sábado, 23 de fevereiro de 2013

A Alice de Walt Disney.





 

Exame comparativo do romance de Lewis Carroll (1865)
e do filme de animação de Walt Disney (1951)
 

 

 
 
Original de Alice Adventures Underground, com ilustrações de Lewis Carroll
 
 
 
Alice Pleasance Liddell (1852-1934) 
(1) fotografia de Lewis Carroll; (2) fotografia de Julia Cameron; (3) aos 80 anos. 
 






O fascínio de Walt Disney (1901-1966) pelos livros de Alice de Lewis Carroll (1832-1898) remonta ao seu período de juvenil, manifestando-se depois nos começos da sua carreira de cineasta, já que em 1923, tendo iniciado a sua actividade como produtor de cinema, concebeu o projecto de transpor as aventuras da jovem vitoriana no mundo onírico da fantasia, e dedicaria uma curta-metragem dos seus Laugh-O-Grams à famosa heroína infantil, intitulado Alice’s Wonderland, com a participação duma actriz chamada Virginia Davis num curto filme de animação. O enorme sucesso de Walt com o Mickey Mouse (1928) e das séries animadas das Silly Symphonies permitiu-lhe o lançamento dos primeiros grandes sucessos em filmes de desenhos animados, de modo que essa curta-metragem, misturando imagem real e animação, ficaria enterrada e esquecida no celulóide, até que, em 1932, os estúdios Disney voltaram ao projecto de realizarem uma Alice no País das Maravilhas, combinando imagem real com animação, dando a Mary Pickford (1893-1979) o papel de jovem visitante do mundo dos sonhos, tendo comprado, para esse fim, os direitos autorais dos desenhos de Tenniel, ainda em vigor nessa época. Entretanto, a partir de 1937, Disney iniciara uma série de grandes filmes de longa-metragem que teria assinalado e crescente  sucesso com Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio, Fantasia (1940) e Dumbo (1941), Cinderela (1950), etc.

 
 
 Alice's Wonderland (1923)



 

1.Disney realiza uma longa metragem de Alice

 

Já em 1938, Disney voltara ao seu velho sonho de fazer uma Alice, registando o título Alice in Wonderland e conseguindo que um grupo de colaboradores tivesse o stroryboard  pronto, convidado o artista Al Perkins e solicitando o cineasta David S. Hall para o realizar (1939). Todavia, tropeçando na relutância em servir-se dos desenhos oitocentistas de Tenniel – o mudo estético conhecera entretanto as experiências do fauvismo, do cubismo e do surrealismo –, Disney adiou uma vez mais a aventura de tornar a obra de Caroll num filme de desenho animado. Passado o período da guerra mundial, só nos começos da década de 50 – em plena guerra da Coreia (1950-53) e do macartismo (1950-54) –, a ideia seria por fim posta em prática. Recorde-se, como mera curiosidade, que, algum tempo antes, Disney pedira ao escritor inglês Aldous Huxley, expatriado na América do Norte, para lhe redigir um guião, ideia que se mostraria, porém, demasiado decepcionante. Entretanto, Disney convidaria uma artista que havia de se revelar indispensável para dar ao filme um estilo moderno, acutilante e inovador, ideal para uma adaptação rejuvenescida do livro do século anterior: Mary Blair.[1] Estes novos cenários e colorido foram então decisivos para que a Alice disneyana começasse a tomar forma e a sua realização fosse uma verdadeira reinvenção da velha história duma menina que visita o alucinante mundo dos sonhos, agora com música, ritmo trepidante, enorme fantasia e humor delirante, bem para além dos amáveis gracejos do reverendo britânico Dodgson. Este grande ciclo de desenhos animados de longa-metragem combinariam de modo a criarem um estilo tipicamente americano, o mundo Disney, composto de cuidadosos cenários e ambientes (florestas, figuras caricaturas, movimentos habilidosamente estudados, efeitos especiais, canções, cidades, jardins, etc.), splapstick, sentimentalismo e cores sumptuosas, por vezes berrantes, num misto que fascinaria multidões de cinéfilos por todo o mundo.
.
.


 

Voltando ao advento de Alice, diga-se que, depois de utilizar um orçamento considerável e uma produção assaz demorada, confiada a três realizadores (C. Geromini, W. Jackson e H. Luske) e com um guião escrito por mais de dez colaboradores, Disney logrou passar finalmente para uma longa-metragem colorida o seu Alice no País das Maravilhas, estreado em Nova Iorque e em Londres no mesmo dia, a 26-VII-1951. Os públicos dos dois lados do oceano não o acolheram com um sucesso que legitimasse as obstinadas esperanças que os estúdios Disney tinham despertado com tal projecto. Esta era a 13ª obra de fôlego do famoso mestre da animação americana, o que não evitou que a recepção do filme fosse pouco calorosa na Inglaterra e relativamente falhada no seu próprio país, insucesso relativo de que só o filme seguinte, Peter Pan (1955), adaptação de outro célebre clássico infantil da literatura britânica, este de James Barrie, o resgataria. Acrescente-se que, depois de Branca de Neve, Pinóquio ou Cinderela, esta Alice no País das Maravilhas suscitou, tanto domesticamente como na Inglaterra, bastante decepção. Os ingleses, que sentiam decerto as aventuras de Alice como especialmente suas, acusaram Disney de ter “americanizado” a adaptação cinematográfica de 1951, tendo sido necessária a estreia de Peter Pan, quatro anos depois, para que os estúdios de Hollywood reconquistassem o público britânico. A verdade é que, obedecendo a um gosto muito seu e a influências, nomeadamente musicais, muito próprias da sensibilidade americana, Disney lograra, não obstante alguns deslizes adiante analisados, construir uma versão notável e ousada das aventuras de Alice no mundo dos sonhos. A verdade é que este filme  teve estudiosos que lhe negaram valor, como foi o caso de Christopher Finch,  que no seu estudo The Art of Walt Disney…( 1975) não hesitou em falar dele nestes termos depreciativos: “(…) Alive no País das Maravilhas falhou porque este não captou a atmosfera sofisticada de Lewis Carroll e ainda porque o altamente intelectual humor verbal em termos visuais não era coisa fácil e Alice é talvez o mais fraco dos filmes animados de Disney.”[2] Como veremos em seguida, este juízo é manifestamente injusto.
.
.

 


         2. A riqueza icónica do filme de 1951

 

Antes de mais, há que sublinhar que o filme de 1951 prima por uma extraordinária riqueza icónica, com imagens surpreendentes e ousadas na sua fantasia, tanto em cenários, como em seres surreais – animais, objetos, jardins, labirintos vegetais, movimentos de cartas de jogar como um baralho vivo, enquadramentos, etc. Os cenários deste filme e até os seus mais bizarros habitantes, sobretudo animais, flores e gentes, dum modo mais geral, são de grande imaginação, fantasia e colorido requintado, que os estúdios Disney se serviram para refazer todo o estilo, intuito narrativo e atmosfera da sua versão de animação. Entre os animais que Alice encontra na floresta de Tulgey Wood, que atravessa a caminho do jardim da Rainha, acham-se algumas das variantes mais imaginativas do talento dos estúdios Disney: pássaros dos mais diversos – pássaros com gaiolas dentro, pássaros-óculos com pernas, abutres-chapéus de chuva, pássaros-martelos e pássaros-lápis, prímulas que se juntam para formarem uma seta ambulante para guiarem Alice, patos-borracha que emitem sons como buzinas, um cão-vassoura que vai apagando o caminho cor de rosa que a jovem se serve para ir na direcção pretendida (uma alusão ao yellow brick road do Feiticeirto de Oz), pães de forma que se transformam em borboletas amarelas  e outros seres  bizarros como mochos-harmónio ou aves com bicos de pá, etc. Há nesta fauna e flora verdadeiramente oníricas, como é evidente, muito das lições surrealistas que nos anos 30 e 40 tinham influenciado os artistas americanos. Convém não esquecer que Salvador Dalí, o enfant terrible do surrealismo,  chegou a encontrar-se com Disney, em 1945, com vista à elaboração dum curto filme que se chamaria Destino (em espanhol), o qual nunca chegaria a realizar-se, dele só ficando uma cena experimental de quinze segundos, nos quais se vê uma bailarina com forma der cálice que se desdobra, acabando  por ser levada por duas tartarugas, além de alguns desenhos e óleos do pintor catalão, propriedade dos estúdios.[3]
.
.
Salvador Dalí e Walt Disney (1945)


Disney Studios, Destino (2003)

.
.
Outras inovações engenhosas introduzidas por Disney no filme são a maçaneta falante, da porta que Alice tenta passar para entrar no reino das maravilhas, e cuja boca engole a avalanche de lágrimas que esta vertera ao sentir-se encurralada num espaço claustrofóbico devido ao tamanho diminuto resultante das muitas mudanças de estatura que sofreria durante todo o seu sonho/pesadelo, a ponto de tomar a precaução de meter no bolso dois pedaços do cogumelo em que se sentava a Lagarta, de molde a crescer ou diminuir de tamanho consoante as necessidades das situações sucessivas.
-
.
 



Note-se que este constante desajustamento da jovem sonhadora pode ser interpretado como a situação própria duma jovem em crescimento de adolescente num mundo que ainda não conhece nem controla, de modo que a todos os momentos fica demasiado alta ou baixa em relação aos cânones dimensionais desse novo habitat.
.
-

John Tenniel, Auto-retrato (c. 1889)
 
.
.


Deste modo, sendo um filme que nunca gozou de grande simpatia, nem do público nem dos dois países anglo-saxónios, a Alice disneyana merece ser escrutinada com toda a atenção, antes de mais comparando-a com os desenhos do grande artista inglês John Tenniel (1820-1914) – o famoso cartoonista doa revista satírica Punch – para a edição inglesa do livro do mítico reverendo anglicano Charles Dodgson, o autor de estudos de matemática e de lógica, além de fotógrafo estimável que, em 1865, lançara um dos monumentos supremos da literatura infantil e, para além disso, pináculo da literatura de todos os países, com a sua sequela, Through the Looking-Glass and What Alice found There (1871), com alguns episódios (v.g., o dos dois gémeos Tweedledum e Tweedledee e a estória em verso da Morsa e do Carpinteiro) que Disney integraria no seu filme.

 


 

         3. A tirânica Rainha de Copas

 

Quanto às imagens de Alice desenhadas por Tenniel, observe-se que foi desde o início preocupação de Disney afastar-se desse cânone vitoriano, o que se torna evidente se comparamos algumas das personagens fulcrais da acção, como a Rainha de Copas, o Coelho Branco, Gato Chechire, etc. Detenhamo-nos no exame destes casos individuais. A Rainha é, na versão inglesa, uma monarca agressiva, antipática e obcecada pelo grito “cortem-lhe a cabeça!” – o próprio Carroll reconhecera que esta Rainha era “a corporização duma paixão impossível, uma Fúria cega e sem fito” –, mas no filme torna-se uma verdadeira virago estabanada, ainda mais feia e de maior agressividade, tanto no trato com os demais durante o jogo de críquete, esquecendo e desprezando o pequenino Rei de Copas – na versão animada, o monarca torna-se um ser pequenino e insignificante, uma espécie de peça de jogo de xadrez que se preocupa só em que reparem nele –, o que ajuda toda a acção a degenerar em pesadelo, com os figurantes em corrida desenfreada atrás de Alice, desde que esta, finalmente, decidisse abandonar o tribunal onde pediam que o veredicto viesse antes do julgamento[4] e desertar daquele angustiante mundo onírico em que os flamingos serviam de tacos para o jogo e os ouriços-cacheiros de bolas que as cartas de fogar ajudavam a atravessar os arcos que eles iam rapidamente formando durante a trajectória das tacadas, quando não andavam a pintar de vermelho as rosas brancas do jardim régio. Assinale-se outra diferença entre as duas versões de Alice: se, no livro, a sua presença no tribunal tem a ver com uma acusação que lhe não é diretamente imputada – já que o Coelho branco anuncia em verso que foi o Valete que roubou as tartes, crime que justifica a reunião do tribunal para julgar quem cometeu tamanho delito; no filme o Coelho explica que Alice está ali por ter indisposto a Rainha no jogo, levando-a a perder a paciência, crime imperdoável. Quanto ao papel do Gato no processo, destina-se ele a enfurecer ainda mais a tirânica Rainha de Copas, o que leva Alice a fazer figura de Inimigo Público de todos os presentes, pelo que as cenas seguintes têm a ver com o seu esforço em acordar daquele pesadelo. Não conhecera o século XX processos infames como os de Moscovo, em 1936-7, com o frio e meticulosamente programado linchamento de vítimas administrativamente executadas em processos sumários regidos por um lógica ditatorial sem precedentes na história humana – o que o felino sorridente faz com especial e perverso deleite. E como o filme saiu em pleno período do macartismo, também não deixa de ser plausível que o tribunal que persegue Alice não deixasse de lembrar a Caça às Bruxas do Red Scare americano coevo. De qualquer modo, o subtil brincalhão e misterioso Gato de Carroll parecia estar, agora, neste filme, ao serviço de infâmias bem mais atrozes do que as que o século XIX tinha alguma vez concebido como mecanismos de opressão sistemática.

Esta metamorfose de mundo sonhado em pesadelo opressivo constitui, deste modo, um sinal patente da adaptação de Disney, reforçada pelos cenários admiravelmente executados de labirintos e multidões em fúria atrás da jovem sonhadora que só ambiciona agora ver-se livre de juízes e testemunhas apostados em maniganciar um processo previamente julgado que a condene – no livro a acusação era o absurdo crime de ter roubado tartes, enquanto que no filme a acusação seria outra –, o que legitimaria a metamorfose dum clássico da literatura infantil vitoriana numa imaginativa, delirante e até dramática descida ao mundo subterrâneo onde a Rainha de Copas manda decapitar seres sem corpo – o que, no livro do reverendo, suscitaria um debate entre os reis e o carrasco régio quanto à impossibilidade lógica e física de se cortar a cabeça do Gato Chechire, uma vez que este tinha o condão de pairar resumido a uma cabeça sem corpo e, até, a um sorriso sem gato.[5]

.
.


 
.

.
         4. O Gato Chechire

 
         O sorridente Gato Chechire – assim chamado pela expressão inglesa que designa um sorriso alargado, aquele que o felino de Carroll utilizava, é, sem dúvida uma das figuras mais estranhas e até enigmáticas da obra de Lewis Carroll – e a que, na versão para o cinema, Disney menos entendeu ou, pelo menos, da qual deu uma versão sua que não deixa de ser decepcionante e até praticamente infeliz, imaginando o bichano como um animal às riscas azulados e cor de rosa, com uma cabeça que se solta do corpo, ao mesmo tempo que fala com um ar misterioso e afectado, pregando partidas à Rainha de Copas, de que Alice se torna injustamente acusada.

         Com este Gato risonho, parece-nos evidente que os estúdios Disney ficaram aquém do livro inspirador de Carroll. Que dizer então da personagem original que Disney assim desfigurou ou amesquinhou? Dizia o romancista Julian Barnes, ao saudar a edição francesa das obras completas do seu compatriota, que o Gato que ri, tal como o também bizarro Snark do mesmo escritor oitocentista, fica suspenso no ar ou no meio das ramagens duma árvore, “ao mesmo tempo presente e ausente, real e imaterial, sem parar um só momento de nos sorrir”.[6] Este sorriso, como a sua capacidade  o em se dissolver no ar, desaparecendo até dele só restar o sorriso – facto que muito intrigava Alice, pois esta observa que várias vezes vira “um gato sem sorriso, mas nunca  um sorriso sem gato”[7] – foi um  detalhe central do humor de Carroll que Disney não logrou fazer seu ou nele operar uma metamorfose condigna. Todo o comportamento do felino,  assim como as suas réplicas e partidas no jardim da Rainha de Copas – onde suscita o embaraço do Carrasco régio porque este não sabe como cumprir a ordem que a monarca lhe dera de decapitar o Gato Chechire, uma vez que se trata duma cabeça sem corpo (episódio que não foi  incluído na versão cinematográfica de Disney) – deriva dum mistério essencial, ao mesmo tempo muito inglês e bem carrolliano, o de ser um complexo exemplo de nonsense em acção. Se o tomarmos como metáfora de qualquer enigma ou elemento perturbador e inacessível ao nosso entendimento decifrador por habitar o território insondável dos sonhos, este Gato que sorri sem se entender o que ele quer significar com esse comportamento bizarro, reforçado pela sua capacidade de se dissolver no espaço, dele ficando apenas o sorriso (grin), tudo torna a sua relação  com Alice ainda mais difícíl de compreender, já que o podemos tomar como uma farsante que troça dela como uma testemunha que atravessa o sonho da jovem, vinda  doutro mundo – um emblema perfeito do absurdo, o absurdo de que são feitos os sonhos, como a vida e a literatura, que talvez não passem das três faces duma mesma realidade onde um felino subtil se passearia, fazendo perguntas inquietantes, dando respostas evasivas e recusando a lógica e a matemática de que o reverendo Dodgson, seu criador, era especialista, a menos que queiramos ver nele a impossível busca duma mente racionalista diante dum fenómeno tão absurdo como o sonho dos humanos. Quanto a Disney, parece-nos evidente que o seu americanismo entranhadamente behaviorista o impediu de captar o perfeito lado nonsensical deste Gato sorridente, pelo que o estropiou, fazendo dele um brincalhão apalhaçado que atrapalha Alice, irrita fortemente a Rainha de Copas e, por fim, se dissolve no puro vácuo onírico depois do mal que faz. Digamos, doutra maneira, que este gato está a mais na versão do desenho animado de Disney, embora ele seja central na narrativa de Carroll. Esta diferença torna impossível levar demasiado longe o nosso exercício de examinar as duas versões, a de 1865 e a de 1951, a britânica e a americana.
.
.
 




 

         5. O Coelho branco

        
O Coelho branco, que confunde Alice com a sua criada Mary Ann e teria a sua casa destruída pelos oscilações de estatura da jovem – no filme, o Dodo procura resolver o caso pegando fogo à casa onde está encurralada a jovem, facto que no livro é apenas aludido  –,  é, no original da história de Alice, em livro, um animal conspícuo e de ar britânico com o seu colete, relógio de bolso que consulta amiúde e um casaco de bom tecido, transformado por Disney em alucinado agente da Rainha, com uma libré – sugestão já presente num  desenho de Tenniel [8],  no qual o coelho traz um papel ao tribunal e usa da trombeta  como arauto que é – que remete para a simbologia das cartas de jogar, assim com o seu desvairado correr pelos cenários do jogo de críquete e o uso dum cornetim. As suas correrias pelos cenários de labirinto envolvente onde se passam as cenas finais do filme de Disney tornam-se uma espécie de provação para a rapariga que, no mundo das maravilhas, tenta segui-lo e do qual, por fim, tem de se defender, uma vez que o animal serve o sistema judicial que a tenta condenar por manifesta embirração que lhe vota a Rainha de Copas. O Coelho é, no fundo, o mais directo responsável pela descida de Alice ao mundo subterrâneo dos sonhos, onde tudo e todos, desde os animais às flores, às lagartas, e dos gatos à corte, a hostilizam, dela fazem troça e, por fim, a querem condenar em processo sumário. Este Coelho branco que foge de Alice, sem nunca lhe explicar porque é que está atrasado e porque consulta tanto o seu relógio, acabará por ser, entretanto, vítima duma partida cruel e inexplicável que lhe pregam os três participantes no chá de doidos presidido pelo Chapeleiro Louco, com a colaboração da Lebre de Março e a assistência passiva dum Arganaz que dorme. (a esta cena voltaremos adiante para a diferenciarmos da mesma merenda descrita por Carroll e desenhada por Tenniel).
.
 .


 
.
.

6. O chá dos doidos

 
São bastante diversos em estilo, ritmo narrativo e significado psicológico as duas versões do lanche na casa da Lebre de Março, a que Carroll narra e Tenniel ilustra ou o seu remake pelos estúdios Disney. O comportamento dos três convivas – o Chapeleiro, a Lebre e o sonolento Arganaz – obedece nos dois casos ao mesmo primado de hostilidade expresso pela recusa dos comensais em receberem Alice porque, alegadamente, na enorme mesa não haveria lugar para ela tomar chá com os demais: “No room! No room!” [9] gritam-lhe todos, no romance como no filme (repare-se que, dum modo geral e constante, todas as figuras que Alice encontra no País das Maravilhas a repelem, hostilizam ou, por fim, perseguem; o caso do Gato é distinto, na medida em que o felino paira acima de tudo e de todos, como um ser imparcial que transcendesse a acção do sonho).

Quase toda a narrativa do desenho animado de 1951 diverge de modo flagrante. Antes de mais, o relógio que o Chapeleiro consulta com ar preocupado por o achar a funcionar mal pertence, no filme, ao estabanado Coelho Branco, sendo sujeito a um tratamento ultrajante e destrutivo que ultrapassa tudo o que Carroll imaginara no seu texto: neste, o relógio fora apenas molhado numa chávena de chá, untado previamente com manteiga pela Lebre, enquanto que, na animação, o pobre instrumento de medição do tempo é objecto de um verdadeiro tratamento selvagem que mete geleia, açúcar e imersão em chá a ferver, ultrajes que rematam com uma fortíssima pancada que lhe vibra o dono da casa, desfazendo-o, e explicando depois que o relógio enlouquecera. Na verdade, depois de torturado pelos dois loucos da merenda, o relógio doirado do Coelho branco explodira. Também o bolo que é oferecido a Alice elo Capeleiro e pela Lebre, naquela “festa de desaniversário” (unbirthday party) solta-se-lhe das mãos e parte como um  foguete, explodindo no ar como fogo de artifício.

O ar alucinado do Chapeleiro durante todos estes ultrajes deixa desde logo adivinhar os maus-tratos que o relógio iria sofrer, desde coberto da referida manteiga a açúcar – com a recusa da mostarda que a Lebre lhe oferecera para concertar o aparelho –, tudo feito com uma perversa vontade de deixar totalmente destruído o objecto que, no filme, pertence ao Coelho branco. Uma inovação na cena do chá está na celebração do dia “não-aniversário” de Alice, cena de todo ausente no romance de Carroll. Uma das muitas canções do filme de Disney foi precisamente esta: “The Unbirthday Song” (A Canção do Não-aniversário), cantada por Alice, o Chapeleiro e a Lebre. Ao todo, o filme inclui vinte canções que dão musicalidade a muitos dos poemas que enxameiam o romance de Carroll, tal como “Who’s been painting my roses red?”,”The Caucus race” ou ainda “The Walrus and the Carpenter” (A Morsa e o Carpinteiro). Sobre esta última, convém sublinhar que se trata duma cena retirada da sequela de Alice, contada ali pelos irmãos Tweedledum e Tweedledee, com uma versão frenética da Morsa que desce ao fundo do mar para atrair as inocentes ostras a um restaurante sobre a praia, na qual o Carpinteiro, um personagem alucinado, prepara um molho que devia acompanhar os pobres lamelibrânquios. Este episódio é, aliás, um dos melhores exemplos de como os estúdios Disney tomaram uma estória e um poema do Trough the Looking-Glass e o ilustraram com uma desenvoltura imaginativa, muito cómica e com um fundo perverso, expresso na gula da Morsa, aqui dotada de um charuto que a acompanha mesmo quando desce ao lugar dos moluscos.

Por outro lado, o uso do chá, a maneira de o tomar e distribuir pelos comensais, assim como o pormenor surrealista de vermos uma chávena ser cortada ao meio sem que o líquido se derrame, comprovam a sugestão surrealista, assim como a intenção claramente devastadora daquele exercício de delírio malvado no qual o Chapeleiro, fazendo jus ao seu epíteto, se comporta como um doido varrido. Não se considere este chá inicial como um mero exercício de imaginação excessiva e agressiva, mas antes como um antegosto do comportamento opressivo da tirânica Rainha de Copas no seu jardim, bem como durante o jogo de críquete, sem esquecer, por fim, o apressado julgamento – “Primeiro a sentença, depois a decisão do júri”, insistira a Rainha no versão de Carroll – em torno das tartes que o Valete teria roubado, aquele processo de mau signo que levaria Alice a acordar. Na versão cinematográfica, a narrativa começa a tornar-se opressiva e própria dum pesadelo a partir do lanche, sem falar do mar encapelado resultante das lágrimas iniciais de Alice, da corrida dos náufragos sobreviventes a esse maremoto e, desde a cena do relógio martirizado, naquele preocupante começo da década de 50 nos Estados Unidos e no mundo, a Alice de Disney, apesar de seu alvo infantil, registava um evidente atmosfera de temor e terror, construindo-se num verdadeiro clímax crescente de tropelias, agressões, gritos, excesso e sentenças de morte decretadas pelos dos monarcas de Copas (no livro de Carroll, já que no versão de Disney, como se disse atrás, o reizinho é um homem minúsculo que não influi na acção nem tem lugar de juiz no processo em que Alice é envolvida). A América do Norte pós-rooseveltiana perdera nesse período doloroso, com actos como a condenação à morte dos esposos Rosenberg, nesse mesmo ano de 1951, as grandes esperanças das duas décadas anteriores. Os defeitos de Disney como homem, artista e cidadão têm sido sublinhados pelos seus biógrafos e até por uma recente ópera de Philip Glass. [10]

 

Monte Estoril, 11 de Fevereiro de 2013


João Medina

 
 

Bibliografia:

The Annotated Alice, incluindo Alice e a sua sequela, pref. e notas de Martin Gardner, Harmondsworth, Penguin Books, 1974, ilustr. com desenhos de John Tenniel.

Alice nos País das Maravilhas, trad. de Vera Azancot, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1977, ilustr. por John Denniel.

– Julian Barnes, “Alice au Pays de la Pléiade”, Le Nouvel Observateur, Paris, 31-V-1990, pp.59-61.

Oeuvres de Lewis Carroll, org. por Jean Gattégno, Paris, Gallimard, Col. La Pléiade, 1990.

– João Medina, Memórias do Gato que Ri, Lisboa, Livros Horizonte, 2002 (tendo na capa o Gato que sorri de John Tenniel). Os folhetins que serviram para esta edição em livro saíram semnalmente no Diário de Lisboa, de 14-I-1980 a 27-X-80, tendo como cabeçalho o desenho de Tenniel com Alice a falar com o Gato empoleirado numa árvore.

– João Medina, “Alice e a Rainha de Copas”, in Os meus Vícios, V.ª N-ª de Famalicão, 2011, pp. 135ss (com o desenho de J. Tenniel mostrando o Gato pairando acima dos Reis de Copas e do Carrasco).

– Walt Disney, Alice no País das Maravilhas, DVD de 71 minutos, falado em português, com legendas em várias línguas, s.d.

– Cristopher Finch, The Art of Walt Disney from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms, Nova Iorque, Harry N. Abrams, 1975, ilustr.

– Marc Eliot, Walt Disney: Hollywood Dark Prince, Londres, Andre Deutsch, 1995 (dando pouca atenção a Alice no País das Maravilhas, incidindo mais sobre o comportamento político e anti-sindical de Walt Disney os “Dez de Hollywood” perseguidos pela HUAC, p.177 e ss.)

– Neil Gabler, Walt Disney; The Triumph of the American Imagination, Nova Iorque, Alfred Knopf, 1996.

– Anthony Lane, “Wonderful world!”,  The New Yorker, 11-XII-2006, pp.57-75, com uma caricatura de Walt Disney por Gerald Sarfe, p. 66.

 

 











[1] Mary Blair nasceu em 1911 e faleceu em 1978, na Califórnia. Formada pela Escola de Arte de Los Angeles (1933), ingressou na MGM e, em 1940, nos estúdios Disney, colaborando como artista durante três décadas, tendo participado como encenadora e artista gráfica em filmes como Os Três Caballeros, Cinderella, Alice e Peter Pan, tendo deixado um obra relevante em filmes de animação. Participou ainda na Feira Mundial de Nova Iorque (1964-5), fez murais, decorou hotéis e participou em exposições como decoradora e artista.


[2] Christopher Finch, The Art of Walt Disney from Mickey Mouse to the Magic Kingdoms, Nova Iorque, Harry N. Abrams, 1975, p.117. Há duas imagens coloridas de Alice na p.119.


[3] Veja-se a monumental biografia escrita por Ian Gibson La Vida desaforada de Salvador Dalí,  Barcelona, Anagrama, 1998, ilustr., pp.551-3.


[4] Veja-se “Alice e a Rainha de Copas” no nosso livro Os meus Vícios, V.ª N.ª de Famalicão, Húmus, 2011, pp.131-5.


[5] Veja-se, na edição anotada por Martin Gardner deste romance, The Annotated Alice de Lewis Carrol, incluindo a sequela Through the Looking-Glass, Penguin Books, Harmondsworth, 1974, pp.115-117 (desenhos de John Tenniel).Quanto ao “sorriso sem gato”, vide pp. 91 (com o desenho respectivo de Tenniel, mostrando o sorriso do gato que entretanto fora desaparecendo). 


[6] Julian Barrnes, “Alice au pays de la Pléiade”. Nouvel Observateur, Paris, 31-V-1990, p. 61.


[7] Lewis Carroll, op. cit., ed. Penguin, p. 91 (com desenhos de Tenniel a representar o corpo evanescente e o riso que ficou).


[8] Cf. The Annotated Alice, ed. Penguin, p.146 (desenho de John Tenniel).Sobre este famoso artista, veja-se Frances Barzano, Sir John Tenniel, Londres, Art and Techniques, 1948, ilustr. (desenhos para Alice e para  Do outro Lado do Espelho, pp.57-70).


[9] The Annotated Alice, p.93.


[10] Recordemos as biografias recentes quanto a Walt Disney como artista, cidadão e como político conservador, do qual se chegou a alegar, malevolamente, que seria simpatizante de Hitler e anti-semita (cf. Marc Eliot, Hollywood‘s Black Prince, cit. na bibliografia); e a ópera de Philip Glass, recentemente estreada em Madrid, The Perfect American (2013), baseado num romance homónimo de Peter Stephan Jungk (2013).

Sem comentários:

Enviar um comentário