“Ser
judeu, ser alemão”:
o
diálogo epistolar entre Hannah Arendt e Karl Jaspers
(1926-1969)
por João Medina
Procuraremos
apresentar neste ensaio a longa, riquíssima e por vezes incandescente troca epistolar
entre a filósofa e politóloga judia Hannah Arendt (Hanover, 1906 – Nova Iorque,
1975) e o filósofo existencialista alemão Karl Jaspers (Oldenburg, Alemanha do
Noroeste, 1883 – Basileia, Suiça, 1969),[1]
iniciada quando a primeira, quase um quarto de século mais nova, passa a ser
orientada no seu doutoramento sobre O
Conceito de Amor em Santo Agostinho pelo antigo médico psiquiátrico passado
para o domínio dos “Amigos do Saber”, professor em Heidelberga, correspondência
que sofrerá uma interrupção ao exilar-se a sua antiga aluna judia, primeiro em
França (1933) e, depois (1941), nos Estados Unidos da América do Norte, sendo
retomada quando ambos os expatriados se voltarem a cartear e até se encontrarem
de novo, pessoalmente, na Suíça (1961), ao visitar Hannah o seu antigo mestre,
agora em Basileia, em 1961, na companhia do seu segundo marido, o filósofo
marxista heterodoxo Heinrich Blücher, [2] o qual, tal como Gertrud Mayer, a mulher
judia do alemão, terá intervenções neste acervo de missivas trocadas.
E
se, a princípio, como seria natural, a jovem Arendt se dirige ao seu mestre
como “caro professor Jaspers” e este a ela com um cerimonioso “querida sr.ª Arendt”, a pouco e pouco a
assiduidade dos contactos, a progressiva consonância das duas mentes em tantos aspectos crescentemente
próximas e, sobretudo, a forte e cada
vez mais consolidada amizade, sólida estima mútua e naturais afinidades
electivas e identificação humana e intelectual entre ambos tornariam amigos
íntimos, sobretudo a partir da “catástrofe alemã” de 1933 a 1945 – o termo seria dado a um livro famoso de
Meinecke, publicado em 1946, no mesmo ano em que Jaspers dera à estampa a sua
reflexão sobre A Questão da Culpa –, embora, por parte da exilada nos Estrados
Unidos, o seu velho mestre continuasse a ser tratado, com alguma ironia
enternecida, por “lieber Verehrtester” (algo como “estimado querido”) ou,
apenas, com um “querido sr. Jaspers”, havendo ainda, por via do primeiro
casamento de Hannah, cartas a ela dirigidas com tratamento de “querida sr.ª
Stern” (o esposo era então Günther Stern, de que se divorciara em 1937,
casando-se então com Heinrich Blücher em
1940), depois de o ter tratado algumas vezes, apenas por “querido Karl
Jaspers”, e o filósofo a ela por
“querida Hannah Arendt”, fórmula que se manteria estável a partir de 1945,
embora, uma vez mais a antiga pupila lhe chamasse, de novo, “lieber Verehrtester”, como em 9-VII-1946, carta 42,
p.47), expressão que ficaria invariável.
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John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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Dois
Noés após a provação do dilúvio
Logo
após o final do nazismo e o regresso da democracia à Alemanha, Arendt
utilizaria uma imagem bíblica para recordar o período nefasto do nazismo,
chamando-lhe “dilúvio” (carta 59, de 30-VI-1947, p. 91), expressão que, na sua
resposta, Jaspers desenvolveria por concordar com a metáfora:
“Tem
razão quando se refere ao passado como dilúvio. Esse deve ser o nosso ponto de
referência. Mas algo emerge do dilúvio. A vida continua. E devemos pelo menos
buscar a estrela que nos guia; algo como a ideia duma ordem mundial, mas uma
que se mantenha influenciada pela transcendência e não nos leve à banalidade
duma organização, uma lei racional para cada um e todos os casos, para a
a-historicidade dum pretenso paraíso. Sem os judeus não se pode trilhar esse
caminho.” (carta 60, de 20-VII-1947, p. 95). De facto, a imagem destes dois
sobreviventes em diálogo permanente acerca do que se passou de
inexplicavelmente bárbaro e atroz na terra que fora a de ambos – e de onde os
dois se expatriaram, ainda que de maneira diversa – transformaria estes dois
grandes intelectuais alemães em verdadeiros Noés dum horrendo Dilúvio sem
precedentes: esta imagem tão apropriada para definir o fardo moral e
intelectual dos dois correspondentes nascia em 1947, um ano depois de Jaspers
ter publicado a sua interrogação ética, política sobre o sentido da catástrofe
ocorrida na Alemanha, a obra Die Schuldfrage
(que em francês e inglês seria traduzida antes como A culpabilidade alemã).[3]
E
como esta tinha tido como uma das duas raízes mais negras o massacre dos judeus,
a “solução final da questão judaica”, era natural que fosse em torno dela – e
da dicotomia “ser judeu, ser alemão” –
que o essencial do diálogo destes dois patriarcas bíblicos, destes dois
novos Noés se travasse como um verdadeiro e obsessivo Leitmotiv a todo o momento presente em tudo quanto pensavam e se
escreviam nas suas cartas, que representam, no período pós-1945, nada menos do
que 665 páginas, ou seja, da carta 30
(Outubro de 1945) à peça 433 (telegrama expedido de Basileia por Gertrud Jaspers,
de 26-II-1969, a Arendt, a informar que
o filósofo morrera), com apenas 29 missivas trocadas entre 1929 e 1938, altura
em que o carteio se interrompe até 1947. Na edição americana desta
correspondência, por nós utilizada, encerra-se a troca de missivas com o
discurso post-mortem que, em 4 de
Março desse ano, Arendt faria na homenagem pública, na universidade de
Basileia, em memória do amigo falecido, falando dele como “uma fusão de
liberdade, razão e comunicação”, como
uma vida que realizara esta simbiose de forma exemplar, como uma verdadeira
“trindade” que fizera dele, após 1945, a “consciência da Alemanha”, não sendo
um mera coincidência que aquela consciência e aquele homem tivessem residido na
Suíça e numa cidade que era “uma espécie de polis”,
tendo tido o prazer de receber desta república uma cidadania que lhe dava a
satisfação de, pela primeira vez, podia estar de acordo com um estado.[4]
Não utilizou Arendt, neste belo discurso de politóloga, a imagem do dilúvio e
do patriarca Noé que leva consigo o essencial dos que sobreviveram ao naufrágio
para, em nome da Aliança expressa no arco-íris que se ergueu, depois de 1945,
fazer dali, daquele pequenino estado sem ambições, o seu Ararat de homem de
esperança europeia e universal. A verdade é que, acrescentava a pensadora
judia, cidadania e nacionalidade não precisavam de coincidir, uma ideia que era
cara a esta expatriada permanente, que desde 1933 a 1951 (pois só neste ano
recebeu a cidadania a norte-americana, nesse mesmo ano em que publicava a seu opus magnum, o estudo Origens do Totalitarismo), vivera o
drama e a solidão moral de ser uma apátrida, expulsa da Alemanha e ter tido a
sua cidadania germânica confiscada pelo Behemoth nazi.
Este
diálogo é assim, sem dúvida, um dos mais ricos e esclarecedores do século
passado, não só pelas ideias nele presentes como até pelas descidas ao
quotidiano e referências aos problemas vitais de cada um dos interlocutores,
com reflexões de enorme interesse sobre grandes figuras passadas ou
contemporâneas da cultura germânica (Lessing, Kant, Hegel, Schelling, Goethe,
Nietzsche, Max Weber, Thomas Mann, H. Broch, Heidegger [5],
Husserl, Walter Benjamin, Theodor Adorno, E. R. Curtius, Hans Jonas, Gadamer,
Gerschom Scholem, etc.) e figuras políticas desse século tão trágico (Hitler,
Himmler, Eichmann, Joseph McCarthy, De Gaulle, Dean Acheson, George Marshall,
Estaline, Malenkov, Eisenhower, Nixon, John Kennedy, Lyndon Johnson, João
XXIII, Adenauer, Ben Gurion, etc.) e ambientes ou locais onde ambos estiveram ou
visitaram (os campos de concentração, Jerusalém durante o processo Eichmann,
Heidelberg, Boston, Berlim, Princeton e as suas universidades, etc.) ou outros
vultos cimeiros do pensamento ocidental (Platão, Hobbes, Eckhart, Nicolau de
Cusa, Aristóteles, Kierkegaard, Marx, etc.), ou ainda homens e mulheres
relevantes nesse mesmo período (Vercors, Camus, Sartre, Hochhuth, Augstein,
Sigrid Undset, Lasky, Mary McCarthy [6],
etc.), sem esquecer certos acontecimentos (ponte aérea de apoio a Berlim
ocidental em 1961, crise dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, macartismo,
guerras coloniais, problema da intervenção
americana no Vietname, lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, etc.)
e tópicos fundamentais do séc. XX
(ser judeu, ser alemão, o carácter alemão, o americanismo, a questão negra, o
anti-semitismo, o mal absoluto, a Resistência francesa, a União Soviética, a
revolta húngara de 1956, as revistas The
New Yorker e Der Spiegel, a ONU, o sionismo, etc.). De todos estes tópicos
vamos apenas destacar um, a especial relação entre ser judeu e ser alemão,
drama vivido por Arendt e problema central ao qual Jaspers dedicou cuidadosa
atenção.
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John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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O
que é um alemão?
Em 1954, Jaspers escreve: “O que é um
alemão? pergunto eu. Ou não sei ou terei de escrever livros inteiros para poder
responder. De qualquer modo, é algo que nos une.” (carta 159, de Basileia,
25-VIIII-1954, p.246). Esta questão vinha de longe e atravessara em larga
medida a problemática inicial da própria Arendt, levando-a precisamente, ante o
crescente engrossar da maré negra anti-semita dos anos 20 e 30 na Alemanha, a
esboçar um estudo sobre Rahel Varnhagen (1771-1831), [7]
que só em 1957 seria editado na Inglaterra, acerca das diversas posições que um
judeu podia adoptar em relação a uma sociedade que, como no caso desta célebre
animadora dum salão romântico frequentado por Heine, Hegel e outros vultos
cimeiros da germanidade, compreendia que havia um mal-estar do povo da Aliança
diante duma nação que lhe recusava a identificação nacional e a plena
assimilação do germanismo, relegando-a para a total marginalidade, sobretudo
desde a “Noite de Cristal” de 1938 – o que já tivera começo de realização
jurídica com as leis racistas de Nuremberga, de 1935 –, até que, mais tarde,
com a “solução final da questão judaica”, o Behemoth hitleriano a transformaria
em sub-homens (Untermenschen) ou
não-seres, portanto povo destinado à exclusão e à aniquilação física completa,
a Shoah. Por outras palavras, Arendt, que, quando jovem, nunca se sentira diferente
dos demais concidadãos alemães, dar-se-ia conta, com o crescimento do
anti-semitismo e o triunfo do movimento nazi, tornado III Reich desde começos
de 1933, Estado totalitário racista, que a alternativa, já presente no séc.
XIX, que ao judeu era oferecida – ou ser pária consciente ou arrivista apostado
em sobreviver a todo o custo para ser aceite numa sociedade que, no fundo, não
tolerava o judeu –, levantava agora, com a indiferença das nações democráticas,
desde o Verão de 1938 (conferência de Evian e incapacidade ali manifestada de
dar um estatuto aos judeus alemães privados de cidadania e, nessa medida,
condenados ao massacre futuro), um drama insolúvel: não se podia ser judeu e alemão.
Agora, passado o Dilúvio, paralisadas
as câmaras de gás e apagados os fornos de Auschwitz, consumado que estava a
Shoah depois de ter dizimado seis milhões de vítimas, Arendt e Jaspers podiam
debater a questão da culpabilidade alemã e das relações entre a condição
judaica e a cidadania germânica. Para o filósofo cristão, o judeu definia-se
pelos seguintes vectores essenciais: a religião bíblica, a ideia de Deus, a
Aliança : era isto, sublinhava Jaspers, que tornara o judeu independente de
toda a política e até da Palestina (como então se dizia: hoje diríamos Israel), até porque esta, afinal, era
algo de transitório na idade do pensamento nacional, acrescentando – e este
detalhe não podia deixar de sensibilizar a cada vez menos sionista e agnóstica
Arendt, progressivamente afastada do sonho de Theodor Herzl – que a questão dum
território judaico podia ser um “perigo potencial para a essência da existência
judaica” (carta 60, de 26-VII-1947, p. 94), porque o arriscava a torná-lo uma
nação e nada mais (p. 95). E acrescenta ainda, depois de lembrar que a sua
mulher era judia, [8]
que a presença dos judeus era tal que algo de inestimável se perderia se não
houvesse mais judeus (loc. cit.). E, de novo falando do estado judeu, lembra
que seria deplorável reduzir o judeu à a Palestina, o que equivaleria a
limitá-lo a uma mera nação entre as nações e a perder-se o judaísmo (id.). Qual
seria, então, a solução para os judeus? Seria, garante Jaspers a Arendt,
“desejar a Palestina mas não ir para lá, já que a tarefa (dos judeus) é viver
entre todas as nações do mundo, com elas e contra elas enquanto se sentirem
capazes de permanecerem povos e nada mais.” (id.). Nada podia agradar mais à
“pós-sionista” – somos nós que inventamos ad
hoc este termo – que Arendt entretanto se tornara. Na sua resposta a esta
carta, a politóloga mostrar-se-ia, de facto, de acordo com as ideias do seu
velho amigo e mestre (carta 61, de 4-IX-1947, maxime pp. 97-9).
Nesta nova carta que lhe dirige como
resposta, Arendt faz um ponto de situação no qual sintetiza a sua evolução
desde a altura em que fora colaboradora de organizações sionistas no período do
exílio francês, até que se fixara de vez nos Estados Unidos. [9] Agora, para a politóloga que está já a
escrever o seu opus magnum sobre o
anti-semitismo e o totalitarismo, Arendt sente-se como uma judia completamente
independente do judaísmo como religião, como diz mas apesar de tudo judia,
explicitando que o sionismo fora a única tentativa para uma assimilação
completa dos judeus num estado e não apenas uma assimilação da cultura europeia
por eles, sendo os discípulos de Herzl os únicos que tinham abandonado a ideia
de povo eleito, o que levara a uma total alteração do carácter nacional judaico
e a uma esforço sério de construção duma ordem social nova na qual os elementos
utópicos tolstoianos tinham sido removidos (p. 98). E garantia que os judeus
que tinham feito Israel se consideravam fartos da ideia de “povo eleito”, ao
mesmo tempo que este novo país desconfiava das demais nações, em especial da
Alemanha, pela qual sentia especial desconfiança (p. 99). Por detrás desta
atitude receava Arendt que houvesse um perigo, uma ausência completa de crença
em Deus ou em qualquer ideologia e uma dependência nacional “de longe”, a
partir dos Estados Unidos, da judiaria americana (idem). Nestes pontos como em
tantos mais, a consonância dos seus pontos de vista com os do seu antigo mestre
são notáveis e constantes. O caso Eichmann, a sua prisão e rapto na Argentina,
ocorrido em 11 de Maio de 1960, o seu julgamento em Israel e a sua condenação à
morte, em 31 de Maio de 1962, levariam
ainda mais longe esta similitude ou convergência de postura metafísica e
espiritual em relação a alguns pontos centrais do problema judeu e da Shoah que
sobre esse povo se abatera.[10]
John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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A culpa alemã e o mal radical
Arendt
recebe o volume de Jaspers sobre a culpabilidade alemã no Verão de 1946 e logo
escreve ao seu antigo mestre uma longa apreciação, começando por se afirmar de
acordo com o que ali se escrevia (carta 43, de 17-VIII-1946, pp. 51-56).
A sua discordância de pormenor tem a ver com a maneira como este livro de
Jaspers apreciava as reparações pedidas pelos judeus em relação aos crimes
nazis e até quanto a ter havido um crime especificamente alemão: Arendt observa
que, doravante, todo o judeu, vivesse onde vivesse, devia estar habilitado a
ter uma cidadania alemã como forma de reparação pelo esbulho brutal da
nacionalidade a partir da instauração do regime hitleriano, sem deixar de ser
judeu (p. 53), acrescentado:
“A
divisão nazi entre super-homens alemães e judeus menos-do-que-humanos fez de
ambos monstros. Nós alemães não escaparemos a esta situação inumana até que
tentemos ajudá-los a escaparem à vossa. O passo prático mais essencial nesta
direcção seria para os judeus o fecho dos campos de concentração (ou campos de
internamento) como o mais importante pedido político de todos. É evidente que
esta questão é de importância básica. (...). A sua definição de política nazi
como um crime (“culpa criminal”) parece-me questionável. Os crimes nazis, para
mim, fizeram explodir os limites da lei; e é precisamente isto que faz a sua
monstruosidade. (...). Ou seja, esta culpa, em contraste com a culpa criminal,
excede e destrói todos e quaisquer sistemas legais. É por isso que os nazis em Nuremberga
se mostravam tão presumidos. Eles sabiam-no, claro. E tal como é inumana a sua
culpa, tal é também a inocência das suas vítimas. Os seres humanos não podem
estar tão inocentes como eles estavam diante das câmaras de gás (o mais
repulsivo usurário era tão inocente como uma criança recém-nascida porque
nenhum crime merece tal castigo). Não estamos pura e simplesmente equipados
para lidar, num plano humano e político, com uma culpa que está para além do
bem e da virtude. Foi este o abismo que abriram diante de nós os nazis logo em
1933 (...) e no qual finalmente caímos. Não sei se alguma vez sairemos dele,
até porque, agora, os alemães têm um fardo de centenas de milhares de pessoas
que não podem ser adequadamente punidas no sistema legal actual; e nós judeus
suportamos o fardo de milhões de inocentes, de tal modo que, hoje, cada judeu
vivo pode ver-se a si mesmo como a inocência personificada. Por outro lado,
parece-me que aquilo a que chama culpa metafísica contém não só o «absoluto»,
no qual nenhum juiz terrestre pode doravante ser reconhecido, mas também aquela
solidariedade que é a base política da república (e que Clemenceau exprimiu
nestas palavras: «O assunto dum só é o assunto de todos»” (p. 54).
Jaspers
divergiu destas opiniões da sua antiga aluna, observando que a “grandeza e a
“satânico” dos crimes nazis eram apropriadas para a culpa ante o que tinham
perpetrado, de 1933 a 1945, porque não havia afinal, nada de “demoníaco” em
Hitler, pelo que “devíamos ver em todas estas coisas apenas total banalidade”,
sublinhando que “o crime nazi é propriamente um assunto para a psicologia e a
sociologia, para a psicopatologia e para a jurisprudência apenas.” (carta 46, de 19-X-1946, p. 62). Esta redução do
alegado satanismo nazi à mera dimensão da mais horrível banalidade teria um
efeito surpreendente no juízo crítico e no pensamento político de Arendt quando
esta, mais de década e meia depois, fosse assistir em Jerusalém ao julgamento
de Eichmann, retomando então a argumentação de Jaspers, na carta acabada de
citar, num importante texto que se chamaria O
Julgamento de Eichmann em Jerusalém. Relatório sobre a banalidade do mal.[11]
Ao
publicar, em 1951, o seu magno estudo sobre o totalitarismo e o anti-semitismo
– The Origins of Totalitarianism, que
em português seria traduzido, em 1978, com o título arbitrário de O Sistema Totalitário [12] –,
Arendt esforçava-se por associar a formação do sentimento anti-semita com o
massacres nazis e com os sistemas totalitários que tinha vigorado na mesma
centúria, tanto na URSS como na Alemanha nazi, ao mesmo tempo que procurava
mostrar que o Reich guilhermino não era antecessor da Shoah, dando desta a
imagem duma realidade sui generis, na
medida em que a visão do mundo subjacente ao ódio hitleriano ao judeu
ultrapassava em radicalidade tudo o que anteriormente fora tentado como negação
da existência do povo da Aliança e a sua completa redução a um grupo inerme de
párias, pronto a ser aniquilado pelas indústrias da morte congeminadas pelos
exterminadores das SS, ainda que nesse magma genocidário fosse possível
reencontrar, amalgamados numa síntese nova e diferente, alguns dos elementos
próprios que, tanto na Alemanha como no resto da Europa de leste (e mesmo em
França), derivavam do imperialismo, do racismo ou do despotismo, erguidos agora
a uma potência devastadora, aquela que presidiu à preparação, implementação e
execução de massacres de tipo industrial sem precedentes na história anterior,
tanto pela magnitude demográfica envolvida no tocante às vítimas como nos
métodos, tecnologia e maquinismos práticos de aniquilação, de que Auschwitz,
verdadeiro anus mundi sem
precedentes, ficaria para sempre como o exemplo emblemático mais ignominiosamente infame, como um mal radical [13].
A França do caso Dreyfus estivera muito mais próxima do processo que viria a
ser a Shoah, posta em marcha desde 1938, com o ensaio geral do massacre que foi
a “Noite de Cristal”, assim como, nessa deriva fatídica para o genocídio,
também a conferência sobre os apátridas, realizada no verão desse ano em Evian,
não tivesse podido chegar a quaisquer resultados no plano da cooperação
internacional que salvassem os judeus da catástrofe iminente. Deste modo
imparável se entrava, doravante, na zona negra do “fim dos direitos do homem”
na qual todos os judeus alemães, tornados apátridas, estavam entregues, sem
defesa alguma ou protecção de qualquer instância nacional ou internacional
possível, às garras do Baal nazi, faltando apenas programar e racionalizar um
plano de extermínio sistemático e deveras definitivo
– que receberia em começos de 1942 (conferência de Wannsee) o nome adequado de
“solução final da questão judaica” (Endlösung
der Judenfrage), e que tinha tido, aliás, execução sistemática com o início
da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, com a conquista do território soviético
e da Europa de Leste a partir de 1941.[14]
John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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O
caso Eichmann e o significado do seu julgamento
Coube, em suma, ao regime hitleriano dar a
este novo anti-semitismo “científico” um carácter sistemático, obsessivo e
ferreamente racionalizado por técnicos alemães vindos de diversos campos de
especialidade (demografia, geopolítica, economia, direito, tecnologia
industrial, etc.).[15]
Foi, deste modo, como política claramente assumida e organizada como negação
radical do judeu que se levou a cabo a Shoah.
A omnipotência do Behemoth[16]
nazi, o governo pelo fiat, a redução
do Estado e da burocracia governamental e de todo o direito e ordenamento
jurídico a meros instrumentos dóceis de um bando político “nihilista” (a
expressão era de Hermann Rauschning)[17],
apostado em tudo fazer, ultrapassando as leis, a moral e os costumes existentes
até ali, empolgaria toda a Alemanha numa tarefa monstruosa e sem precedentes
conhecidos. Daí que este mal radical imposto pelo Sistema totalitário tivesse o
seu complemento e remate no estudo que Arendt faria, para a revista The New Yorker, a pedido do seu director
William Shawn, em 1961, ao assistir no tribunal de Jerusalém ao grande processo
que Israel moveu ao dirigente SS chamado Adolf Eichmann (Solingen, 1906 –
Ramla, Israel, 1962), raptado na Argentina em 1960 – um dos temas das cartas
escritas a Jaspers, como detidamente vamos ver
– e, depois, transformado em livro (1963) que tanto escandalizou alguns
intelectuais judeu como Gershom Scholem e Hans Jonas,[18]
obra que teve êxito retumbante, com 260.000 exemplares vendidos em pouco tempo.
A
dezena de cartas trocadas entre Jaspers e Arendt sobre este processo[19] e
as reticências do filósofo existencialista alemão acerca do seu modo e
propósito teriam eco evidente na elaboração do livro da politóloga sobre
Eichmann). Nas duas primeiras, de fins de 1960, Jaspers levanta, desde logo,
diversas objecções importantes quanto ao modo como o processo tinha sido
concebido do ponto de vista penal e político, lembrando que nele o importante não
seria o julgamento legal mas o permitir que se estabelecessem um certo número
de factos históricos, ouvindo testemunhas e obtendo o conhecimento de factos
sobre o holocausto nazi, duvidando que os juízes israelitas lograssem revelar o
nível que ia para além do pensamento jurídico e o fizessem de modo que se
superassem quaisquer dúvidas levantadas nesse afã, sendo necessário, para tal,
o “espírito dos grandes profetas” como Amos, Isaías e Jeremias e não o da
ortodoxia judaica, essa assimilação total do judaísmo no moderno nacionalismo e
a substituição dos judeus pelos israelitas (carta de 12-XII-60, p. 411),
voltando ao assunto, poucos dias volvidos, a 16 de Dezembro, para enfatizar as
suas fortes dúvidas quanto ao alcance e significado desse julgamento tão
problemático, pelo que esse acto teria decerto consequências para Israel e para
o mundo: desde as suas raízes, sublinhava Jaspers, que esse julgamento estava
errado na sua concepção, sendo preferível que Israel declarasse desde logo que
não queria exarar uma sentença até porque o que estava em causa ultrapassava a
jurisdição legal de qualquer Estado e o caso interessava a toda a humanidade,
devendo, portanto, ter sido transferido para uma instância internacional (a
ONU, v.g.), aparecendo antes, assim,
como de facto sucedia, como uma justiça dos vencedores (p.413). Estes
argumentos seriam, mais tarde, retomados pela própria Arendt na sua reportagem
no New Yorker e no seu livro sobre o
caso.
Em
fins desse ano, Arendt responde a Jaspers, lembrando que Eichmann fora acusado
no julgamento de Nuremberga, embora lograsse escapar à pena, escondendo-se na
Argentina, sendo ali raptado pelos judeus – que, aliás, o podiam ter abatido,
como o fizera Shalom Schwarbard, em 1927, com o ucraniano Petliura, acusado de
ser responsável pelos pogromes que tinham vitimando milhares de judeus durante
o seu governo duma Ucrânia independente, acabando o nacionalista judeu por ser
absolvido no tribunal francês (caso que Arendt voltaria a referir no seu livro) [20] –,
afirmando que Israel tinha o direito de falar pelos judeus massacrados pelos
nazis sob a direcção deste metódico e banal burocrata das SS, até porque o
estado criado em 1948 era o única entidade política que os podia representar
(p. 415). Mas a judia acrescentava que partilhava dos receios de Jaspers quanto
ao tribunal criado pelo governo de Ben Gurion e dirigido pelo procurador Gideon
Hausner, mas lembrando que os esforços para criar um tribunal supranacional
para estes crimes tinham falhado, sendo o tribunal internacional de Haia a
única hipótese de se ter julgado Eichmann como um hostis generis humani, e não como mero hostis judaeorum, ou seja, assumindo-se como instância jurídica
penal capaz de julgar quem quer que fosse independentemente da sua
nacionalidade. Em suma, insiste Arendt, ela não discordava da ideia de que a
instância jurídica ideal fosse um tribunal internacional (p. 418). Numa nova
carta, Arendt volta a este ponto, reconhecendo que Eichmann devia ter sido
julgado como inimigo do género humano
e não como mero inimigo dos judeus,
acusado portanto por crimes contra a humanidade, na medida em que, embora o
holocausto tivesse sido cometido contra o povo judeu, esses crimes
ultrapassavam a mera esfera das vítimas judias (carta de 5-II-1961, p. 423) –
ponto crucial que ela desenvolveria no seu livro de 1963. Neste, Arendt
salientaria a absoluta novidade e falta de precedentes do tremendo crime do
holocausto, que não se podia confundir com um o pogrom mais atroz de toda uma
longa história de massacres anti-semitas, genocídio feito agora “contra a
essência mesma da humanidade e “um ataque contra a diversidade humana enquanto
tal”.[21]
Jaspers insistia este ponto de vista: “o caso
Eichmann concerne sobretudo a humanidade e não devia ter sido reduzido a um
caso israelita” (14-II-61, p. 424), pelo que o Estado judeu devia ter reduzido o
julgamento a um simples inquérito sobre factos, deixando à ONU ou ao tribunal
de Haia o processo penal contra o funcionário das SS, entregando o criminoso
raptado na Argentina a uma instância processual capaz de julgar este crime contra a humanidade, o que teria
sido, por parte de Israel, um acto de grande integridade, dando deste modo ao
massacre dos judeus o significado transcendente que ele teve. O que,
acrescenta, comprovaria a abertura de espírito própria da tradição judaica
(p. 425). Numa carta posterior, de 1-IV-61, Jaspers dizia recear que o
julgamento do caso Eichmann pudesse fazer com que Israel e os judeus viessem a
ser julgados desfavoravelmente no mundo (p.432).
Na
sua primeira carta escrita já de Jerusalém, Arendt fala com detalhe das figuras
do processo – Landau, Gideon, Servatius, o próprio réu – e do país que ela
conhecera, em 1935, mais de um quarto de século antes, sublinhando que não
deixava de ser bizarro que, sendo os juízes e o acusado todos eles a de fala
alemã, o processo decorresse em língua hebraica (carta 285, de 13-IV-61,
p.434). Desta carta ressalta, aliás, uma certa estranheza incomodada perante o
quotidiano da vida e das gentes daquele país cuja criação ela mesma ajudara a
servir no exílio francês que lhe tinham imposto os nazis: o número
impressionante de crianças presentes no tribunal, os polícias de aspecto árabe
e que só falavam hebreu, os judeus ortodoxos com os seus cafetãs tradicionais
(p.435). Sente-se nesta carta um evidente distanciamento da “apátrida” Arendt,
em larga medida assimilada à vida e cultura americanas, bastante desprendida
das suas antigas militância sionista, estranha no próprio território da velha
“Palestina”, agora “eretz Israel”...
Eichmann
seria condenado à morte e prontamente executado na forca, em 3 de Maio de 1962,
sendo os seus restos mortais cremados e as suas cinzas lançadas fora das águas
territoriais judaicas. Entretanto, em 1963, publicava Arendt as reportagens que
a revista The New Yorker dera à
estampa, o seu livro que tanta polémica suscitaria entre o rabinato judeu
americano e alguns intelectuais judaicos como G. Scholem e H. Jonas. Uma última
carta de Jaspers, escrita em começos de 1962, sobre esse julgamento e sobre a
sentença que dele emanara, deploraria a sentença emitida pelos juízes judaicos:
“A seriedade do julgamento perdeu-se de vista na medida em que o aspecto
político não foi tomado em consideração. (...). A lei entre as nações, a lei
natural, não pode ser criada deste modo; e a lei internacional com base em
tratados não existe.” (carta 302, de 5-I-1962, p. 469).
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John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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O
crime de genocídio
Desta
dezena de cartas trocadas entre Arendt e o seu antigo mestre acerca do
processo, condenação e execução dum dos arquitectos mais eficientes da Shoah,
algo de importante resultaria para a obra da politóloga sobre o caso de Adolf
Eichmann. O Behemoth nazi, sobretudo na sua prática genocidária, fora um
assalto à diversidade humana enquanto tal, negando o próprio estatuto humano e
a noção de humanidade una, desprovida doravante de qualquer significado, dada a
postura nazi, racista e exterminatória de categorias e “raças “ tidas como
infra-humanas, portanto merecedoras de
aniquilação completa, “final”. O genocídio – a palavra fora cunhada desde 1944
pelo judeu polaco exilado nos Estados Unidos, Raphael Lemkin [22] –
foi, deste modo, a tentativa de criar uma distinção entre quem devia ou não
habitar o mundo terrestre, estabelecendo a noção de que uma parte da raça
humana podia ser destituída de quaisquer direitos e, por essa razão, aniquilada
sem mercê, o que não tinha precedente alguns na história da humanidade. Assim, para Arendt, o crime nazi era único
por ter ousado postular uma inumanidade radical, o que justificava o
encarniçamento da máquina SS em conduzir esses infra-seres (Untermeschen) para o matadouro
industrial, graças a uma racionalização total dos mecanismos de destruição e
por um processo de terror sem limites.[23]
Foi esta escolha das vítimas que deu, deste modo, ao crime o seu cariz mais
hediondo, levando o anti-semitismo secular a um nível e uma grandiosidade letal
sem precedentes. E como tinham sido os judeus o alvo desta cólera homicida,
seria justo que fosse o Estado judaico, criado em 1948, que capturasse um dos
maiores responsáveis pela política de extermínio nazi, levando-o a tribunal,
mas sem se poder perder de vista que, ao fim e ao cabo, o Nacional-Socialismo
hitleriano redefinira o conceito de humanidade de maneira a poder levar à
prática este escopo de aniquilar uma fracção da raça dos homens. Por essa
razão, segundo ela – e nisto repetiria o magistério exercido por Jaspers nas
suas cartas de 1960-61 –, Israel, não obstante a sua legitimidade em se
apoderar do criminoso escondido na Argentina, devia ter entregue Eichmann a uma
instância penal internacional que julgasse este singular e portentoso hostis humani generis, porfiado
funcionário de Behemoth, ainda que banal na sua aflitiva mediocridade humana e
ausência de pathos satânico.[24]
Ao condená-lo num tribunal nacional, em fins de Maio de 1962, Israel perdia,
assim, uma ocasião de ter confiado este criminoso à instância penal certa e
adequada: “se o genocídio é uma possibilidade real para o futuro, então nenhum
povo na terra (...) se pode sentir razoavelmente seguro da sua continuada
existência sem a ajuda e a protecção da lei internacional”, diz Arendt.[25]
Ao
julgá-lo como um só nação que ajusta contas com um criminoso que especialmente
massacrara nacionais desse país – mesmo antes de Israel existir como estado
internacionalmente reconhecido, os judeus da Europa eram seus naturais
cidadãos, até porque tinham perseguidos e aniquilados como membros duma “raça”
ou “nação”, o que postulava a existência duma cidadania judaica que o Estado
nacional criado por Ben Gurion assumiria algum tempo depois, em 1948 –, Israel
minimizava com o julgamento de Eichmann a monstruosidade do caso deste agente
nazi e reduzia este crime a um processo singular. Em suma, os problemas
fundamentais – morais, políticos, jurídicos – do caso sub judice tinham sido subvertidos por Israel, que acabara por
semear a confusão ao julgar e condenar aquele arquitecto da Shoah.[26]
Por
fim, segundo Arendt, o tribunal de Jerusalém não fora capaz de captar
completamente a figura do próprio criminoso, já que, segundo ela, o que levara
Eichmann a cometer tal crime fora um “deficit de pensamento” e não um excesso
de ideologia ou de ódio, pelo que demonizá-lo era vestir-lhe uma falsa máscara
de “grandeza satânica”, revelando uma incapacidade de compreender a questão
central: a banalidade do homem, a “banalidade do mal” cometido, isto é, a sua
mediocridade e vacuidade interior ao serviço de uma plano que, este sim, tivera
proporções apocalípticas em termos de magnitude demográfica das vítimas e de
capacidade de ir além de tudo o que até ali constituíra limites da moral e do
direito. Homem formalista, burocrata apegado a formulários técnicos, incapaz de
proferir uma única frase que não fosse um cliché, Eichmann mostrara bem, ao
longo do processo, sozinho na sua cabine de vidro resistente às balas, que não
tinha dimensão satânica mas apenas banalidade confrangedora, ainda que ele
tivesse posto ao serviço da Shoah uma determinação maligna homicida que fora
implacável e tenaz. O julgamento, nesta medida, fora um espectáculo.[27] E
ao falar dos seis milhões de vítimas judias, o procurador Hausner transformava este hostis
humani generis num simples hostis judaeorum,
mostrando que o processo procurava ser, antes de mais, um gesto de vingança.[28] A
essência do crime nazi como mal radical e crime contra a humanidade perdia-as,
assim, no processo de Jerusalém.[29]
John Heartfield/Helmut Herzfeld (1891-1968)
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Arendt
entre o judaísmo e universalidade da língua alemã
Deixaremos
de lado a reacção irritada dos judeus americanos à tese da banalidade do mal
contida na polémica obra de Arendt sobre Eichmann, e de que a larga
correspondência trocada com a amiga americana Mary McCarthy fornece abundantes
testemunhos.[30]
Esta polémica tem a ver também com o progressivo afastamento de Arendt em
relação ao sionismo e ao próprio Estado de Israel, cuja evolução não cumpria os
propósitos que a jovem militante sionista dos anos 30 tinha pensado serem os
que a “Palestina” judia cumpriria, tanto mais que, desde a segunda guerra
mundial, a orientação sionista oficial se fizera num sentido que não apontava para
um estado judaico-palestiniano, como ela sinceramente desejava, antes evoluíra,
numa direcção cada vez mais nacionalista, para um Estado retintamente
nacionalista judaico, com leis que limitavam a cidadania aos praticantes da
religião judaica, o que não podia deixar de desagradar a esta agnóstica. Para
ela, Israel devia afirmar-se e crescer como uma federação de concelhos, como um
estado binacional em que judeus e árabes partilhassem a soberania sobre a mesma
terra.[31]
Uma
derradeira referência a esta admirável troca de cartas entre Jaspers e Arendt
se impõe, na medida em que nela de algum modo se sintetiza a posição da
politóloga exilada nos Estados Unidos: a referência da primeira acerca da sua
impossibilidade, depois do Dilúvio apocalíptico do nazismo a que a que ambos
tinham sobrevivido, quanto à sua pertença ou não à condição de alemão. Em 1946,
assevera Arendt, em relação a ser ou não alemã, que a solução de Heine para
essa questão “já não funciona” ( o poeta lograra sentir-se ao mesmo tempo judeu
e alemão”): “Politicamente falarei sempre em nome dos judeus sempre que as
circunstâncias me forçarem a dar a minha nacionalidade.. (...) nunca me senti,
já espontaneamente, já por insistência própria, «ser um alemão». O que fica é a linguagem (...).”(carta 50, de 17-XIII-46,
p.70). E poucos dias volvidos, respondia Jaspers que, no tocante à “essência
alemã, é de facto a língua e só a língua a única coisa que fica”(carta 51,
28-XII-46, p.71). Com efeito, os dois amigos que se cartearam tantos anos
parecem estar de acordo neste ponto: a pertença à cultura alemã e a língua da
Alemanha são as únicas coisas que os identificam, sobretudo depois dos doze
anos de mal radical durante o
inclemente e alucinado Dilúvio perpetrado pelo nazismo: Arendt nunca
reivindicará outra forma de ligação com a pátria dos alemães Goethe e de
Jaspers – e do judeu alemão Heine.
João Medina
Monte Estoril, 31-XII
de2006 - Novembro de 2007 [32]
Bibliografia suplementar:
De Karl Jaspers:
Karl
Jaspers, La Culpabilité allemande,
Paris, Éditions de Minuit, 1990, pref. de Pierre Vidal-Naquet (pp.7-22),
trad. de Hanne Hirsch..[33]
Hannah Arendt – Obras
recentemente editadas:
Duas
obras recentemente editadas se destacam como indispensáveis para o conhecimento
da sua trajectória tanto judaica como cultural.
– H. Arendt, The
Jewish Writings, ed. de Jerome Kohn e Roin H. Feldman, Nova Iorque, Schocken Books, 2007, 559 pp.(*)
– H. Arendt, Reflections
on Literature ans Culture, ed. de Susannah Young-ah Gottlieb, Stanford
(Califórnia), Stanford University Press, 2007, 360 pp. (**)
Lembremos,
para além dois livros citados, a excelente antologia organizada por Peter
Baehr, The Portable Hannah Arendt,
Nova Iorque, Penguin Books, 2003, com um prefácio, pp.VII-LVII, uma cronologia
da vida de H. Arendt, pp. LV-LVII, e uma nota bibliográfica, pp.LIX-LXII,
seguido duma selecção de textos, pp.3-575. NB: sobre estes dois volumes, veja-se o artigo de
Jeremy Waldron, “What would Hannah say?”, The
New York Review of Boosks, Nova Iorque, vol. LIV, nº4, de
15-III-2007, pp.8-15.
Estudos sobre Hannah
Arendt:
Quanto
à biografia de Arendt, recordemos, além da revista francesa Le Magazine Littéraire dedicado ao tema “H.Arendt – penser le monde
d’aujourd’hui”, nº 445, Setembro de 2005, alguns estudos recentes:
– Sylvie Courtine-Denamy, Hannah Arendt, Paris, Hachette, col.
Pluriel, 1998.
– Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt, Paris, Calmann-Lévy, 1999.
–
Martine Leibovici, Hannah Arendt. La passion de comptendre,
Paris, Desclée de Brouwer, 2000.
– Anne Amiel, Hannah Arendt, Paris, Ellipses, 2001.
– Sylvie Courtine-Denamy, Trois Femmes dans de sombres Temps. Edith
Stein, Hannah Arendt, Simone Weil, Paris, Albin Michel, 2002 (H.Arendt: pp.214 ss, 227-235, 284-287,
302-308 e 316 ss).
(*)
Esta obra colige, por décadas, a começar nos anos 30 e a terminar nos 60, os
principais textos de Hannah Arendt sobre a temática judaica, estudada pelos
dois organizadores da obra, no prefácio de Jerome Kohn (pp. IX-XXXV) e na introdução de Ron H. Feldman (pp.XLI-LXXVI) As datas dos
diversos textos são dadas nas pp. XXXVII-XL). Salientemos alguns dos textos
mais interessantes deste florilégio: sobre Rahel Vaarnhagen (pp.29ss), Martin
Buber (pp.31ss), “A questão judaica” e “anti-semitismo” (ambos inéditos), a
organização política dos judeus (pp.199ss), “O judeu como pária: uma tradição
oculta”(pp. 275 ss), “a crise do sionismo”(pp. 329ss, inédito, 1943)”, Stefan
Zweig (pp.317 ss),“Herzl e Kazare”(pp.338ss), “O Estado judeu 50 anos depois”(pp.375ss, de 1945-6), Chaim Weizmann
(pp.402ss e 405ss), o assassinato de Bernadotte (pp.408 ss), Menahem Begin e o
seu partido (pp.417ss), carta a Gershom Scholem sobre o caso do julgamento de
Eichmann (pp.465ss), ainda a querela sobre Eichmann (pp.485ss), “Magnes, a consciência
do povo judeu”(pp. 451ss, de 1952). A obra encerra com um texto da sobrinha de
Hannah Arendt, Edna Brocke, sobre a filósofa (pp.512-521). Uma foto com a sobrinha e
outras pessoas vem na p.513.
(**)
Este livro inclui diversos artigos e estudos, alguns dos quais inéditos, de
Arendt sobre os temas culturais mais diversos, como sobre as Elegias de Duíno de Rilke (pp. 1ss)
Thomas Mann e o romantismo (pp.56ss), Stefan Zweig e o seu livro “O Mundo de
Ontem” (pp.58ss, o mesmo artigo incluído no livro supracit.), “O judeu como pária”
(pp.69ss, também reprod. no livro referido), Kafka (pp.94 ss), o
existencialismo francês (pp.115ss), B. Brecht (pp.133ss), Bernard Lazare
(pp.143ss), H. Broch (pp.148ss), Proust (pp.156ss), Kipling (pp.167ss),
Melville e Dostoievski (pp.206ss), N. Sarrautre (pp.214ss), Isak Dinesen
(262ss), Os Demónios e Dostoeivski
(pp.275ss), W. H.Auden (pp.294ss). No interessante ensaio sobre o romance de
Dostoievski, Arendt resume-o dizendo que a sua ideia central está no facto da
perda de fé em Deus acarretar a fé nas ideias, deixando o homem de ser
governado por Deus mas possuído por ideias, que são como demónios, tanto mais
que elas não são algo que temos mas algo que nos tem, pois mesmo a mais nobre
destas ideias é fatal, a de liberdade, porquanto conduz Kirilov ao suicídio; e
cita esta observação que lhe faz Verkovensky: “Não dominaste a ideia, mas a
ideia dominou-te.” (p. 277).Acrescenta Arendt que uma ideia não é apenas vivida
no cérebro, mas é “sentida, ou seja, levada à prática.”(loc. cit.). A mais fascinante destas ideias é a destruição total,
pois vem directamente do vazio, o que é “a mais poderosa inversão da Criação” (idem). Esta ideia torna-se carne nos
homens e torna-se acção, o que transforma os seus suportes em algo muito
perigoso, pois gera um ídolo (p.278).
Já não era Deus que se tornava homem, mas o inverso: o homem que se fazia Deus.
Compreende-se, assim, que o estalinismo fosse a apoteose desta perversão que
Dostoievski intuiu a partir da acção de Netchaev e dos seus delirantes e
fanáticos sequazes, estes homens que pecaram por soberba, pois a absoluta
liberdade seria a absoluta destruição (p.279). Hannah Arendt escreveu este
rascunho em 1967, lendo as notas deixadas por Dostoievski sobre o seu romance.
[1] Hannah
Arendt – Karl Jaspers. Correspondence
1926-1969, org. por Lotte Kohler e Hans Saner, trad. por Robert e Rita
Kimber, San Diego e Nova Iorque, Harcourt Brace & Company, 1993 (num total
de 433 cartas (e um telegrama), trocadas entre H. Arendt e K. Jaspers, bem como
entre estes e os dois respectivos consortes, H. Blücher e Gertrud Jaspers). As
cartas são cuidadosamente anotadas (pp.689-800), assim como são referidas as
obras dos dois pensadores (pp.801-2 e 803-5, de H. Arendt e K. Jaspers
respectivamente).
[2] Hannah Arendt faz um retrato do seu marido – que ela trata
ironicamente por “Monsieur” na sua correspondência com Jaspers – na carta 34,
de 29-I-1946, p. 29. Blücher nasceu em 1899, foi um autodidacta, pertenceu ao
partido comunista alemão e conheceu Hannah Arendt em Paris, em 1936, quando ambos
ali estavam exilados, casando-se em 1940. Blücher não era judeu. Ensinaria
filosofia da arte na New School for
Social Research, em Nova Iorque, em 1950 e, depois, filosofia no Bard
College (Estado de Nova Iorque), de 1952 a 1968, falecendo em 1970. Jaspers
dirige-lhe directamente algumas cartas (v.g.,
a carta 300, de 26-XII-1961, pp. 463-466, quase toda dedicada a apreciar
favoravelmente o presidente J. F. Kennedy), na qual critica também o
nacionalismo dos sociais-democratas germânicos, censura a política de Adenauer
e declara que, para Berlim, o importante seria que os alemães perdessem “as
suas ilusões, procurando criar uma economia florescente e uma vida intelectual
sob uma constituição municipal como nunca o mundo alguma vez vira antes”
(p. 465). Esta passagem sobre Berlim (pp. 465-6) mostra o empenho de Jaspers num
ideal municipalista alemão que era, ai mesmo tempo, democrático e
antimilitarista; recorde-se que Berlim vivera então, neste ano de 1961, uma
forte crise imposta pelos soviéticos que tinham intentado asfixiar o lado
ocidental da cidade, o que Kennedy em grande medida lograra impedir.
[3] Karl Jaspers, Die Schuldfrage, trad. francesa. La
Culpabilité allemande, Paris, Éditions
de Minuit, 1947, reed. em 1990, com o memso título, sendo esta última ed. que
citaremos (trad. do alemão por Jeanne Hersch e pref. de Pierre Vidal-Naquet;
pref. pp.7-22). O editor era o famoso resistente francês Vercors (pseud. de
Jean Bruller, 1902-1991), autor d’O
Silêncio do Mar, director da referida editora que nascera e actuara
clandestinamente durante a ocupação nazi da França, referido com simpatia por Jaspers, em 20-VII-1947 (carta 60, a H. Arendt, p. 96).
[4] Hannah Arendt
– Karl Jaspers Correspondance 1926-1969,
1993, pp.684-686, p.686. Muitos anos antes, Jaspers escrevera um livro sobre
Max Weber intitulado Max Weber. Deutsches
Wesen im politischen Denken, im Forschen und Philsophieren (1932) no qual
considerava o famoso sociólogo como a “essência da Alemanha”, ideia de que
Arendt logo discordara: veja-se carta 22, de H.A. a K.J., de 4-I-1933, p.16, à
qual Jaspers responde, a 3-I-33 (carta 23, pp.17-18), achando bizarro que ela
invoque a sua qualidade de judia para se distanciar das qualidades “essenciais”
germânicas atribuídas a M. Weber, i.e., “a racionalidade e a humanidade,
originadas na paixão”. “Para mim, escreve Arendt, a Alemanha significa a minha
língua mãe, filosofia e literatura” (carta cit., p.16). Ao que, na sua
resposta, Jaspers garante que a Alemanha só pode existir numa “Europa unida” (p.18).
[5] Sobre as relações intelectuais e humanas entre H. Arendt
e Heidegger e deste com Jaspers, vejam-se as cartas desta correspondência,
de Jaspers a Arendt, de 16-VI-1965
(carta 378, p.603) e sobretudo de
9-III-66 (carta 393, 629-30). E o estudo de Elzzbieta Ettinger, Hannah Arendt y Martin Heidegger,
Barcelona, Tusquets, 1996. E Hugo Ott, Martin
Heidegger. A political life, Londres, Basic Books, 1993, maxime pp. 6, 178 e 187. E ainda Hans Jonas, Souvenirs, Paris, Bibliothèque Rivages, 2005, maxime pp.80 ss (Heidegger e Arendt), 72 ss e 225 ss. E o indispensável
estudo de Victor Farías, Heidegger et le
Nazisme, Paris, Le Livre de Poche, 1989. Do ponto de vista humano, a carta
acima cit. de Jaspers (de 9-III-66, pp.629-632) tem mais detalhes acerca do
comportamento de Heidegger em relação ao filósofo existencialista que o III
Reich afastaria do ensino oficial, bem como em relação à sua mulher judia. Uma
das críticas mais severas de Arendt em relação ao pensamento de Heidegger está
na sua carta 93, a Jaspers, de 29-IX-1949 (p.142).
[6] Veja-se a volumosa correspondência travada entre H.
Arendt e esta escritora católica americana: Between
Frinds: The Correspondence of Hannah Arendt and Mary McCarthy – 1949-1975,
org. por Carol Brigtman, Nova Iorque, Harcourt Brace, 1995.
[8] O seu irmão Otto Mayer (1887-1962), comerciante, vivia
em Israel, onde faleceu de cancro em 1962, facto que Jaspers comunica a Hannah Arendt, fazendo o seu elogio como ser
excepcional, muito amado de todos, na carta 302, de 5-I-1962, pp. 468-9.
[9] Veja-se Richard J.
Bernstein, Hannah Arendt and the Jewish
Question, Oxford, Polity Press, 1996,
maxime pp.101ss (“Lar judeu ou Estado
judeu?”).
[10] Sobre Eichmann
e o significado e críticas ao seu julgamento, bem como acerca do livro polémico
que Arendt dele fez, primeiro nas páginas de The New Yorker e depois em volume que foi atacado por vários
sectores judaicos americanos, assim como por G. Scholem e Hans Jonas, vejam-se
as cartas de Hannah Arendt a Karl Jaspers (pp.409-411, 423-5 e 434-5, 480 e
469-70, de Jaspers a Arendt). Voltaremos a este ponto. Quanto ao livro de H.
Arendt sobre Eichmann, veja-se adiante. Acerca deste criminoso nazi e o seu
processo em Jerusalém, vejam-se as obras seguintes: – Quentin
Reynolds, Minister of Death. The Eichmann story, Nova Iorque, Viking Press,
1960. –
Henry
A. Zeiger, The Case against Eichmann,
Nova Iorque, Signet Books, 1960. – Moshe Perlman, The
Capture and Trial of Adolf Eichmann, Nova Iorque, Simon and Schuster, 1963.
– Lord Russell of Liverpool, The Trial of Adolf Eichmann, Londres,Corgi Books, 1963. – Hanna Yablonka, The State of Israel versus Adolf Eichmann,
Nova Iorque, Schocken Books, 2004.
[11] Veja-se H. Arendt,
Eichmann à Jérusalem. Rapport sur la banalité
du mal, Paris, Gallimard, 1966.
[13] Veja-se H. Arendt, O Sistema Totalitário, p. 569 Falando, aliás, tanto do hitlerismo
como do estalinismo, Arendt observa: “Até agora, da crença totalitária de que
tudo é possível parece provado apenas que tudo pode ser destruído, Não
obstante, no seu afã de provar que tudo é possível, só os regimes totalitários
(nazi e soviético) descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens
não podem punir nem perdoar. Ao tornar-se possível, o impossível passou a ser o
mal absoluto, impunível e imperdoável, que já não podia ser compreendido nem
explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância, da cobiça, do
ressentimento, do desejo do poder e da cobardia (...). Do mesmo modo que as
vítimas nas fábricas da morte ou nos poços de esquecimento já não são «humanas»
aos olhos dos seus carrascos, também esta novíssima espécie de criminosos se
situa além dos limites da própria solidariedade do pecado humano. É inerente a
toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um «mal radical», e
isto aplica-se tanto à teologia cristã, que concedeu ao próprio Diabo uma
origem celestial, como a Kant (...).”
[15] Sobre este ponto preciso veja-se o estudo de Götz Aly
e Susanne Heim, Les Architectes de l’Extermination. Auschwitz et
la logique de l’anéantissement,
Paris, Calmann-Lévy, 2006. Veja-se o que sobre esta obra dizemos no
nosso livro Auschwitz e Moscovo. O silêncio
de Deus em Auschwitz, Lisboa,
Caleidoscópio, 2006, p.57.
[16] Veja-se o famoso estudo de Franz Neumann (1900-1954)
sobre o regime e o Estado nazis, Behemoth.
The structure and practice of
National Socialism (1942), Nova Iorque, Octagon Books, 1963. Veja-se o que dizemos desta obra no nosso Auschwitz e Moscovo, p.154.
[17] Veja-se Hermann Rauschning
(1887-1982), The Revolution of Nihilism.
Warning to thje West, Nova Iorque, Longmans, Green and Co, 1940. Sobre esta interpretação, veja-se o que escrevemos no
nosso citado livro Auschwitz e Moscovo,
p.151. E ainda no nosso estudo Dois
Exilados alemães: Klaus Mann e Thomas
Mann no Exílio antinazi, Lisboa, Livros Horizonte, 2003, p.61.
[18] Gershom Scholem censuraria a Arendt a sua noção de
“banalidade do mal” utilizada no livro sobre Eichmann, na medida em que o
historiador da mística judaica achava que a malignidade nazi que presidira à
Shoah era não só radical mas também demoníaca e, portanto, devia ser tratada
como tal: veja-se David Biale, Gershom
Scholem Kabbalah and History, 2ª ed., Cambridge (Mass.), Harvard University
Press, 1982, p.48. Scholem evoca Arendt no seu estudo sobre as relações dele
com Benjamin: Walter Benjamin. Histoire
d’une Amitié, Paris, Presses Pocket/Calmann-Lévy, 1989, pp.307, 310-12,
317-18, 321 e 323-4 (evidentemente que a questão debatida no nosso texto não é
aqui tratada, mas tão só as relações triangulares entre Gershom Scholem, Walter
Benjamin e Hannah Arendt).
[19] Recordemos quais são estas cartas de Jaspers (272,
12-XII-60, pp. 409-11; 273, de 16-XII-60, pp. 413-4; 278, de 14-II-61, p. 424;
282, de 1-IV-62 p. 432; 302, de 3-I-62, pp. 469-70); e de Arendt (274, de 23-XII-60,
pp. 418-9; 277, de 3-II-61, pp. 423-4; 285, de 13-IV-61, p. 436; 287, de
25-II-61, p. 437; 302, de 3-I-62, pp. 469-70).
[21] Arendt, Eichmann...,
p.295. E Arendt lembra que Jaspers, numa entrevista radiofónica publicada na
revista de Basileia Der Monat,
insistira neste ponto de vista de crime contra a humanidade, já que a
humanidade inteira desapareceria se os Estados fossem autorizados a perpetrarem
tais crimes (op. cit., p.296).
Arendt, na carta 312, de 17-IX-62, referia-se a esta entrevista de Jaspers à
revista Der Monat (p.480), pedindo a
Jaspers o texto para a poder citar no final do livro: neste, a sentença que o
tribunal de Jerusalém devia ter pronunciado ocupa duas páginas finais (Eichmann..., pp.304-5). O essencial
desta entrevista radiofónica, transcrita na referida revista, consistia em
dizer que um crime contra a humanidade só podia ser julgado por um tribunal que
representasse a humanidade inteira.
[22] De família
judaica, Raphael Lemkin nasceu em 1900 na Polónia, numa aldeia que pertencia
então ao império russo, emigrando mais tarde para os Estados Unidos; faleceu na
cidade de Nova Iorque, em 1959. Interessado pelo massacre arménio de 1915,
estudou filosofia na Alemanha (Heidelberga) e direito na universidade de Lvow,
tornando-se magistrado do ministério público (1929-1934), tendo coligido os
códigos penais da Polónia, traduzindo o código penal do seu país para inglês.
Em 1933 apresenta no Conselho Legal da Liga das Nações um relatório sobre o
massacre dos arménios no Iraque (anos 30), ensaio examinando o crime de
“barbárie” à luz do direito internacional. Em 1934 demite-se do seu cargo e
torna-se jurista privado em Varsóvia, colaborando na Universidade Livre desta
cidade. Participa na defesa da capital polaca em 1939, é ferido, consegue
escapar aos alemães e, em 1940, acaba por se exilar na Suécia, onde durante
algum tempo ensina direito. Mais tarde (1941) emigra para os Estados Unidos,
onde viveria até ao termo da sua vida. Da sua família, só o seu irmão Elias
sobreviveria ao holocausto judeu: Raphael conseguiu que este, depois de ter
passados anos em campos de concentração soviéticos, emigrasse, com a mulher e os dois filhos para
o Canadá. (1948). Uma vez na América, Lemkin começa por ensinar Direito na Duke
University (Carolina do Norte, 1941), depois na Universidade da Virgínia
(1942), sendo nomeado, em 1943, consultor para os negócios estrangeiros no
Departamento de Guerra dos EUA. Em 1944 a sua obra mais importante é publicada:
O Governo do Eixo na Europa ocupada (1943),
livro patrocinado pelo “Carnegie Endowment for International Peace”, no qual
apresenta o termo jurídico novo de genocídio
(de genos, raça, e cídio, assassinato), expressão que teve
larga aceitação legal internacional. Esta obra saiu em Nova Iorque, editada por
Howard Fertig, em 1943, sendo reeditada em 1973 (é esta a ed. por nós citada: Axis Rule in occupied Europe. Laws of
Occupation Analysis of Government. Proposals of Redress, Nova Iorque, Howard fertig, 1973; definição de
genocídio: pp.79-95). A
partir de 1948, Lemkin ensinou Direito na Yale University, batendo-se pela
implementação duma política antigenocidária, como o tinha feito, sem sucesso,
durante a Conferência de Paris, em 1945. A Convenção para a Prevenção e Punição
do Crime de Genocídio foi finalmente adoptada internacionalmente em 9-XII-1948.
Lemkin foi várias vezes proposto para Prémio Nobel da Paz desde 1950. Faleceu,
vítima de ataque cardíaco, na cidade de Nova Iorque, em 28-VIII-1959. Arendt
não o cita nos seus estudos sobre a Shoah.
[23] Veja-se Arendt, O
Sistema totalitário, pp. 571ss (capítulo “Ideologias e terror”, maxime pp. 576ss).
[30] Veja-se Hannah Arendt – Karl Jaspers Correspondence, pp.144 ss. Consulte-se
o citado estudo de J. Bernstein, Hannah
Arendt and the Jewish Question, pp.150 ss, 159-60 e 166-180.
[32] Este estudo foi redigido para o colóquio sobre Hannah
Arendt que se realizou na Faculdade de Letras de Lisboa, promovido pelo Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa, em 11-12 de Janeiro de 2007, sendo
depois publicado, sem revisão do autor, no volume que reuniu as actas desse
congresso Hannah Arendt: Luz e Sombra.
Seminárío Internacional, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa, 2007, pp.193-210.
[33] Este tema fora objecto dum curso dado por Karl
Jaspers na Universidade de Heidelberg, no inverno de 1945-6, universidade sob
controlo dos E.U.A., assim como a de Tubinga estava sob direcção francesa. A
obra é datada de Abril de 1946. A expressão die
Schuldfrage significa, à letra, “a questão da culpabilidade”. Jaspers distingue 4 formas de culpabilidade:
a criminal, a política, a moral e a metafísica (vide pp.46 ss; quanto à culpabilidade dos alemães nos crimes nazis,
veja-se pp. 59 ss). Tem especial interesse o que Jaspers diz da
responsabilidade criminal dos alemães, uma vez que este ponto estaria no centro
da sua debate com Hannah Arendt (vide
pp.62ss). Quanto à actuação da Wehrmacht durante a guerra de 39-45, Jaspers não
procura separá-la das SS, considerando que ambas actuaram de forma criminal
igualmente pérfida, com fins de totalitarismo e sem escrúpulos, com vontade de
destruir (p. 65). Quanto à novidade dos julgamentos de Nuremberga, então em
curso, ver pp.69-71; diz Jaspers: “A nossa própria salvação neste mundo tem por
condição prévia a ordem mundial, que não está ainda estabelecida em Nuremberga,
mas que Nuremberga visa.” (p.71). A obra remata com um apelo à purificação dos
alemães: “Se os alemães não seguirem o caminho da purificação partindo das
profundezas de que se sabem culpados, não poderão eles realizar nenhuma
verdade.”(p.120). A primeira edição francesa desta obra é de 1948. O prefácio, escrito
em 1990 – na altura em quer a Alemanha se reunificava –, é da autoria
de Pierre Vidal-Naquet (1930-2006), famoso universitário, judeu, recentemente
falecido, grande mestre de questões gregas, e constitui sem dúvida um texto indispensável
e de muito interesse. Recorde-se que Jaspers, desiludido com a atitude da República
Federal da Alemanha quanto aos criminosos de guerra, acabaria por se expatriar
na Suíça, obtendo a nacionalidade helvética em 1968, falecendo naquele país no
ano seguinte.
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