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Os
livros que Adam Parfrey coordena e organiza, sobre as dimensões apocalípticas
da cultura contemporânea, são colectâneas de loucura insana, que buscam os
aspectos mais sombrios e horríveis do nosso tempo. Definitivamente, a evitar.
No 2º volume de Apocalypse Culture,
de Chad Hensley sobre Leilah Wendell, uma moça que gosta de adormecer ao lado
de cadáveres em decomposição. Enfim, uma tontita da cabeça – e até nem estou
certo de que tudo aquilo não passe de uma encenação estúpida e grotesca. Nesse
texto de Chad Hensley, sem se perceber bem porquê, publica-se uma imagem do Necrocard, cuja
autoria é atribuída a uma ordem secreta e oculta, a Neoist Alliance, que
seguramente entrará num dos próximos romances de José Rodrigues dos Santos.
Ao pesquisar na Internet, esse antro de
vícios e devassidão, descobri que o Necrocard e a Aliança Neoísta são obra de
outro taradito, Stewart Home, artista, escritor, cineasta, activista e historiador britânico, nascido em 1962. Basicamente, o cartãozito Necrocard consiste num testamento
vital sexual (ou sexual vital). Através dele, a pessoa declara, ou solicita,
que, após a morte, o seu cadáver possa ser usado e abusado por necrófilos,
indicando expressamente se prefere que o seu corpo seja alvo de brincadeiras hetero
ou homossexuais. É também necessário declarar expressamente que não se deseja que o cadáver
seja desmembrado, não vá algum utente entusiasmar-se. Isto não tem qualquer
valor jurídico, segundo creio, nem exime os eventuais abusadores da prática do
crime de profanação do cadáver, mas é matéria que me escapa… (e há um grande
jurista que sabe disto a fundo). Trata-se, portanto, e em resumo, de uma brincadeira de
mau-gosto, correspondendo à contemporânea ânsia de chocar e escandalizar os pensionistas e os assalariados por conta de outrem. Este
people imagina as coisas mais crazy para ter os tais warholianos quinze minutinhos de fama.
Acabam de o ter, sendo imortalizados no Malomil. Aliás, nem me parece que o Sr.
Stewart Home seja homem para se meter em aventuras necrófilas, é tudo fogo-de-vista.
Mas há outra coisa que, essa sim, já não
é brincadeira de mau gosto nem pirotecnia mediática. No Egipto, não há muito, falou-se
de uma ideia bizarra: estaria em curso uma proposta de lei que permitiria ao
marido ter relações sexuais com a mulher. Até aqui, está certo. Simplesmente,
no caso em apreço a mulher já estava morta. Explicando melhor: o marido poderia
ter relações carnais com o cadáver da mulher, até seis horas após o falecimento
desta. Depois disso, não. Mas, durante seis horas, com Necrocard ou sem
Necrocard, os homens egípcios podiam concretizar aquilo que os tontitos da
Aliança Neoísta só proclamam para provocar os espíritos. O Conselho Nacional
das Mulheres Egípcias protestou imediatamente, os representantes diplomáticos desse país desmentiram categoricamente. Mas lá foram dizendo que talvez
existisse uma proposta, uma ideia de um qualquer parlamentar extremista… E factos são factos:
em Maio de 2011, um clérigo islâmico de Marrocos, Zamzami Abdul Bari, afirmou que o casamento permanece válido após a morte. Portanto, não só o homem poderia
servir-se do cadáver da esposa como a patroa estava autorizada a manobrar o corpo
do defunto. Um liberalão, portanto, este Zamzami: o que dava ao homem, dava
à mulher. Resta saber a opinião da mulher do Sr. Zamzami, e para que quererá ela o cadáver do marido.
O que anda a passar-se no Egipto em
matéria de ofensa aos direitos das mulheres já foi falado aqui no Malomil a propósito da poligamia.
É grave, muito grave. Mais grave do que as idiotias do artista e performer Stewart Home. Esta controvérsia
sobre o comércio carnal post mortem é
só um caso, mais um caso, de ameaça ao estatuto das mulheres egípcias. Ao que
parece, querem regressar ao tempo das pirâmides. E, pior ainda, usar as múmias
como objectos sexuais. Em Timbuktu, os radicais islâmicos incendeiam bibliotecas com milhares de manuscritos. Manuscritos antigos, preciosos, únicos. No Egipto, querem usar os cadáveres das mulheres.
E, por cá, nós andamos entretidos com as parvoeiras de idiotas como Stewart Home e
a sua Aliança Neoísta. Além, claro, de perdermos tempo na leitura destes textos
esparvoados do Malomil.
António Araújo
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