decepção. Os
ingleses, que sentiam decerto as aventuras de Alice como especialmente suas,
acusaram Disney de ter “americanizado” a adaptação cinematográfica de 1951,
tendo sido necessária a estreia de Peter
Pan, quatro anos depois, para que os estúdios de Hollywood reconquistassem
o público britânico. A verdade é que, obedecendo a um gosto muito seu e a influências,
nomeadamente musicais, muito próprias da sensibilidade americana, Disney lograra,
não obstante alguns deslizes adiante analisados, construir uma versão notável e
ousada das aventuras de Alice no mundo dos sonhos. A verdade é que este
filme teve estudiosos que lhe negaram
valor, como foi o caso de Christopher Finch,
que no seu estudo The Art of Walt
Disney…( 1975) não hesitou em falar dele nestes termos depreciativos: “(…) Alive no País das Maravilhas falhou porque
este não captou a atmosfera sofisticada de Lewis Carroll e ainda porque o
altamente intelectual humor verbal em termos visuais não era coisa fácil e Alice é talvez o mais fraco dos filmes
animados de Disney.”[2] Como
veremos em seguida, este juízo é manifestamente injusto.
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2.
A riqueza icónica do filme de 1951
Antes de mais, há que
sublinhar que o filme de 1951 prima por uma extraordinária riqueza icónica, com
imagens surpreendentes e ousadas na sua fantasia, tanto em cenários, como em
seres surreais – animais, objetos, jardins, labirintos vegetais, movimentos de
cartas de jogar como um baralho vivo, enquadramentos, etc. Os cenários deste
filme e até os seus mais bizarros habitantes, sobretudo animais, flores e
gentes, dum modo mais geral, são de grande imaginação, fantasia e colorido
requintado, que os estúdios Disney se serviram para refazer todo o estilo,
intuito narrativo e atmosfera da sua versão de animação. Entre os animais que
Alice encontra na floresta de Tulgey Wood, que atravessa a caminho do jardim da
Rainha, acham-se algumas das variantes mais imaginativas do talento dos
estúdios Disney: pássaros dos mais diversos – pássaros com gaiolas dentro,
pássaros-óculos com pernas, abutres-chapéus de chuva, pássaros-martelos e
pássaros-lápis, prímulas que se juntam para formarem uma seta ambulante para
guiarem Alice, patos-borracha que emitem sons como buzinas, um cão-vassoura que
vai apagando o caminho cor de rosa que a jovem se serve para ir na direcção
pretendida (uma alusão ao yellow brick
road do Feiticeirto de Oz), pães
de forma que se transformam em borboletas amarelas e outros seres bizarros como mochos-harmónio ou aves com
bicos de pá, etc. Há nesta fauna e flora verdadeiramente oníricas, como é
evidente, muito das lições surrealistas que nos anos 30 e 40 tinham
influenciado os artistas americanos. Convém não esquecer que Salvador Dalí, o enfant terrible do surrealismo, chegou a encontrar-se com Disney, em 1945, com
vista à elaboração dum curto filme que se chamaria Destino (em espanhol), o qual nunca chegaria a realizar-se, dele só
ficando uma cena experimental de quinze segundos, nos quais se vê uma bailarina
com forma der cálice que se desdobra, acabando
por ser levada por duas tartarugas, além de alguns desenhos e óleos do
pintor catalão, propriedade dos estúdios.[3]
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Outras inovações engenhosas introduzidas por Disney no filme são a maçaneta falante, da porta que Alice tenta passar para entrar no reino das maravilhas, e cuja boca engole a avalanche de lágrimas que esta vertera ao sentir-se encurralada num espaço claustrofóbico devido ao tamanho diminuto resultante das muitas mudanças de estatura que sofreria durante todo o seu sonho/pesadelo, a ponto de tomar a precaução de meter no bolso dois pedaços do cogumelo em que se sentava a Lagarta, de molde a crescer ou diminuir de tamanho consoante as necessidades das situações sucessivas.
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Salvador Dalí e Walt Disney (1945)
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Disney Studios, Destino (2003)
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Outras inovações engenhosas introduzidas por Disney no filme são a maçaneta falante, da porta que Alice tenta passar para entrar no reino das maravilhas, e cuja boca engole a avalanche de lágrimas que esta vertera ao sentir-se encurralada num espaço claustrofóbico devido ao tamanho diminuto resultante das muitas mudanças de estatura que sofreria durante todo o seu sonho/pesadelo, a ponto de tomar a precaução de meter no bolso dois pedaços do cogumelo em que se sentava a Lagarta, de molde a crescer ou diminuir de tamanho consoante as necessidades das situações sucessivas.
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Note-se que este
constante desajustamento da jovem sonhadora pode ser interpretado como a
situação própria duma jovem em crescimento de adolescente num mundo que ainda
não conhece nem controla, de modo que a todos os momentos fica demasiado alta
ou baixa em relação aos cânones dimensionais desse novo habitat.
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John Tenniel, Auto-retrato (c. 1889) |
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Deste modo, sendo um
filme que nunca gozou de grande simpatia, nem do público nem dos dois países
anglo-saxónios, a Alice disneyana merece ser escrutinada com toda a atenção,
antes de mais comparando-a com os desenhos do grande artista inglês John Tenniel (1820-1914) – o famoso cartoonista doa revista satírica Punch – para a edição inglesa do livro do
mítico reverendo anglicano Charles Dodgson, o autor de estudos de matemática e
de lógica, além de fotógrafo estimável que, em 1865, lançara um dos monumentos
supremos da literatura infantil e, para além disso, pináculo da literatura de
todos os países, com a sua sequela, Through
the Looking-Glass and What Alice found There (1871), com alguns episódios (v.g., o dos dois gémeos Tweedledum e
Tweedledee e a estória em verso da Morsa e do Carpinteiro) que Disney
integraria no seu filme.
3. A tirânica Rainha de Copas
Quanto às imagens de Alice
desenhadas por Tenniel, observe-se que foi desde o início preocupação de Disney
afastar-se desse cânone vitoriano, o que se torna evidente se comparamos
algumas das personagens fulcrais da acção, como a Rainha de Copas, o Coelho
Branco, Gato Chechire, etc. Detenhamo-nos no exame destes casos individuais. A
Rainha é, na versão inglesa, uma monarca agressiva, antipática e obcecada pelo
grito “cortem-lhe a cabeça!” – o próprio Carroll reconhecera que esta Rainha
era “a corporização duma paixão impossível, uma Fúria cega e sem fito” –, mas
no filme torna-se uma verdadeira virago estabanada, ainda mais feia e de maior
agressividade, tanto no trato com os demais durante o jogo de críquete,
esquecendo e desprezando o pequenino Rei de Copas – na versão animada, o
monarca torna-se um ser pequenino e insignificante, uma espécie de peça de jogo
de xadrez que se preocupa só em que reparem nele –, o que ajuda toda a acção a
degenerar em pesadelo, com os figurantes em corrida desenfreada atrás de Alice,
desde que esta, finalmente, decidisse abandonar o tribunal onde pediam que o
veredicto viesse antes do julgamento[4] e
desertar daquele angustiante mundo onírico em que os flamingos serviam de tacos
para o jogo e os ouriços-cacheiros de bolas que as cartas de fogar ajudavam a
atravessar os arcos que eles iam rapidamente formando durante a trajectória das
tacadas, quando não andavam a pintar de vermelho as rosas brancas do jardim
régio. Assinale-se outra diferença entre as duas versões de Alice: se, no
livro, a sua presença no tribunal tem a ver com uma acusação que lhe não é
diretamente imputada – já que o Coelho branco anuncia em verso que foi o Valete
que roubou as tartes, crime que justifica a reunião do tribunal para julgar
quem cometeu tamanho delito; no filme o Coelho explica que Alice está ali por
ter indisposto a Rainha no jogo, levando-a a perder a paciência, crime
imperdoável. Quanto ao papel do Gato no processo, destina-se ele a enfurecer
ainda mais a tirânica Rainha de Copas, o que leva Alice a fazer figura de
Inimigo Público de todos os presentes, pelo que as cenas seguintes têm a ver
com o seu esforço em acordar daquele pesadelo. Não conhecera o século XX
processos infames como os de Moscovo, em 1936-7, com o frio e meticulosamente
programado linchamento de vítimas administrativamente executadas em processos
sumários regidos por um lógica ditatorial sem precedentes na história humana – o
que o felino sorridente faz com especial e perverso deleite. E como o filme
saiu em pleno período do macartismo, também não deixa de ser plausível que o
tribunal que persegue Alice não deixasse de lembrar a Caça às Bruxas do Red Scare americano coevo. De qualquer
modo, o subtil brincalhão e misterioso Gato de Carroll parecia estar, agora,
neste filme, ao serviço de infâmias bem mais atrozes do que as que o século XIX
tinha alguma vez concebido como mecanismos de opressão sistemática.
Esta metamorfose de mundo
sonhado em pesadelo opressivo constitui, deste modo, um sinal patente da
adaptação de Disney, reforçada pelos cenários admiravelmente executados de
labirintos e multidões em fúria atrás da jovem sonhadora que só ambiciona agora
ver-se livre de juízes e testemunhas apostados em maniganciar um processo
previamente julgado que a condene – no livro a acusação era o absurdo crime de
ter roubado tartes, enquanto que no filme a acusação seria outra –, o que
legitimaria a metamorfose dum clássico da literatura infantil vitoriana numa
imaginativa, delirante e até dramática descida ao mundo subterrâneo onde a
Rainha de Copas manda decapitar seres sem corpo – o que, no livro do reverendo,
suscitaria um debate entre os reis e o carrasco régio quanto à impossibilidade lógica
e física de se cortar a cabeça do Gato Chechire, uma vez que este tinha o
condão de pairar resumido a uma cabeça sem corpo e, até, a um sorriso sem gato.[5]
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4.
O Gato Chechire
O
sorridente Gato Chechire – assim chamado pela expressão inglesa que designa um sorriso
alargado, aquele que o felino de Carroll utilizava, é, sem dúvida uma das
figuras mais estranhas e até enigmáticas da obra de Lewis Carroll – e a que, na
versão para o cinema, Disney menos entendeu ou, pelo menos, da qual deu uma
versão sua que não deixa de ser decepcionante e até praticamente infeliz, imaginando
o bichano como um animal às riscas azulados e cor de rosa, com uma cabeça que
se solta do corpo, ao mesmo tempo que fala com um ar misterioso e afectado,
pregando partidas à Rainha de Copas, de que Alice se torna injustamente acusada.
Com
este Gato risonho, parece-nos evidente que os estúdios Disney ficaram aquém do
livro inspirador de Carroll. Que dizer então da personagem original que Disney assim
desfigurou ou amesquinhou? Dizia o romancista Julian Barnes, ao saudar a edição
francesa das obras completas do seu compatriota, que o Gato que ri, tal como o
também bizarro Snark do mesmo escritor oitocentista, fica suspenso no ar ou no
meio das ramagens duma árvore, “ao mesmo tempo presente e ausente, real e
imaterial, sem parar um só momento de nos sorrir”.[6] Este
sorriso, como a sua capacidade o em se
dissolver no ar, desaparecendo até dele só restar o sorriso – facto que muito
intrigava Alice, pois esta observa que várias vezes vira “um gato sem sorriso,
mas nunca um sorriso sem gato”[7] – foi
um detalhe central do humor de Carroll
que Disney não logrou fazer seu ou nele operar uma metamorfose condigna. Todo o
comportamento do felino, assim como as suas
réplicas e partidas no jardim da Rainha de Copas – onde suscita o embaraço do
Carrasco régio porque este não sabe como cumprir a ordem que a monarca lhe dera
de decapitar o Gato Chechire, uma vez que se trata duma cabeça sem corpo (episódio
que não foi incluído na versão
cinematográfica de Disney) – deriva dum mistério essencial, ao mesmo tempo
muito inglês e bem carrolliano, o de ser um complexo exemplo de nonsense em acção. Se o tomarmos como
metáfora de qualquer enigma ou elemento perturbador e inacessível ao nosso
entendimento decifrador por habitar o território insondável dos sonhos, este Gato
que sorri sem se entender o que ele quer significar com esse comportamento
bizarro, reforçado pela sua capacidade de se dissolver no espaço, dele ficando
apenas o sorriso (grin), tudo torna a
sua relação com Alice ainda mais difícíl
de compreender, já que o podemos tomar como uma farsante que troça dela como
uma testemunha que atravessa o sonho da jovem, vinda doutro mundo – um emblema perfeito do absurdo,
o absurdo de que são feitos os sonhos, como a vida e a literatura, que talvez
não passem das três faces duma mesma realidade onde um felino subtil se
passearia, fazendo perguntas inquietantes, dando respostas evasivas e recusando
a lógica e a matemática de que o reverendo Dodgson, seu criador, era especialista,
a menos que queiramos ver nele a impossível busca duma mente racionalista
diante dum fenómeno tão absurdo como o sonho dos humanos. Quanto a Disney,
parece-nos evidente que o seu americanismo entranhadamente behaviorista o impediu
de captar o perfeito lado nonsensical
deste Gato sorridente, pelo que o estropiou, fazendo dele um brincalhão
apalhaçado que atrapalha Alice, irrita fortemente a Rainha de Copas e, por fim,
se dissolve no puro vácuo onírico depois do mal que faz. Digamos, doutra maneira,
que este gato está a mais na versão do desenho animado de Disney, embora ele
seja central na narrativa de Carroll. Esta diferença torna impossível levar
demasiado longe o nosso exercício de examinar as duas versões, a de 1865 e a de
1951, a britânica e a americana.
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5.
O Coelho branco
O Coelho branco, que
confunde Alice com a sua criada Mary Ann e teria a sua casa destruída pelos
oscilações de estatura da jovem – no filme, o Dodo procura resolver o caso
pegando fogo à casa onde está encurralada a jovem, facto que no livro é apenas
aludido –, é, no original da história de Alice, em livro,
um animal conspícuo e de ar britânico com o seu colete, relógio de bolso que
consulta amiúde e um casaco de bom tecido, transformado por Disney em alucinado
agente da Rainha, com uma libré – sugestão já presente num desenho de Tenniel [8], no qual o coelho traz um papel ao tribunal e
usa da trombeta como arauto que é – que
remete para a simbologia das cartas de jogar, assim com o seu desvairado correr
pelos cenários do jogo de críquete e o uso dum cornetim. As suas correrias
pelos cenários de labirinto envolvente onde se passam as cenas finais do filme
de Disney tornam-se uma espécie de provação para a rapariga que, no mundo das
maravilhas, tenta segui-lo e do qual, por fim, tem de se defender, uma vez que
o animal serve o sistema judicial que a tenta condenar por manifesta embirração
que lhe vota a Rainha de Copas. O Coelho é, no fundo, o mais directo responsável
pela descida de Alice ao mundo subterrâneo dos sonhos, onde tudo e todos, desde
os animais às flores, às lagartas, e dos gatos à corte, a hostilizam, dela
fazem troça e, por fim, a querem condenar em processo sumário. Este Coelho branco
que foge de Alice, sem nunca lhe explicar porque é que está atrasado e porque
consulta tanto o seu relógio, acabará por ser, entretanto, vítima duma partida
cruel e inexplicável que lhe pregam os três participantes no chá de doidos presidido
pelo Chapeleiro Louco, com a colaboração da Lebre de Março e a assistência passiva
dum Arganaz que dorme. (a esta cena voltaremos adiante para a diferenciarmos da
mesma merenda descrita por Carroll e desenhada por Tenniel).
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6. O chá dos doidos
São bastante diversos em
estilo, ritmo narrativo e significado psicológico as duas versões do lanche na
casa da Lebre de Março, a que Carroll narra e Tenniel ilustra ou o seu remake pelos estúdios Disney. O
comportamento dos três convivas – o Chapeleiro, a Lebre e o sonolento Arganaz –
obedece nos dois casos ao mesmo primado de hostilidade expresso pela recusa dos
comensais em receberem Alice porque, alegadamente, na enorme mesa não haveria
lugar para ela tomar chá com os demais: “No room! No room!” [9]
gritam-lhe todos, no romance como no filme (repare-se que, dum modo geral e
constante, todas as figuras que Alice encontra no País das Maravilhas a
repelem, hostilizam ou, por fim, perseguem; o caso do Gato é distinto, na
medida em que o felino paira acima de tudo e de todos, como um ser imparcial
que transcendesse a acção do sonho).
Quase toda a narrativa do
desenho animado de 1951 diverge de modo flagrante. Antes de mais, o relógio que
o Chapeleiro consulta com ar preocupado por o achar a funcionar mal pertence,
no filme, ao estabanado Coelho Branco, sendo sujeito a um tratamento ultrajante
e destrutivo que ultrapassa tudo o que Carroll imaginara no seu texto: neste, o
relógio fora apenas molhado numa chávena de chá, untado previamente com manteiga
pela Lebre, enquanto que, na animação, o pobre instrumento de medição do tempo é
objecto de um verdadeiro tratamento selvagem que mete geleia, açúcar e imersão
em chá a ferver, ultrajes que rematam com uma fortíssima pancada que lhe vibra
o dono da casa, desfazendo-o, e explicando depois que o relógio enlouquecera. Na
verdade, depois de torturado pelos dois loucos da merenda, o relógio doirado do
Coelho branco explodira. Também o bolo que é oferecido a Alice elo Capeleiro e
pela Lebre, naquela “festa de desaniversário” (unbirthday party) solta-se-lhe das mãos e parte como um foguete, explodindo no ar como fogo de
artifício.
O ar alucinado do
Chapeleiro durante todos estes ultrajes deixa desde logo adivinhar os maus-tratos
que o relógio iria sofrer, desde coberto da referida manteiga a açúcar – com a
recusa da mostarda que a Lebre lhe oferecera para concertar o aparelho –, tudo
feito com uma perversa vontade de deixar totalmente destruído o objecto que, no
filme, pertence ao Coelho branco. Uma inovação na cena do chá está na celebração
do dia “não-aniversário” de Alice, cena de todo ausente no romance de Carroll.
Uma das muitas canções do filme de Disney foi precisamente esta: “The Unbirthday
Song” (A Canção do Não-aniversário), cantada por Alice, o Chapeleiro e a Lebre.
Ao todo, o filme inclui vinte canções que dão musicalidade a muitos dos poemas
que enxameiam o romance de Carroll, tal como “Who’s been painting my roses red?”,”The
Caucus race” ou ainda “The Walrus and the Carpenter” (A Morsa e o Carpinteiro).
Sobre esta última, convém sublinhar que se trata duma cena retirada da sequela
de Alice, contada ali pelos irmãos Tweedledum e Tweedledee, com uma versão frenética
da Morsa que desce ao fundo do mar para atrair as inocentes ostras a um
restaurante sobre a praia, na qual o Carpinteiro, um personagem alucinado,
prepara um molho que devia acompanhar os pobres lamelibrânquios. Este episódio
é, aliás, um dos melhores exemplos de como os estúdios Disney tomaram uma
estória e um poema do Trough the
Looking-Glass e o ilustraram com uma desenvoltura imaginativa, muito cómica
e com um fundo perverso, expresso na gula da Morsa, aqui dotada de um charuto
que a acompanha mesmo quando desce ao lugar dos moluscos.
Por outro lado, o uso do
chá, a maneira de o tomar e distribuir pelos comensais, assim como o pormenor
surrealista de vermos uma chávena ser cortada ao meio sem que o líquido se
derrame, comprovam a sugestão surrealista, assim como a intenção claramente
devastadora daquele exercício de delírio malvado no qual o Chapeleiro, fazendo
jus ao seu epíteto, se comporta como um doido varrido. Não se considere este
chá inicial como um mero exercício de imaginação excessiva e agressiva, mas
antes como um antegosto do comportamento opressivo da tirânica Rainha de Copas no
seu jardim, bem como durante o jogo de críquete, sem esquecer, por fim, o
apressado julgamento – “Primeiro a sentença, depois a decisão do júri”,
insistira a Rainha no versão de Carroll – em torno das tartes que o Valete
teria roubado, aquele processo de mau signo que levaria Alice a acordar. Na versão
cinematográfica, a narrativa começa a tornar-se opressiva e própria dum
pesadelo a partir do lanche, sem falar do mar encapelado resultante das lágrimas
iniciais de Alice, da corrida dos náufragos sobreviventes a esse maremoto e,
desde a cena do relógio martirizado, naquele preocupante começo da década de 50
nos Estados Unidos e no mundo, a Alice de Disney, apesar de seu alvo infantil,
registava um evidente atmosfera de temor e terror, construindo-se num verdadeiro
clímax crescente de tropelias,
agressões, gritos, excesso e sentenças de morte decretadas pelos dos monarcas de
Copas (no livro de Carroll, já que no versão de Disney, como se disse atrás, o
reizinho é um homem minúsculo que não influi na acção nem tem lugar de juiz no
processo em que Alice é envolvida). A América do Norte pós-rooseveltiana
perdera nesse período doloroso, com actos como a condenação à morte dos esposos
Rosenberg, nesse mesmo ano de 1951, as grandes esperanças das duas décadas
anteriores. Os defeitos de Disney como homem, artista e cidadão têm sido
sublinhados pelos seus biógrafos e até por uma recente ópera de Philip Glass. [10]
Monte Estoril, 11 de Fevereiro de 2013
João Medina
Bibliografia:
– The
Annotated Alice, incluindo Alice e a sua sequela, pref. e notas de Martin
Gardner, Harmondsworth, Penguin Books, 1974, ilustr. com desenhos de John Tenniel.
– Alice
nos País das Maravilhas, trad. de Vera Azancot, Mem Martins, Publicações Europa-América,
1977, ilustr. por John Denniel.
– Julian Barnes, “Alice au Pays de la
Pléiade”, Le Nouvel Observateur, Paris,
31-V-1990, pp.59-61.
– Oeuvres
de Lewis Carroll, org. por Jean Gattégno, Paris, Gallimard, Col. La Pléiade,
1990.
– João Medina, Memórias do Gato que Ri, Lisboa, Livros Horizonte, 2002 (tendo na
capa o Gato que sorri de John Tenniel). Os folhetins que serviram para esta edição
em livro saíram semnalmente no Diário de Lisboa,
de 14-I-1980 a 27-X-80, tendo como cabeçalho o desenho de Tenniel com Alice a
falar com o Gato empoleirado numa árvore.
– João Medina, “Alice e a Rainha de Copas”,
in Os meus Vícios, V.ª N-ª de
Famalicão, 2011, pp. 135ss (com o desenho de J. Tenniel mostrando o Gato
pairando acima dos Reis de Copas e do Carrasco).
– Walt Disney, Alice no País das Maravilhas, DVD de 71 minutos, falado em
português, com legendas em várias línguas, s.d.
– Cristopher
Finch, The Art of Walt Disney from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms,
Nova Iorque, Harry N. Abrams, 1975, ilustr.
– Marc Eliot, Walt Disney: Hollywood Dark Prince, Londres, Andre Deutsch, 1995
(dando pouca atenção a Alice no País das Maravilhas,
incidindo mais sobre o comportamento político e anti-sindical de Walt Disney os
“Dez de Hollywood” perseguidos pela HUAC, p.177 e ss.)
– Neil
Gabler, Walt Disney; The Triumph of the
American Imagination, Nova Iorque, Alfred Knopf, 1996.
– Anthony
Lane, “Wonderful world!”, The New Yorker, 11-XII-2006, pp.57-75,
com uma caricatura de Walt Disney por Gerald Sarfe, p. 66.
[1] Mary Blair nasceu em 1911 e faleceu em 1978, na Califórnia.
Formada pela Escola de Arte de Los Angeles (1933), ingressou na MGM e, em 1940,
nos estúdios Disney, colaborando como artista durante três décadas, tendo
participado como encenadora e artista gráfica em filmes como Os Três Caballeros, Cinderella, Alice e Peter Pan, tendo deixado um obra
relevante em filmes de animação. Participou ainda na Feira Mundial de Nova
Iorque (1964-5), fez murais, decorou hotéis e participou em exposições como decoradora
e artista.
[2] Christopher Finch,
The Art of Walt Disney from Mickey Mouse
to the Magic Kingdoms, Nova Iorque, Harry N. Abrams, 1975, p.117. Há duas
imagens coloridas de Alice na p.119.
[3] Veja-se a monumental biografia escrita por Ian Gibson
La Vida desaforada de Salvador Dalí, Barcelona, Anagrama, 1998, ilustr., pp.551-3.
[4] Veja-se “Alice e a Rainha de Copas” no nosso livro Os meus Vícios, V.ª N.ª de Famalicão,
Húmus, 2011, pp.131-5.
[5] Veja-se, na edição anotada por Martin Gardner deste
romance, The Annotated Alice de Lewis
Carrol, incluindo a sequela Through
the Looking-Glass, Penguin Books, Harmondsworth, 1974, pp.115-117 (desenhos
de John Tenniel).Quanto ao “sorriso sem gato”, vide pp. 91 (com o desenho respectivo
de Tenniel, mostrando o sorriso do gato que entretanto fora desaparecendo).
[7] Lewis Carroll, op.
cit., ed. Penguin, p. 91 (com desenhos de Tenniel a representar o corpo
evanescente e o riso que ficou).
[8] Cf. The Annotated
Alice, ed. Penguin, p.146 (desenho de John Tenniel).Sobre este famoso
artista, veja-se Frances Barzano, Sir
John Tenniel, Londres, Art and Techniques, 1948, ilustr. (desenhos para Alice
e para Do outro Lado do Espelho, pp.57-70).
[10] Recordemos as biografias recentes quanto a Walt
Disney como artista, cidadão e como político conservador, do qual se chegou a
alegar, malevolamente, que seria simpatizante de Hitler e anti-semita (cf. Marc
Eliot, Hollywood‘s Black Prince, cit.
na bibliografia); e a ópera de Philip Glass, recentemente estreada em Madrid, The Perfect American (2013), baseado num
romance homónimo de Peter Stephan Jungk (2013).
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