Torres Gémeas, Almaty, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster
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Há
livros assim. Terríveis de tão bons. The Post-Socialist City. Continuity and change in urban space and imagery, organizado por Alfrun Kliems e Marina Dmitrieva. Uma obra colectiva, com vários artigos, em
que cada um é melhor do que o outro. Leia-se de frente para trás ou de trás
para a frente, cada texto é sempre mais interessante do que o anterior. Sem
percorrer o índice de fio a pavio, e apenas num brevíssimo voo de pássaro,
temos neste estabelecimento livreiro artigos de primeira qualidade sobre: monumentos
e edifícios políticos da RDA após a reunificação da Alemanha; lugares de Praga
depois da Revolução de Veludo; o majestoso Palácio da Cultura e da Ciência de
Varsóvia; a famosa Praça da Independência em Kiev; a «cidade socialista» por
excelência da Hungria, Dunaújváros (antiga Sztálinváros), projectada por Tibor
Wiener; um subúrbio de Bucareste e o
novo urbanismo da Arménia.
O livro é sobre o mais político dos
organismos concebidos pelo homens – o espaço urbano – e aborda as
transformações sofridas por várias cidades após a queda do comunismo. Mas, em
boa verdade, The Post-Socialist City
trata da Europa (como, aliás, se anuncia na nota introdutória, na linha dos
trabalhos grande Karl Schlögel). Por muito estranho que pareça, compreendemos melhor
o que é a Europa, e sobretudo o que poderá vir a ser, numa obra que dedica um
capítulo inteiro à nova arquitectura ultramoderna do Cazaquistão. A «Europa»,
na verdade, pode ser várias coisas: uma entidade geográfica de contornos
difusos; uma identidade histórica e cultural; uma comunidade de interesses. A
Europa geográfica pode estender-se dos Açores aos Urais, mas a Europa dos
interesses está onde a Alemanha quiser. Facto curioso: a publicação deste livro
foi patrocinada por duas instituições alemãs, um centro da Universidade de
Leipzig e pelo Ministério das Obras Públicas da República Federal…
A
União Europeia – e é essa uma das suas tragédias – procura ser em simultâneo
todas as Europas que atrás de definiram, agrupando-as numa idée fixe. Repetimo-la: uma comunidade de interesses situada num
espaço geográfico onde se forjou, através dos séculos, uma identidade cultural
precisa mas difusa. Acontece que nem sempre estas três dimensões se articulam e
ajustam. Nem sempre os interesses coincidem com a geografia. Raramente os
interesses – sobretudo económicos – estão em consonância com os melhores
valores da identidade cultural europeia (daí a proliferação de negócios com
parceiros que não primam pelo seu apego à liberdade ou à democracia, ao
respeito pelos direitos humanos e à tolerância).
Os interesses da Alemanha, após a
reunificação, deixaram de estar – ou deixaram de estar apenas – no espaço geográfico da Europa. Após a queda do Muro, a
Alemanha passou a olhar para onde sempre quis, o ponto cardeal que sempre foi a
sua vocação e destino: o Leste. Para os países da Europa do Sul, a reunificação
foi uma tragédia – do ponto de vista dos interesses, não no dos valores ou
princípios.
Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster
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Um país, dois sistemas
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Palácio da Paz e da Reconciliação, Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster
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Daí
que, num certo sentido, o Cazaquistão seja muito mais «Europa» do que Portugal.
Os grandes gabinetes de arquitectura, que têm o faro apuradíssimo para estas
coisas, perceberam-no mais cedo do que quase todos nós, incluindo os académicos
da geoestratégia ou os profissionais da diplomacia. Não é por acaso que Sir Norman
Foster – ou, melhor dizendo, a firma Foster and Partners – projecta edifícios
arrojadíssimos para o centro de Astana ou de Almaty. Não é por acaso que Rem
Koolhaas, além da Casa da Música, no Porto, elaborou um projecto visionário –
e, por certo, bastante dispendioso – para uma «Cidade da Ciência», nas
imediações de Almaty. Ali corre o petróleo a jorros, abundam o gás natural e os
metais preciosos. O Cazaquistão é um dos maiores exportadores de
matérias-primas do mundo. Tem cerca de 15 milhões, um quarto da do Reino Unido,
para um território de 2,7 milhões de quilómetros quadrados, onze vezes maior do
que as Ilhas Britânicas. Desde 2000 que o Cazaquistão regista colossais taxas
de crescimento de 9% ao ano. É considerado pela Transparency International um dos países mais corruptos do mundo
(numa lista de 145 países, conquistou um desonroso 122º lugar). Mas nada disso
impediu que fosse escolhido em 2010 para assumir a presidência da OCDE. Podemos
ler muita coisa sobre o Cazaquistão, mas o artigo deste livro sobre a
vertiginosa ascensão da arquitectura de vanguarda em cidades como Astana,
Almaty e Aktau diz-nos mais do que vários tratados de geopolítica. Edifícios de
vanguarda num país que só formalmente é uma democracia, onde o presidente
Nazarbaev concentra em si quase todos os poderes. Desde 2007, o parlamento só
tem deputados do seu partido, o Nur Otan
(«Luz da Pátria»). Não admira que os parlamentares tenham aprovado legislação
que exime o presidente Nazarbaev da regra constitucional que impõe a renovação
do mandato do chefe do Estado. Durante vários anos, a televisão estatal foi
dirigida pela filha mais velha do presidente, Dariga Nazarbaev, que tem a sua
clique de fiéis à frente das principais companhias e empresas. Nazarbaev
intervém e tem a palavra final nos grandes negócios do país. Certamente que
muitas das empresas que aí operam tiveram que falar com ele, ou alguém muito
próximo dele, para se instalarem nas terras do Cazaquistão. A companhia
Tengizchevroil, por exemplo, é uma joint
venture entre a Chevron, a ExxonMobil, a Lukarco e a empresa casaque
KazMunayGaz. A italiana Agip está noutra parceria, a extrair gás na região de
Uralsk. Fábricas de automóveis? Nissan. Quem faz o cimento e os materiais das
unidades de extracção do petróleo? ThyssenKrupp, da Alemanha. Quem faz as
comboios de transporte ferroviário? General Electric, dos EUA. Tudo isto se
processa num país onde a população rural vive mal, muito, e continua a viver
mal, muito. A esperança de vida situa-se nos 62 anos para os homens e 73 para
as mulheres, sendo cada vez mais intenso o êxodo para as cidades. Estas,
sobretudo as maiores, são adornadas por edifícios desconcertantes de tão risíveis,
num estilo falsamente majestoso, mas que no fundo é uma metáfora do Cazaquistão
contemporâneo, uma ditadura falsamente majestosa.
Outro caso curioso, e revelador da
cupidez humana, é o do «turbo-urbanismo» em Pristina, na ex-Jugoslávia. Por
muito esotérico que o termo pareça ser, ele pretende ilustrar uma realidade que
vale a pena ser conhecida: após a fragmentação da Jugoslávia, interesses vários
obrigaram a construir rapidamente e em força. A presença inesperada de
refugiados, o afluxo de repatriados e a chegada de inúmeros funcionários de
organizações internacionais fizeram com que se tivesse de edificar a uma velocidade
turbo, quase sempre sem olhar a regras elementares de urbanismo e, claro está,
à estética dos edifícios. Predominou a construção em vidro espelhado azul,
pretendendo-se dar um ar «international» a casas construídas da noite para o
dia, no meio de ruas atravessadas por fios e cabos de todas as espécies, postes
de iluminação periclitantes, trânsito caótico. O artigo publicado neste The Post-Socialist é excepcional porque
retrata exemplarmente o impacto no espaço público de uma necessidade social
imperiosa, à mistura com a especulação imobiliária e a corrupção pública – mas
também privada. Tudo a acontecer num território com uma taxa de desemprego de
40% e diversas máfias a actuar, que de súbito se vê confrontado com a chegada de
hordas de gente e capitais internacionais. O saldo final é kitsch a valer, dir-se-ia numa paráfrase de Dâmaso Salcede. Se as construções do Cazaquistão são fashion e ofuscantes, aqui predomina a mixordice e edificação atamancada. Quando Rexhep
Lupi, o director de planeamento urbano de Pristina, tomou as primeiras e muito
tímidas medidas para pôr termo à balbúrdia do turbo-urbanismo, o que aconteceu?
Foi morto a tiro.
Turbo-arquitectura, turbo-urbanismo
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Local também a reter: Floreasca, arredores
de Bucareste. Construído para albergar a elite da era Ceucescu (aí existia, por
ex., uma escola experimental para ensino intensivo do inglês), encontra-se hoje
a ser alvo de um processo de «gentrificação» e, mais ainda, de «embelização» (beautification), com arranjos florais
que tentam esconder os arranhões do cimento em derrocada e coisas do género,
todas lindas, muito lindas. O número de lojas diminuiu, do mesmo passo que se
registaram infindos casos de apropriação do espaço público e cada qual tentou
demarcar o seu território através de gradeamentos, muros, etc., interrompendo
vias de passagem e até destruindo espaços verdes de fruição colectiva. A beautification romena não anda muito
longe daquilo que se faz em muitas cidades ou zonas de Portugal. Coloca-se uma
«via pedonal», uma alameda de palmeiras e meia-dúzia de floreiras e pronto, já
está – temos um «renovação urbana».
Floreasca, Bucareste, Roménia.
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Leitura recomendável, sem dúvida, a
deste livro The Post-Socialist City,
que nos diz muito sobre o mundo em que vivemos, que é um lugar estranho. Dele extraiamos,
e com razão, uma crítica à acção das grandes multinacionais e à venalidade
de alguns nomes grandes da arquitectura contemporânea. Muito superior a outro livro
que, na sua cegueira «militante», é acéfalo e superficial, Evil Paradises. Dreamworlds of Neoliberalism, editado por Mike
Davis e Daniel Monk (o capítulo sobre o Brasil como «o país mais injusto do
mundo» é de uma banalidade de bradar aos céus; do livro só se aproveita um
belíssimo ensaio-reportagem sobre a voracidade latifundiária de Ted Turner, ex-patrão
da CNN). Ainda que um pouco datado (é de 2010, creio), The Post-Socialist City traz-nos textos informados, estudos de caso
que cobrem um amplo espaço geográfico. A Europa já não mora aqui. Agora, vive algures
entre Berlim e o Cazaquistão. É tempo de percebermos isso.
António Araújo
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