Celebra-se hoje o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro e,
por isso, lembrei-me de contar mais uma história de reencontros, tão do agrado
do Malomil.
Há um livro
muito bom, excepcional, sobre o cancro, misto de história da luta que esta(s) doença(s)
motivaram e narrativa autobiográfica. É One in Three, de Adam Wishart. Ao que parece, os cancros – é um erro
continuarmos a falar de cancro, no singular – vão afectar, a breve trecho, não one in three mas two in three. Talvez as probabilidades de cura sejam maiores, mas a
taxa de incidência, segundo dizem, irá aumentar. Mas a história que vou contar
descobri-a noutro livro, que acabei de ler há umas semanas atrás. O Imperador de Todos os Males. Uma biografia do cancro, de Siddhartha Mukherjee. É uma obra notável, galardoada em 2011 com o Prémio Pulitzer. Até surgir este
livro, o que mais me fascinara foi o One
in Three; agora, reconheço que The
Emperor of All Maladies o supera largamente – na profundidade da investigação,
na dimensão do volume. Existe tradução portuguesa, sofrível. É um livro
fascinante, sobretudo porque tem uma arquitectura e uma lógica internas extraordinárias.
Não quero estragar o interesse daqueles que se abalançarem a ler uma obra de
mais de 700 páginas sobre os cancros, mas o livro, na parte final, tem um
capítulo que recupera tudo quanto se disse atrás, fazendo uma síntese, em
breves páginas, de milhares de anos de História. Em 500 a.C., a rainha persa
Atossa teve, provavelmente, cancro da mama. Em três páginas magistrais, Siddhartha
Mukherjee explica o que lhe teria acontecido se, em vez de o cancro ter
aparecido em 500 a.C., tivesse surgido na Idade Média, em meados do século XVIII,
nos tempos oitocentistas da mastectomia radical de Halsted, nos inícios do
século XX, nos anos 50 ou nos anos 70, 80 ou 90. Terapêuticas diferentes, todas
explicadas ao pormenor ao longo deste longo livro. Depois, o autor vai até
2050, prevendo o que aconteceria à rainha persa se vivesse nesse futuro, em
que, muito provavelmente, poderia sobreviver com o auxílio de fármacos
direccionados. Se isto nos deixa mais confortáveis, o mesmo se não dirá sobre o que vem logo no parágrafo seguinte: se, em vez de cancro da mama,
padecesse de cancro pancreático, por exemplo, ou certas formas mais invasivas de cancro da mama, o seu prognóstico de vida não
seria muito diferente daquele que teria há 2.500 anos atrás.
Mas a
história que quero contar é outra, muito diferente. Nos Estados Unidos, em
meados do século XX, foi lançada uma grande campanha de luta contra o cancro.
Escolheram como «mascote» - por assim dizer… - uma criança real, «Jimmy». Conhece o
Jimmy? (…) O Jimmy é qualquer uma dos
milhares de crianças com leucemia ou qualquer outra forma de cancro, nesta
nação ou em todo o mundo – dizia um panfleto de 1963, para obter donativos
para o «Fundo Jimmy». Numa história típica da América de Frank Capra ou de Norman
Rockwell, os norte-americanos comoveram-se com Jimmy. O «Fundo Jimmy» conseguiu arrecadar
uma quantia astronómica para a investigação e o combate à leucemia. Um apelo radiofónico de «Jimmy», emitido em 1948, quando tinha 12 anos, permitiu obter 200.000 dólares em donativos para a Children's Cancer Research Foundation, levando à criação do Jimmy Fund.
«Jimmy» era
o nome fictício de uma criança que em 1948 chegara ao Instituto
Oncológico de Boston, vindo do Maine com um diagnóstico de linfoma nos
intestinos. No Verão de 1997, uma mulher escreveu para o Instituto Oncológico Dana-Farber, o mesmo onde, quase 50 anos atrás, «Jimmy» estivera internado.
Julgava-se que, à semelhança de todas as outras crianças que estiveram com ele
naquela ala hospitalar, «Jimmy» já estaria morto. Ainda assim, houve falsos
avistamentos de «Jimmy» em vários pontos dos Estados Unidos, ao longo de
décadas, e o Instituto Dana-Farber já estava acostumado a receber cartas e
telefonemas de pessoas que diziam ter encontrado a lendária criança.
Sidney Farber (1903-1973)
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Durante
décadas, a família tinha ocultado a identidade e a sobrevivência de «Jimmy». Apenas
uma pessoa sabia da sua existência: Sidney Farber – o grande, o enorme médico Sidney Farber, a quem muitos milhares ou milhões de pessoas devem a vida, mesmo nunca
tendo ouvido falar do seu nome. Todos os invernos, os familiares de «Jimmy»
recebiam um postal de Natal de Farber, até que este faleceu, em 1973. A mulher
que escreveu em 1997 para o Instituto Dana-Farber dizia ser irmã de «Jimmy»,
assegurava que este se encontrava vivo e de boa saúde. Chamava-se Einar
Gustafson, era camionista no Maine e tinha três filhos. Todos os anos, ano após
ano, década após década, os irmãos Gustafson tinham contribuído para o «Fundo
Jimmy», sem revelarem que a criança cuja imagem lhe servia de símbolo era seu
irmão. O próprio Einar fazia donativos para o Fundo que tinha o seu rosto, o
rosto de uma criança que jogava beisebol – e que todos julgavam que não tinha
sequer chegado à idade adulta. Einar não queria que se soubesse que era
«Jimmy», para que não julgassem que se pretendia vangloriar por ser uma pop star na América ou um sobrevivente
do cancro. Mas ficou aliviado quando a irmã lhe contou que contactara o
Instituto Dana-Farber. Ela não queria que o irmão morresse sem que soubessem
que sobrevivera. Ele compreendeu que a irmã tinha razão.
No
Instituto Dana-Farber, por pouco a carta não era deitada para o lixo, pois eram
frequentes, como se disse, os relatos dos que afirmavam ter visto «Jimmy». Os médicos,
aliás, já tinham informado o Departamento de Relações Públicas do Instituto que
as hipóteses de sobrevivência de «Jimmy» eram nulas, pelo que não deveriam dar
ouvidos a mais histórias sobre ele. Fora uma criança; agora, era um símbolo, uma
efígie que servia de imagem de marca. Nada mais. Alguns pormenores da carta, no
entanto, revelavam coisas que só alguém muito próximo de «Jimmy». Por exemplo,
as longas viagens a Boston, que chegavam a durar dois dias, com «Jimmy» deitado
nas traseiras de uma carrinha, sempre equipado com o equipamento de um jogador
de beisebol. Uma funcionária do Instituto, Karen Cummings, compreendeu que
aquela carta não era igual às outras. Semanas mais tarde, marcou um encontro
com «Jimmy» numa área de serviço nos arredores de Boston. Einar Gustafson, a.k.a.
«Jimmy», apareceu com a mulher. Às seis da manhã de um dia gelado, nos
subúrbios de Boston, ambos ouviram, emocionados até às lágrimas, uma cassete de
1948, com uma gravação de «Jimmy» a cantar a sua canção preferida. Mais tarde,
Cummings foi de carro até ao Maine e, na casa de «Jimmy», este mostrou-lhe o
uniforme de beisebol que lhe tinha sido oferecido quando era uma
criança-símbolo da luta contra o cancro. Tinha-o guardado, durante décadas,
numa caixa de cartão no sótão da sua casa.
Em Maio de
1998, «Jimmy» regressou ao Hospital Pediátrico de Boston, onde tinha sido
acolhido por Sidney Farber. Entrou no edifício agora chamado «Fundo de Jimmy»,
visitou os quartos, percorreu os corredores. Tudo mudara. Ali estava Einar Gustafson,
cinquenta anos depois. Tinha, nessa altura, 63 anos de idade. Recordava a ala
oncológica infantil como um sítio com muitas cortinas. «Quando as crianças
estavam bem, as cortinas eram abertas. Mas em breve voltavam a ser fechadas e
não havia criança alguma quando se tornavam a abrir». Einar Gustafson
sobrevivera a tudo isso, quando eram nulas as hipóteses clínicas de
sobrevivência, como diziam os médicos do Instituto Dana-Farber, em 1997. Ainda hoje,
é impossível determinar se sobreviveu devido à cirurgia a que se sujeitou, à
quimioterapia a que se submeteu ou, pura e simplesmente, devido ao facto de o
seu cancro ter tido um comportamento benigo. Surpreendentemente benigno. Tão
espantosa como a sua sobrevivência é a modéstia de Sidney Farber, que poderia
ter erguido o triunfo de Jimmy sobre a morte como uma vitória da sua prática médica na luta
contra o cancro. Como espantosa é a modéstia de Einar Gustafson, que durante
décadas silenciou o facto de ter vencido a fatalidade das cortinas fechadas.
Einar Gustafson com os seus netos
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Gustafson
participaria em algumas campanhas do Fundo que tem o seu nome fictício. Morreu em 2001, com 65 anos de idade, de ataque cardíaco. O tempo que foi
famoso não durou muito: cerca de dois anos. Morreu relativamente novo,
ainda que muito mais velho do que todos julgavam ser possível. Quer em 1948, quer em 1997, ninguém acreditava que a sua
sobrevivência era possível. No entanto, foi possível, ainda que não saibamos como. Einar Gustafson manteve-se em silêncio esse tempo todo. E todos os natais recebia um cartão do médico que o salvara. Ao longo desses anos todos, o Fundo Jimmy obteve milhões e milhões de dólares, que foram investidos principalmente na investigação da quimioterapia para crianças. Na altura da morte de Einar Gustafson, a taxa de mortalidade do cancro infantil – da leucemia, em especial – baixara de 90 para 10%.
António Araújo
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