‒ escreveu Fernando Pessoa, fiel à
ortographia anterior a 1911, no seu manifesto O Interregno - Defeza e Justificação da Dictadura Militar, publicado
em 1928. Tal afirmação mantém uma curiosa actualidade em 2013. Somos, de novo,
o país das duas ortografias.
Na opinião do escritor, pensador e
profeta, a nação estava então irremediavelmente dividida a meio. Metade do país
era monárquica, metade republicana. Essas metades subdividiam-se, por sua vez,
em outras duas: os monárquicos em constitucionalistas e miguelistas; os
republicanos em radicais e conservadores. As duas ortografias usadas pela
minoria da população que então sabia escrever, ou seja, a “ortografia latina” e
“a do Governo Provisório”, eram, na opinião de Pessoa, a imagem da divisão
nacional, procedendo a divisão ortográfica, segundo ele, das mesmas causas que a
divisão política. De facto, os monárquicos e os conservadores tinham tendência
a manter a ortografia que vinha de trás, os republicanos e os avançados a usar
a nova, decretada pelo governo provisório da 1.ª República. Na extrema-esquerda,
diga-se, surgiram então projectos de reforma ortográfica mais radicais do que a
imposta pelo governo provisório. Jornais sindicalistas e anarquistas chegaram a
ser impressos em ortografias “simplificadas” da sua lavra, fonetizadas em
extremo.
Se por algum milagre de longevidade
Pessoa ainda vivesse hoje, talvez já escrevesse: “Somos o país das duas
ortografias”, com ortografia actualizada. Renegaria, porém, certamente a ortografia
atualizada da última reforma. De
facto, a ortografia que está, desde 2009, destinada a imperar no futuro mundo
lusófono não foi aceite consensualmente e muitos teimam, como o autor destas linhas,
em conservar a não reformada.
O país também continua dividido
politicamente, ainda que não segundo as clivagens de outrora. A chamada questão
monárquica praticamente desapareceu, excepto em algumas manifestações de
saudosismo, depois da solução que os militares e Salazar lhe deram – a
manutenção ditatorial da forma republicana. Quanto à democracia actual, ela é suficientemente
consensual para que os seus vários descontentes se lhe resignem. Entre uma extrema-esquerda
e uma extrema-direita inabaláveis, um sector do eleitorado de voto oscilatório
assegura a alternância no poder, permitindo aquilo que a 1.ª República não
conseguiu.
Das actuais divisões nacionais não
tiraria porventura hoje Fernando Pessoa a mesma conclusão que em 1927, quando com
as divisões nacionais de então justificou a necessidade de um Interregno, um
Estado de transição comandado pelos militares – algo, no plano jurídico, como
aquele interregno constitucional que viríamos a ter meio século depois,
liderado pelo Movimento das Forças Armadas (e depois pelo Conselho da Revolução),
que foi para todos efeitos um Estado de excepção ou de transição, se não lhe pudermos
chamar ditadura, já que tendia para a
anarquia. Tal como Pessoa defendera
no pós-28 de Maio de 1926, foram os militares, embora com diferentes objectivos
políticos, que comandaram o interregno constitucional pós-25 de Abril.
Paradoxalmente ou não, Fernando
Pessoa observava, num manifesto escrito nos anos 30 contra a reforma
ortográfica de 1911 e o Acordo Ortográfico luso-brasileiro de 1931, que a ortografia oficial “promulgada dictatorialmente” em
1911 pelo Governo Provisório da República fora “confirmada por tratado entre
duas dictaduras”. Referia-se
o escritor ao dito acordo de Abril de 1931, assinado pelo governo da Ditadura Militar
portuguesa e pelo “governo provisório” (ditatorial) de Getúlio Vargas. Esse
longo manuscrito de Pessoa ficou inédito até 1997, quando foi publicado,
juntamente com outros escritos do autor, em A
Língua Portuguesa (ed. Luísa Medeiros, Assírio e Alvim). Nesses textos, o
poeta que em 1927 esperava do Estado comandado pelos militares uma solução para
o problema da divisão nacional, de que a dupla ortografia seria um reflexo, vinha
barafustar contra o Acordo Ortográfico de 1931 nestes precisos termos, de que
respeitosamente conservo a ortografia:
“O Estado não tem direito a compellir-me, em materia extranha
ao Estado, a escrever numa ortographia que repugno, como não tem direito a impôr-me
uma religião que não acceito.”
Dactiloscrito de Fernando Pessoa no verso de um telegrama da Companhia Portugueza Radio Marconi,
Biblioteca Nacional de Portugal. |
Como o acordo de 1931 não chegou a ser
posto em prática no Brasil, Fernando Pessoa julgou ver nisso o triunfo da sua
posição. Mera ilusão: em 1943, sempre em ditadura getulina, o Brasil adoptou um
Formulário Ortográfico que abandonava
a antiga grafia “etimológica”, dando um primeiro passo efectivo para uma
solução uniformizadora. Omito aqui uma série de episódios insuportavelmente aborrecidos,
mas o que afirmo não é mentira: a uniformização luso-brasileira averbou uma
vitória importante em 1943, uma segunda vitória nos anos 70 e uma terceira
vitória, que se desejava definitiva, com o Acordo Ortográfico de 1990, que em
2009 entrou em vigor no Brasil e em Portugal e cuja aplicação definitiva está
agora em período de “transição” em cada um dos países lusófonos.
Seria para Fernando Pessoa matéria estranha ao Estado a
questão da aproximação ou uniformização ortográfica entre Brasil e Portugal? Não,
não era. Sabemos que ele apoiava o princípio da uniformização ortográfica
luso-brasileira, mas era contra a maneira como ela foi feita, à custa da ortografia
chamada etimológica. Por outro lado, ele reconhecia ao Estado o direito de
adoptar a ortografia oficial que bem entendesse e de a utilizar nas suas
publicações e no ensino público, mas não o direito de a impor ao país. Ou seja,
como a uniformização ortográfica não se fez em 1931 como ele desejava, Pessoa
vinha pois reclamar o direito de cada um usar privadamente as regras que lhe
aprouvesse – no fundo, o direito de Portugal ser um país de duas (ou mais)
ortografias.
Se Pessoa tivesse vivido mais meio século, teria
assistido a novas reformas ortográficas “despóticas”, tão ou mais destruidoras
da grafia etimológica do que a de 1911, a última das quais aprovada e ratificada
por uma série de democracias lusófonas.
No plano político, independentemente da sua “defeza da
dictadura”, posição que manteve sempre no plano dos princípios, Pessoa
reservava-se o direito de discordar dos chefes e das acções concretas dessa mesma
ditadura, direito de que usou até à morte, tanto quanto a censura lho permitiu.
Deixou-o bem claro no manifesto publicado em 1928 ou no artigo publicado em
1935 em defesa da Maçonaria, contra a lei do Estado Novo que a extinguiu. Nos
escritos políticos deixados inéditos, sobretudo, ressalta o seu desacordo em
relação a muito do que o poder fez em Portugal a partir de 1926, incluindo a instauração
da censura, a Constituição de 1933 e o regime corporativo. Era defensor do puro
liberalismo económico e adepto de um Estado pouco interventivo e respeitador da
sagrada liberdade individual, nomeadamente da liberdade de criação intelectual
e artística, porque “o Estado nada tem com o Espírito”. Queria, sem nisso ver
contradição entre meios e fins, que uma ditadura militar transitória unificasse
o país e instaurasse em Portugal um regime que assegurasse esses princípios liberais
que ele pessoalmente defendia. Quando isso não se verificou, denunciou a
“tirania” e o seu “tiraninho”.
Na
questão ortográfica, Pessoa pensava e procedia de forma igual. Queria que o
Estado promovesse a uniformização da ortografia do português, mas exigia que
ela fosse feita com base na ortografia etimológica. Teria aplaudido de pé se a
Ditadura Militar tivesse imposto o regresso à ortografia anterior a 1911,
completando desse modo, no plano da língua escrita, a sua missão política de
unificação do país. Como isso não aconteceu assim, denunciou o “despotismo” do
Estado, continuou a escrever pela regra antiga e escreveu um manifesto em
defesa da ortografia etimológica. Ou seja, preferiu o“país das duas
ortografias”. Sempre que pôde, continuou a publicar com a ortografia antiga,
mas nem todos os jornais e revistas lhe aceitavam esse capricho. Lá se viu
forçado, por vezes, a escrever pela nova, que repugnava como uma “religião
imposta”, lamentando que as empresas jornalísticas tivessem cedido ao Estado.
Era isso o que mais lhe doía.
José Barreto
MAIS QUE OPORTUNO :-)
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