terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ortografia e despotismo.















‒ escreveu Fernando Pessoa, fiel à ortographia anterior a 1911, no seu manifesto O Interregno - Defeza e Justificação da Dictadura Militar, publicado em 1928. Tal afirmação mantém uma curiosa actualidade em 2013. Somos, de novo, o país das duas ortografias.

Na opinião do escritor, pensador e profeta, a nação estava então irremediavelmente dividida a meio. Metade do país era monárquica, metade republicana. Essas metades subdividiam-se, por sua vez, em outras duas: os monárquicos em constitucionalistas e miguelistas; os republicanos em radicais e conservadores. As duas ortografias usadas pela minoria da população que então sabia escrever, ou seja, a “ortografia latina” e “a do Governo Provisório”, eram, na opinião de Pessoa, a imagem da divisão nacional, procedendo a divisão ortográfica, segundo ele, das mesmas causas que a divisão política. De facto, os monárquicos e os conservadores tinham tendência a manter a ortografia que vinha de trás, os republicanos e os avançados a usar a nova, decretada pelo governo provisório da 1.ª República. Na extrema-esquerda, diga-se, surgiram então projectos de reforma ortográfica mais radicais do que a imposta pelo governo provisório. Jornais sindicalistas e anarquistas chegaram a ser impressos em ortografias “simplificadas” da sua lavra, fonetizadas em extremo.

Se por algum milagre de longevidade Pessoa ainda vivesse hoje, talvez já escrevesse: “Somos o país das duas ortografias”, com ortografia actualizada. Renegaria, porém, certamente a ortografia atualizada da última reforma. De facto, a ortografia que está, desde 2009, destinada a imperar no futuro mundo lusófono não foi aceite consensualmente e muitos teimam, como o autor destas linhas, em conservar a não reformada.

O país também continua dividido politicamente, ainda que não segundo as clivagens de outrora. A chamada questão monárquica praticamente desapareceu, excepto em algumas manifestações de saudosismo, depois da solução que os militares e Salazar lhe deram – a manutenção ditatorial da forma republicana. Quanto à democracia actual, ela é suficientemente consensual para que os seus vários descontentes se lhe resignem. Entre uma extrema-esquerda e uma extrema-direita inabaláveis, um sector do eleitorado de voto oscilatório assegura a alternância no poder, permitindo aquilo que a 1.ª República não conseguiu.

Das actuais divisões nacionais não tiraria porventura hoje Fernando Pessoa a mesma conclusão que em 1927, quando com as divisões nacionais de então justificou a necessidade de um Interregno, um Estado de transição comandado pelos militares – algo, no plano jurídico, como aquele interregno constitucional que viríamos a ter meio século depois, liderado pelo Movimento das Forças Armadas (e depois pelo Conselho da Revolução), que foi para todos efeitos um Estado de excepção ou de transição, se não lhe pudermos chamar ditadura, já que tendia para a anarquia. Tal como Pessoa defendera no pós-28 de Maio de 1926, foram os militares, embora com diferentes objectivos políticos, que comandaram o interregno constitucional pós-25 de Abril.

Paradoxalmente ou não, Fernando Pessoa observava, num manifesto escrito nos anos 30 contra a reforma ortográfica de 1911 e o Acordo Ortográfico luso-brasileiro de 1931, que a ortografia oficial “promulgada dictatorialmente” em 1911 pelo Governo Provisório da República fora “confirmada por tratado entre duas dictaduras”. Referia-se o escritor ao dito acordo de Abril de 1931, assinado pelo governo da Ditadura Militar portuguesa e pelo “governo provisório” (ditatorial) de Getúlio Vargas. Esse longo manuscrito de Pessoa ficou inédito até 1997, quando foi publicado, juntamente com outros escritos do autor, em A Língua Portuguesa (ed. Luísa Medeiros, Assírio e Alvim). Nesses textos, o poeta que em 1927 esperava do Estado comandado pelos militares uma solução para o problema da divisão nacional, de que a dupla ortografia seria um reflexo, vinha barafustar contra o Acordo Ortográfico de 1931 nestes precisos termos, de que respeitosamente conservo a ortografia:

 

O Estado não tem direito a compellir-me, em materia extranha ao Estado, a escrever numa ortographia que repugno, como não tem direito a impôr-me uma religião que não acceito.”

 


Dactiloscrito de Fernando Pessoa no verso de um telegrama da Companhia Portugueza Radio Marconi,
Biblioteca Nacional de Portugal.

Como o acordo de 1931 não chegou a ser posto em prática no Brasil, Fernando Pessoa julgou ver nisso o triunfo da sua posição. Mera ilusão: em 1943, sempre em ditadura getulina, o Brasil adoptou um Formulário Ortográfico que abandonava a antiga grafia “etimológica”, dando um primeiro passo efectivo para uma solução uniformizadora. Omito aqui uma série de episódios insuportavelmente aborrecidos, mas o que afirmo não é mentira: a uniformização luso-brasileira averbou uma vitória importante em 1943, uma segunda vitória nos anos 70 e uma terceira vitória, que se desejava definitiva, com o Acordo Ortográfico de 1990, que em 2009 entrou em vigor no Brasil e em Portugal e cuja aplicação definitiva está agora em período de “transição” em cada um dos países lusófonos.


Seria para Fernando Pessoa matéria estranha ao Estado a questão da aproximação ou uniformização ortográfica entre Brasil e Portugal? Não, não era. Sabemos que ele apoiava o princípio da uniformização ortográfica luso-brasileira, mas era contra a maneira como ela foi feita, à custa da ortografia chamada etimológica. Por outro lado, ele reconhecia ao Estado o direito de adoptar a ortografia oficial que bem entendesse e de a utilizar nas suas publicações e no ensino público, mas não o direito de a impor ao país. Ou seja, como a uniformização ortográfica não se fez em 1931 como ele desejava, Pessoa vinha pois reclamar o direito de cada um usar privadamente as regras que lhe aprouvesse – no fundo, o direito de Portugal ser um país de duas (ou mais) ortografias.

Se Pessoa tivesse vivido mais meio século, teria assistido a novas reformas ortográficas “despóticas”, tão ou mais destruidoras da grafia etimológica do que a de 1911, a última das quais aprovada e ratificada por uma série de democracias lusófonas.

No plano político, independentemente da sua “defeza da dictadura”, posição que manteve sempre no plano dos princípios, Pessoa reservava-se o direito de discordar dos chefes e das acções concretas dessa mesma ditadura, direito de que usou até à morte, tanto quanto a censura lho permitiu. Deixou-o bem claro no manifesto publicado em 1928 ou no artigo publicado em 1935 em defesa da Maçonaria, contra a lei do Estado Novo que a extinguiu. Nos escritos políticos deixados inéditos, sobretudo, ressalta o seu desacordo em relação a muito do que o poder fez em Portugal a partir de 1926, incluindo a instauração da censura, a Constituição de 1933 e o regime corporativo. Era defensor do puro liberalismo económico e adepto de um Estado pouco interventivo e respeitador da sagrada liberdade individual, nomeadamente da liberdade de criação intelectual e artística, porque “o Estado nada tem com o Espírito”. Queria, sem nisso ver contradição entre meios e fins, que uma ditadura militar transitória unificasse o país e instaurasse em Portugal um regime que assegurasse esses princípios liberais que ele pessoalmente defendia. Quando isso não se verificou, denunciou a “tirania” e o seu “tiraninho”.

Na questão ortográfica, Pessoa pensava e procedia de forma igual. Queria que o Estado promovesse a uniformização da ortografia do português, mas exigia que ela fosse feita com base na ortografia etimológica. Teria aplaudido de pé se a Ditadura Militar tivesse imposto o regresso à ortografia anterior a 1911, completando desse modo, no plano da língua escrita, a sua missão política de unificação do país. Como isso não aconteceu assim, denunciou o “despotismo” do Estado, continuou a escrever pela regra antiga e escreveu um manifesto em defesa da ortografia etimológica. Ou seja, preferiu o“país das duas ortografias”. Sempre que pôde, continuou a publicar com a ortografia antiga, mas nem todos os jornais e revistas lhe aceitavam esse capricho. Lá se viu forçado, por vezes, a escrever pela nova, que repugnava como uma “religião imposta”, lamentando que as empresas jornalísticas tivessem cedido ao Estado. Era isso o que mais lhe doía.
 
 
José Barreto




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