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M. C. Escher (1898-1972)
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Já aqui falámos de Umberto Eco. No
livro Confissões de um Jovem Escritor (Lisboa,
Livros Horizonte, 2012), o autor de O Nome da Rosa conta uma história de acasos e reencontros que é –
como diríamos? – muito ao estilo Malomil:
«Aqueles
que leram O Nome da Rosa sabem que
fala de um misterioso manuscrito, que este texto perdido é o segundo livro da Poética de Aristóteles, que as páginas
dele estão impregnadas de veneno e que é descrito (no capítulo “Sétimo Dia.
Noite”) desta forma: “Leu em voz alta a primeira página, depois parou, como se
não lhe interessasse saber mais nada, e folheou à pressa as páginas seguintes;
mas, depois de algumas folhas, encontrou uma resistência, porque sobre a margem
lateral superior, e ao longo do corte, as folhas estavam unidas umas às outras,
como acontece quando – humedecidas e deterioradas – a matéria do papel forma
uma espécie de glúten pegajoso”.
Escrevi estas linhas no final de 1979. Nos
anos seguintes, talvez porque depois de publicar O Nome da Rosa comecei a ter mais contacto com bibliotecários e
coleccionadores de livros (e certamente por ter mais dinheiro para gastar),
tornei-me um coleccionador de livros raros. Ao longo da minha vida, tinha
comprado alguns livros antigos, e tinha-o feito por puro acaso e apenas quando
eram muito baratos. Só nos últimos vinte e cinco anos é que me tornei um
coleccionador a sério – e “a sério” significa que temos de consultar catálogos
especializados e temos de escrever, para cada livro, uma ficha técnica,
incluindo o cotejo, informações históricas sobre as edições anteriores ou
subsequentes e uma descrição exacta do estado do nosso exemplar. Esta última
parte obriga-nos a usar um jargão técnico, a especificar se o livro está
amarelecido ou acastanhado, se tem manchas de humidade ou de sujidade, se o
miolo apresenta pontos de acidez, se há margens aparadas, rasuras, restauros,
cansaço, etc.
Um dia, enquanto vasculhava as
prateleiras mais altas da minha biblioteca, descobri um exemplar da Poética de Aristóteles, anotado por Antonio Riccoboni,
Pádua, 1587. Tinha-me esquecido completamente dele. O numeral 1000 estava
escrito a lápis na última página, o que significava que tinha comprado aquele
livro algures por mil liras (o que equivalem hoje em dia a cerca de cinquenta
cêntimos), provavelmente na década de 1950. Os meus catálogos diziam que era
uma segunda edição, não era especialmente raro, e havia um exemplar no Museu
Britânico. Mas eu estava feliz por o ter porque aparentemente era difícil de
encontrar e, além disso, o comentário de Riccoboni era menos conhecido e menos
frequentemente citado do que os de Robortello ou Castelvetro.
Assim, comecei a escrever a minha
descrição. Copiei o conteúdo da folha de rosto e descobri que a edição tinha um
apêndice intitulado “Ejusdem Ars Comica
ex Aristotele”, que afirmava apresentar um livro perdido de Aristóteles sobre
a comédia. Evidentemente, Riccoboni tinha tentado reconstruir o segundo livro
perdido da Poética. No entanto, este
não era um esforço invulgar, portanto prossegui, descrevendo a condição física
do volume. Foi então que tive uma experiência semelhante à de um certo
Zasetsky, descrito pelo neuropsicólogo soviético A. R. Luria. Zasetsky tinha
perdido parte do cérebro durante a Segunda Guerra Mundial e com ela a memória e
a fala, mas conservara a capacidade de escrever. A sua mão anotou imediatamente
todas as informações de que não se lembrava e, passo a passo, reconstruiu a sua
identidade lendo o que tinha escrito.
Alexander Romanovich Luria (1902-1977)
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Da mesma forma, eu estava a observar fria
e tecnicamente o livro, a elaborar a minha descrição, e subitamente percebi que
estava a reescrever O Nome da Rosa. A
única diferença era que, a partir da página 120, quando começa a Ars Comica, eram as margens inferiores
que estavam gravemente danificadas e não as superiores – mas tudo o resto era igual.
As páginas, progressivamente escurecidas e cobertas com manchas de humidade,
estavam coladas nos cantos e parecia que tinham sido untadas com uma substância
viscosa.
Eu tinha nas mãos, na forma impressa, o
manuscrito que havia descrito no meu romance. Tinha-o tido em minha casa
durante anos e anos, parado na minha estante.
Não era uma coincidência extraordinária,
nem sequer um milagre, Comprara o livro na minha juventude, folheara-o e
esquecera-me dele. Mas usando uma espécie de câmara interna, tinha fotografado
aquelas páginas e durante décadas a imagem das páginas envenenadas permaneceu
numa parte remota da minha alma, como se estivesse sepultada, até ao momento em
que reemergiu – não sei porquê – e eu acreditei que tinha inventado aquele
livro».
Texto simplesmente magnifico, a semiologia entendida como a ciência dos sinais, na sua ess~encia. Que falta faz a Ars Comica nos tristes dias que correm.
ResponderEliminarComo sempre não paro de me surprender em Malomil, espaço de ideias mil e apurado buon gusto.