sábado, 2 de fevereiro de 2013

Saga da taiga, entre outras narrativas.

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O distrito de Abakan, local de morada da família Lykov. Taiga siberiana, portanto.  




Eu não queria falar disto aqui, regressar a mais uma história de encontros e reencontros, daquelas em que o Malomil insiste até cansar os leitores. Mas o Vasco e a Rita cansaram-me a paciência com a ínsipida historieta dos siberianos e, pronto, por amizade faço-lhes o favor de alinhavar algumas palavras sobre um caso da vida que, convenhamos, não tem interesse nenhum. Quem se interessar, pode ler a narrativa da descoberta aqui.

         Histórias de pessoas a quem a 2ª Guerra passou ao lado são frequentes e corriqueiras. Houve soldados japoneses que continuaram a lutar, perdidos nas selvas, mesmo depois do seu país se ter rendido. Outros não aceitaram que o imperador tenha aceitado humilhar-se perante os americanos. Uma das mais espantosas histórias é a de um grupo da colónia brasileira no Brasil que, em São Paulo, faz uma tentativa desastrada para, após a rendição, continuar a luta através de uma organização terrorista, a Shindô Remmei (ou Liga do Caminho dos Súbditos), misto de seita e associação recreativa que, ainda assim, vitimou pessoas. A história, deliciosa, é contada no livro Corações Sujos, de Fernando Morais, já adaptado ao cinema em filme. Outro livro imperdível, aqui metido a martelo, é  O Crime do Restaurante Chinês, de Boris Fausto, livro que me foi dado pelo Pedro e que agora, desaparecido de casa de seus pais, anda emprestado ao Bernardo.  

         Histórias de descobertas de gente ignorada, vivendo longe do mundo, também existem muitas. Já estive para contar aqui, mas faltou-me o tempo, a fantástica descoberta dos tasaday, que era supostamente uma tribo das Filipinas que vivera afastada dos outros humanos durante anos e anos. Até a National Geographic fez capa com os tasaday, que, ao que parece, são uma fraude, uma artimanha que o ditador Ferdinando Marcos utilizou para, criando uma reserva de 20 mil hectares, se dar ares de grande protector da vida selvagem e dos selvagens que levam essa vida asselvajada. É uma história incrível, que li pela primeira vez no livro de Joan Fontcuberta, O beijo de Judas. Fotografia e verdade. Continuo a estudá-la, pois há gente que insiste que os tasaday existem mesmo. ..






 
 
Os tasaday, na capa da National Geographic





Interior do jacto privado de Ferdinando Marcos. Com o patrocínio Móveis KOL.

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Histórias de reencontros familiares também há muitas – e boas. Ainda ontem, ou anteontem, o João, que é rapaz sagaz e grande caçador destas coisas, me trouxe ao conhecimento uma reportagem levada a cabo pelo fotógrafo Carlos Barria e apresentada aqui. Todos os anos, milhões de chineses que trabalham nas grandes metrópoles regressam às suas terras-mãe para comemorarem a passagem do ano, conhecida como Festa da Primavera. Qual foi a ideia de Carlos Barria? Acompanhar o percurso de dois chineses – Li Anhua e a sua mulher, Shi Huaiu – que passaram mais de 50 horas em comboios e autocarros para reverem os seus dois filhos e a avó que cuida deles. Li e Shi são vendedores de comida nas ruas de Xangai e, no ano todo, só passam uma semana com os filhos. A Festa da Primavera. Comovente o reencontro, não? Simplesmente, a ideia de Carlos Barria não é original. Um documentário de 2009, chamado Last Train Home, realizado por Lixin Fan, fazia exactamente o mesmo: acompanhava o trajecto de um casal no seu anual reencontro com os respectivos filhos biológicos.






O reencontro anual de Li Anhua e sua mulher, Shi Huaiu, com os filhos. 
 
 
Last Train Home, de Lixin Fan (2009).
 
 
 


         Agora vamos até à Rússia, na companhia do sempre simpático e carismático Engº José Sousa Veloso. Nesta edição de TV-Rural/Sibéria, temos hoje o quê? Taiga. Em 1978, um helicóptero andava a sobrevoar uma região inóspita da taiga siberiana. O objectivo era encontrar uma zona plana onde pudesse aterrar e largar ali uma equipa de geólogos, pessoas cuscas que têm aquela tara de remexer as entranhas do planeta e as próprias das vísceras da taiga (e da tundra, sua prima). Nisto, os senhores helicopteristas observam dois fenómenos surpreendentes. A bombordo, no sentido dos ponteiros do relógio, Cinha Jardim ouvia no seu MP3 o volume VI de À la recherche du temps perdu. A estibordo – e, atenção, isto passa-se na fronteira com a Mongólia –, detectaram sinais de presença humana: um campo, uma cabana. Entre Cinha Jardim e a presença humana, optaram por esta última. Então, aterraram e lá foram perturbar o sossego da família Lykov. Julgando que se aproximava uma equipa do FMI liderada por um escurinho, as manas Lykov, mais novitas, desataram aos gritos, rezando: «Isto é pelos nossos pecados, os nossos pecados!». Os cientistas retiraram-se discretamente da cabana que tinham devassado e, afastando-se, começaram a merendar no campo. Meia-hora depois, a porta da cabana abriu-se e a família Lykov, já mais composta, apresentou-se ao mundo. O mais idoso ainda tinha visto pão na vida. O resto da família não sabia o que isso era – e, está claro, não aceitaram a comida que estranhos lhe ofereciam. Resumindo e concluindo, o nome do velhote era Karp Lykov e tratava-se de um Velho Crente (tradução literal de Old Believer), membro de uma seita fundamentalista ortodoxa que andava a ser perseguida desde os tempos de Pedro, o Grande. Com a chegada ao poder dos bolcheviques ateus, a vida para os Velhos Crentes tornou-se difícil. Em 1936, quatro Lykovs foram viver para ali, nas terras do fim do mundo. Nos confins da taiga, Karp e a mulher, mais dois filhos, Savin, com 9 anitos, e a pequena Natalia, com duas primaveras. Ali nasceram mais dois Lykovs: o Dmitry, em 1940, e a Agafia, em 1943. Nenhum destes últimos tinha visto alguma vez na vida um ser humano. Há gente com sorte. A 2ª Guerra, por exemplo, passou-lhes ao lado, literal, geográfica e completamente falando. Mas passaram muita fome, especialmente nos anos 50: raízes, cogumelos, erva, umas bagas silvestres, assim se faziam as refeições na casa dos Lykov. O patriarca, ao ver os geólogos soviéticos, teve muito receio. Acontece a qualquer pai de família sensato que veja aproximar-se, ao fim de 40 anos de descanso, uma equipa de geólogos, ademais soviéticos. Ao princípio, só aceitou uma oferenda: sal. Não acreditou que o homem tivesse ido à Lua, para mais sem a companhia de uma mulher. Mas aceitou na perfeição que existiam satélites artificiais. Ficou maravilhado com o celofane: era vidro moldável, na sua opinião – e, até certo ponto, tinha razão o octogenário ancião. Já os mais novos ficaram fascinados com um televisor portátil que os geólogos (soviéticos) traziam e, claro, como acontece a qualquer ser iletrado, ficaram colados ao écran. Não era todos os dias que lhes aterrava um helicóptero à porta de casa, trazendo consigo uma caixinha que emitia os desenhos animados de Vasco Granja e, claro está, o TV Rural. Os Lykov viveram dias de angústia, tentando conciliar o seu fanatismo ancestral com as novas tecnologias.







Casa Lykov.
 
 
Três membros da família Lykov. O camafeu de óculos é, obviamente, uma geóloga soviética.


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A história tem um final triste: não muito depois de contactarem o mundo exterior, alguns Lykov morreram, sucessivamente falecidos. Um deles, possivelmente, terá contraído pneumonia após o convívio com os geólogos soviéticos. Os outros morreram de morte natural, se é que isso é possível, uma vez que  


De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.




         A todos os que leram este belo poema de Jorge de Sena até ao fim, as nossas felicitações. Concluímos agora a história dos Lykov. No final, só sobrou o mais velho – Karp – e a mais nova – Agafia. Apesar de terem visto a morte sucessiva dos outros Lykovs, apesar da insistência dos geólogos (soviéticos), Karp e Agafia quiseram permanecer ali. Karp Lykov morreu durante o sono, em Fevereiro de 1988, vinte sete anos depois da sua mulher falecer. A filha ainda vive nas profundezas da Sibéria, na solidão de si mesma.   





Karp Lykov e a filha Agafia, com roupas oferecidas pelos geólogos soviéticos.
Imagem captada pouco depois da morte dos restantes membros da família. 







As campas da família Lykov.
 
 
 


         Não há muito de comum entre esta história e a dos chineses. Talvez sejam histórias que estão ao contrário uma da outra: para ganharem a vida, milhões de chineses vão para as cidades e só vêem os filhos uma semana durante o ano inteiro; para não perderem a vida, os Lykov foram para os confins do campo e não quiseram ver ninguém senão os seus filhos. E assim estiveram, porque o quiseram, durante décadas.
          Bem-aventurados aqueles que, como nós, não têm que fazer estas opções de vida tão radicais. E, além disso, consigo trazem um dom precioso: os amigos. Foi para falar deles que contei estas historietas todas. E, por isso, aqui termino a esbelta prosa – tímida, até –, para a Rita, para o Vasco, para o Pedro, para o Bernardo e para o João. Agora, vou assiná-la
 
 
António Araújo
 
 

2 comentários:

  1. Lykov história fascinante ... Metáfora dos tempos da perseguição e da coragem da sobrevivência com nada mais que um livro uma língua e uma enorme fé
    Vale a pena ver o documentário russo sobre o tema simplesmente comovente
    Como sempre este blog não para de me espantar obrigado por um momento magnifico

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    1. Se me permite: eu é que agradeço. Muito.
      Um abraço
      António Araújo

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