Salazar
escreveu sobre si próprio, no prefácio do livro de entrevistas concedidas a
António Ferro em 1932: “Este homem que é governo, não queria ser governo. Foi
deputado: assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou”. A primeira
afirmação é duvidosa: Salazar receava a política e a governação, mas quem o
conheceu bem, nos anos 20, sabia da sua grande ambição de mandar. A segunda afirmação
é certa, mas o facto em causa, ocorrido em 1921, não dependeu da sua decisão nem
da sua vontade. Salazar não explicou a razão por que “nunca mais voltou” ao
parlamento republicano. O seu panegirista inglês F. C. C. Egerton, no livro Salazar Rebuilder of Portugal (1943),
encomendado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, arriscou como
justificação para tal acto que os “procedimentos do parlamento” eram, para
Salazar, “demasiado fúteis”. Teria sido mais exacto dizer que, para ele, o
parlamento era, em si mesmo, uma futilidade, já que o seu desejo profundo era chefiar
o governo de um rei absoluto ‒ como um dia confessou ao Cardeal Cerejeira. Mais
tarde foi fabricada uma lenda para sustentar a imagem de um Salazar horrorizado
pelas baixezas e violências que teria presenciado na Câmara dos Deputados, como
observou o insuspeito biógrafo Franco Nogueira, acrescentando: “O próprio
Oliveira Salazar, durante toda a sua carreira política, aprovou e mesmo
encorajou esta versão. Mas ela não corresponde à verdade histórica.”[1]
Durante
a 1.ª República, Salazar foi três vezes candidato a deputado do Centro Católico.
A primeira em 1919, por Viana do Castelo, saindo derrotado. Depois da sua
eleição, em 1921, e de uma única comparência no parlamento dessa breve
legislatura, não se recandidatou nas eleições de 1922. Foi pela terceira vez candidato
do partido católico em 1925, por Arganil, sendo novamente derrotado, para seu
provável alívio. No ano seguinte, com o triunfo do 28 de Maio, aceitou com bastante
relutância ser ministro das Finanças no frágil governo de Mendes Cabeçadas, que
durou uns dias. Rejeitou o convite de Gomes da Costa para a mesma pasta no segundo
governo da Ditadura Militar. Voltaria, muito pressionado e receoso, a aceitar a
pasta das Finanças em Abril de 1928. Não queria prejudicar a sua carreira de
catedrático coimbrão e receava que as coisas lhe corressem mal, segundo
confessou. Acabou por ficar, perdendo aquele “ar de lhe ser indiferente estar
ou ir” e ganhando definitivamente aquele ar de “estar”, até 1968.
O
Centro Católico elegeu em 10 de Julho de 1921 dois deputados (José Maria Braga
da Cruz, por Braga e António de Oliveira Salazar, por Guimarães). Um terceiro
deputado católico, António Lino Neto, por Portalegre, não teve o seu mandato validado.
As eleições tinham sido ganhas pelo Partido Liberal, rival do Partido
Democrático. Salazar, que até à última hora ansiou por não ser eleito, apenas
compareceu no dia de abertura, 25 de Julho, na sessão em que foram eleitas as
comissões de verificação de poderes, não tendo voltado ao parlamento até à
dissolução da Câmara de Deputados. Ele e vários outros deputados absentistas nunca
justificaram as faltas. Não obstante, em Agosto, o ausente Salazar foi eleito com
o máximo de votos para três comissões parlamentares (Orçamento, Estatística,
Instrução Superior) e nomeado pelo presidente da Câmara para uma quarta
comissão (Contas Públicas). Braga da Cruz foi mais assíduo de início e também
ele foi eleito para três comissões. Foi ele quem interveio em nome do Centro
Católico para saudar a eleição do presidente da mesa, dizendo que o seu partido
não estava ali para fazer política, deixando de comparecer na Câmara em meados
de Agosto. Durante esse mês foram discutidas várias propostas de lei e foram
apresentados pelo presidente do ministério e ministro das Finanças, Barros
Queirós, o programa de governo e o orçamento rectificado para 1921-1922.
Entretanto, o governo não conseguiu obter um empréstimo externo de 50 milhões
de dólares que tinha sido anunciado, o que o desacreditou irremediavelmente. Muitos
deputados faltavam ao parlamento e várias sessões tiveram de ser encerradas por
falta de quórum. Um novo ministério, chefiado pelo líder liberal António
Granjo, tomou posse a 30 de Agosto.
Era
este o cenário, um governo claudicante e um parlamento de maioria liberal desertado
por numerosos deputados, incluindo os dois católicos, quando em 4 de Setembro o
arcebispo de Évora, D. Manuel Mendes da Conceição Santos, a terminar as férias
nas termas da Quinta da Torre, em Entre-os-Rios, tomou a caneta para escrever
um cartão endereçado ao Doutor A. D’Oliveira Salazar, m.mo Lente de
Direito, Santa Comba Dão.
..
Diz
assim o cartão, que é inédito:
Torre
– Entre os Rios – 4-9-921
Meu
Caro Doutor
Quase
com o pé no estribo, venho importuná-lo ainda. Peço que não deixe de ir ao
parlamento: faz lá falta uma voz católica na câmara dos deputados, e a ausência
dos nossos é mal apreciada.
Será
um sacrifício para o meu Amigo; mas Deus lho pagará.
Creia-me
sempre
Seu muito Amigo
+ Manuel, Arcebispo
de Évora
D.
Manuel da Conceição Santos era então uma das figuras mais influentes da Igreja
em Portugal. Fora nomeado bispo de Portalegre em 1915 e, após ser recebido em
Roma por Bento XV, foi feito arcebispo de Évora em 1920. De convicções
monárquicas e irredutível opositor da Lei de Separação, esteve muito envolvido
na génese do Centro Católico, lidando pessoalmente com os seus militantes mais
destacados, entre eles Salazar, Cerejeira e Lino Neto. Durante a Grande Guerra,
defendeu perante o governo que capelães dessem assistência ao Corpo
Expedicionário Português.[2]
Obteve esse triunfo para a Igreja, mas que, de certo modo, também a associava à
República. Em 1927 convidará o célebre padre Mateo, conselheiro secreto do papa
que se encontrava em Portugal, a visitá-lo em Évora, aonde acorrerá também,
para o conhecer, o padre Cerejeira, vindo de Coimbra. [3] Mateo
deslocar-se-ia depois a Coimbra, onde esteve semanas hospedado na casa dos
Grilos com Salazar e Cerejeira. O conselheiro do papa veio a ter influência talvez
decisiva na nomeação deste como arcebispo de Mitilene em 1928, seguida logo em
1929 da sua nomeação como patriarca de Lisboa.
D. Manuel Mendes da Conceição Santos, arcebispo de Évora |
No
cartão enviado a Salazar a 4 de Setembro de 1921, o arcebispo de Évora pedia,
pois, ao deputado que ocupasse o seu lugar na Câmara dos Deputados, porque a
ausência dos deputados católicos era mal apreciada (principalmente pelos
governantes e deputados liberais, como parece óbvio). Insistia que o deputado fosse
lá, apesar do sacrifício que para ele isso significaria, mas Deus lhe pagaria. Salazar,
porém, não satisfez o pedido de Conceição Santos e demorou mais de duas semanas
a responder-lhe. Sobre o envelope do arcebispo, o destinatário anotou ter respondido
a 22 (ou 24?) de Setembro. Quando o fez, já os trabalhos da Câmara tinham sido
suspensos (17 de Setembro), não voltando a ser retomados. O governo de António
Granjo estava a ser alvo de grande contestação. Após a revolução do 19 de
Outubro, no decurso da qual António Granjo foi assassinado, a Câmara de
Deputados acabaria por ser dissolvida (6 de Novembro). Novas eleições seriam realizadas
em 1922.
Que
fez Salazar entre a primeira sessão parlamentar, ocorrida a 25 de Julho, e a
data de suspensão da Câmara, a 17 de Setembro? Sabemo-lo pela biografia de
Franco Nogueira com algum pormenor.[4] No
final da primeira sessão, em que apenas foram eleitas as comissões de
verificação de poderes destinadas a validar os mandatos, Salazar despediu-se do
seu colega Braga da Cruz, dizendo-lhe: “Ature-os por cá, que eu vou para
férias. Em Outubro talvez fale”. Regressou de imediato a Coimbra, tendo gasto
85$80 na sua estadia em Lisboa. Não renunciou ao mandato, portanto, e até fazia
tenções de falar em Outubro. A partir de então, Salazar gozou, se o termo se
aplica, umas longas férias, em que esteve quase sempre deprimido e várias vezes
adoentado. Primeiro em Coimbra, por onde se atardou, ocupando-se de pequenos afazeres,
como os assuntos da Misericórdia ou a Festa da Flor. Queria dedicar-se nesse
verão ao seu trabalho académico, mas não se sentiu com cabeça para isso. Foi então
para a sua casa no Vimieiro, junto a Santa Comba Dão. Era de perfeito desânimo
o seu estado de espírito, como ressalta das cartas que então escreveu à amiga
Glória Castanheira. Em Agosto, um colega de Coimbra, José Alberto dos Reis,
convidou-o para um passeio de automóvel de cinco dias pelo Alto Minho. A
companhia era agradável, mas Salazar não tinha entusiasmo por nada, sentia-se “morto”,
além de ter gasto um conto e duzentos com o passeio. Regressado a casa, continuou
deprimido. Desejou então ir animar-se para a praia da Figueira da Foz na
companhia de Glória e das suas joviais companheiras, mas a amiga já tinha partido
para as Pedras Salgadas. Preocupava-o profundamente a sua qualidade de
deputado: “Continua a magoar-me, a doer como um espinho que dia e noite tivesse
cravado em mim”, confessou a Glória. Encarava a política, a sua grande fonte de
ansiedade, como um perigo em que se metera e como uma ameaça ao seu equilíbrio
e integridade: “Sinto que a política me há-de fazer infeliz; parece até que já
começo a atolar-me na lama”. Neste estado anímico, em Setembro sofreria ainda uma
gripe e sucessivas enxaquecas que o prostraram.
A
resposta de Salazar ao arcebispo de Évora, que talvez repouse no arquivo do
arcebispado, deve alegar em sua defesa apenas os padecimentos físicos e
psíquicos, omitindo o temor da “lama” política, a alergia ao parlamentarismo e
a necessidade de cuidar da sua carreira professoral, que seriam diferentes
formas de confessar a sua incompetência para deputado católico. Do desejo de
férias na praia em gentil convivência feminina é que a resposta ao arcebispo
não tratou certamente. Em 22 de Setembro, com um governo caído, outro em queda
anunciada e o parlamento entretanto suspenso, Salazar já não sentiria tanta
culpabilidade por ter faltado como deputado e desobedecido como militante
católico ao arcebispo. Dali a pouco chegaria a noite sangrenta de 19 de Outubro,
que lhe deve ter causado calafrios e reforçado a sua alegação perante o
arcebispo.
Anos
depois, D. Manuel Mendes da Conceição Santos viria tornar-se no protagonista
inicial da chamada crise dos sinos (verão de 1929), que terminaria com a
demissão do ministro Mário de Figueiredo e a queda do governo do general
Vicente de Freitas. Daí colheria a antipatia do meio próximo de Salazar e até
críticas de figuras católicas, que o acusaram de imprudência e má convivência
com as autoridades da Ditadura, no seio das quais pontificavam muitos militares
republicanos conservadores. Essa história custar-lhe-ia, como hoje se sabe, o
lugar para que chegou a estar indigitado como patriarca de Lisboa, sendo
preterido a favor do amigo de Salazar, Cerejeira. A fama de inimigo da
República, de integrista e até de “intriguista” persegue Conceição Santos
através dos tempos, mas circunstâncias várias apontam para que o arcebispo de
Évora se tenha submetido, de facto, à filosofia do ralliement e procurado com boa-fé um modus vivendi com as autoridades republicanas, antes e depois do 28
de Maio. “Faz lá falta uma voz católica na Câmara dos Deputados, e a ausência
dos nossos é mal apreciada”.
José Barreto
Nada neste, fora isso, excelente post permite a conclusão inicial de que o facto de Salazar só ter assistido à sessão inaugural do Parlamento "não dependeu da sua decisão nem da sua vontade". A frase "ature-os você" é aliás lapidar a esse respeito.
ResponderEliminarObrigado por tudo o resto.
Cumps,
Buiça
Caro Buiça: na frase que cita, depois do "ature-os você", Salazar previa a hipótese de voltar ao parlamento em Outubro e, mesmo, de "falar", ou seja, intervir nos debates. Quer isto dizer que, se não tivesse havido uma revolução em 19 de Outubro, acontecimento que não dependeu da decisão nem da vontade de Salazar e que, como sabemos, conduziu à dissolução da Câmara, o deputado por Guimarães teria provavelmente voltado ao parlamento depois das suas férias de verão. Pelo menos, deixou claramente aberta essa possibilidade. Logo, o "nunca mais voltou" não dependeu da sua decisão nem da sua vontade. Além do mais, como Franco Nogueira também sublinha, Salazar não renunciou ao mandato.
ResponderEliminarJosé Barreto
Excelente post.
ResponderEliminarse imaginarmos como foi a 1ª república, é muito natural a aversão de salazar ao parlamento.
e á política
as constantes revoltas e golpes de estado, as prisões arbitrárias...(FORMIGA BRANCA.) muito piores do que no salazarismo, os assassinatos de figuras públicas.
tudo isto deixava qqer um deprimido
Enfim, são detalhes, mas de um "em Outubro talvez fale" até ao "fazia tenção de falar" vai alguma distância e muita conjectura.
ResponderEliminarO post ilustra bem o que sente um "tecnocrata" (como se chama agora), alguém com os conhecimentos técnicos e vontade de fazer alguma coisa pelo País, quando o inserem no decadente jogo político em todo o seu lodo de lutas de poder pelo poder. Ilustra bem como tiveram que o arrastar para alguma vez aceitar algum cargo desses. E o desprezo e desilusão por constatar o nível da lama em que teria de mergulhar para alguma vez chegar perto sequer de conseguir fazer alguma coisa de útil era, como é hoje, mais do que suficiente para virar as costas à lama sem sequer se preocupar em deixar uma renúncia por escrito. Afinal de contas alguém que hoje em dia nos seus 30 ou 40 anos, que tenha basta formação, largo conhecimento, experiência prática e toda a vontade de se aplicar pelo bem do país, o que julga que pensa ao chegar a um partido e ver que por uma ou outra razão há 5 mil inúteis à sua frente à espera de vez desde os 16 anos sem mais nada terem feito na vida?
Outra coisa completamente pacífica é um ministro da Propaganda perante as várias interpretações possíveis escolher a mais conveniente.
Mas se procuramos adivinhar a vontade de Salazar quando virou as costas ao parlamento, ela é facilmente compreensível na sua simplicidade: fugir daquela lama o mais rápido possível. Quanto a decisões, concordo que o impulso da sua vontade nesse momento não fez provavelmente parte de uma decisão estratégica, mas entre o tempo que teve para pensar e o passar da oportunidade para voltar nessa legislatura, o mais provável é ter chegado à conclusão de que haveria outro caminho, igualmente incerto mas sem dúvida mais do seu agrado. Que foi o que acabou por seguir.
Cumps,
Buiça