sábado, 6 de setembro de 2014

Isokon.

 

 
 





 
 


A penthouse de Molly e Jack Pritchard


O restaurante-bar do Isokon



 

 
 
Cadeira, Marcel Breuer

Long Chair, de Marcel Breuer

 
 
 
 
 
 

Tommy Beresford removed his overcoat in the hall of the flat – esta é a frase com que Agatha Christie começa N or M?, a única novela de espionagem que publicou na sua prolífica carreira. In the hall of the flat. O livro foi escrito no Isokon Building e, por uma coincidência incrível do destino, achei-o num alfarrabista no preciso dia em que acabara de ler The Lawn Road Flats, de David Burke.
         aqui falei do Isokon, justamente a propósito do livro de David Burke, recentemente publicado. O autor é um especialista em história da espionagem, razão pela qual dedica muitas páginas desta obra aos vários informadores e agentes secretos que por lá viveram e se encontravam ao serviço da União Soviética. O subtítulo não engana: Spies, Writers and Artists. A personagem central, todavia, é – e nunca deixa de ser – o edifício, o Isokon Building, um bloco de 34 apartamentos desenhado por Wells Coates, sendo propriedade de Molly e Jack Pritchard. O arquitecto nascido em Tóquio e falecido no Canadá é, de certo modo, relegado para segundo plano: desenhou o Isokon e praticamente saiu de cena. Mas Molly e sobretudo Jack Pritchard são uma presença constante na história de um edifício inaugurado em 1934 (em festa abrilhantada por uma deputada conservadora…) e que até 1969 pertenceu aos seus primitivos proprietários, que para si reservaram a espaçosa penthouse do Isokon. Jack era um gestor cuja firma se chamava precisamente «Isokon» (aí fizera Marcel Breuer a sua famosa Long Chair, em 1936, e Egon Riss o não menos famoso Penguin Donkey, em 1939). Isokon daria o nome ao edifício que guardará a memória de Jack Pritchard para a posteridade. Ele e a mulher, imbuídos de um generoso espírito progressista e igualitário, cultores das esperanças do modernismo, procuraram construir um edifício ao mesmo tempo belo, simples e funcional para as classes médias. No final, quem lá acabou por morar foi a upper middle class e muitos nomes famosos, desde os exilados da Bauhaus, como Walter Gropius, Marcel Breuer e Lásló Moholy-Nagy, arquitectos como Egon Riss e Arthur Korn, o escultor Henry Moore, a escritora Agatha Christie, já ao tempo uma celebridade. Além das pequenas cozinhas existentes em cada apartamento, existia uma cozinha comunitária, um restaurante-bar privativo, serviços comuns de lavandaria e engraxadoria. Algo que nos faz lembrar – e muito – o Edifício das Águas Livres, sobre o qual já existem alguns livros, mas nenhum como este (bem, ao que conste, no Edifício das Águas Livres nunca viveram pessoas com a projecção de Walter Gropius ou Agatha Christie, mas ainda assim o seu leque de moradores bem justificava uma radiografia histórico-social como esta que David Burke escreveu).
         A história do edifício é algo irónica, pois constitui uma síntese, ou metáfora, de algumas esperanças perdidas: sendo idealizado como uma comunidade progressista, o Isokon converteu-se num ninho de espiões que trabalhavam para a União Soviética. O que não significa, obviamente, que o bloco de apartamentos fosse, todo ele, uma Casa da Rússia, à maneira de Le Carré. Num dos apartamentos morava o arqueólogo e filólogo australiano Vere Gordon Childe. Todos lemos, na juventude, livros de V. Gordon Childe, tal foi a projecção deste historiador marxista, que chegou a ser mencionado num dos filmes da série Indiana Jones. Todos lemos e conhecemos, sobretudo, a sua obra sobre arqueologia, domínio no qual se notabilizou, especialmente quando fez as célebres escavações em Skara Brae, Orkney, entre o final dos anos 20 e o início da década de 30. O grande Bill Bryson, no seu estilo inconfundível e maravilhoso, conta a história de Skara Brae no livro At Home. Condições naturais muito específicas permitiram a preservação desse local antiquíssimo, também ele, como o Isokon, uma comunidade bem planeada. Até prisão tinha… Gordon Childe, nome grande da arqueologia marxista, era tido (creio que pela amiga Agatha Christie) como um dos homens mais feios do mundo. Ao longo da sua vida, não se lhe conhece qualquer relação afectiva ou amorosa com outro ser humano. Tímido até ao limite, consegui ainda assim conquistar fama graças aos seus programas na BBC. Possuía uma memória que era um prodígio e uma capacidade assombrosa de aprender línguas estrangeiras, novas ou antigas. Solitário, gostava de boa comida e de socializar com os estudantes e amigos, em ambientes restritos. A aposentação, em 1956, seria um rude golpe. Doou parte da biblioteca, outrs seria vendida. E decidiu regressar à sua Austrália natal, uma decisão que a todos surpreendeu. Assim o disse, assim o fez. Ao chegar lá, visitou a parentela e foi até ao cimo de Govetts Leap, um local majestoso, com uma vista de estarrecer sobre Grose Valley. Deixou os pertences meticulosamente arrumados à beira do precipício, incluindo uma nota escrita de incrível serenidade e lucidez (vale a pena lê-la, a sério), e lançou-se no vazio. Há quem diga que estava deprimido por ter abandonado o ensino, outros garantem que suspeitava ter um cancro; outros dizem – porque Gordon Childe o dizia – que tinha pavor de envelhecer, de ficar senil e dependente de apoio externo, como agora sucede com o Estado português. Há quem afirme ainda que uma das causas da sua morte precipitada foi a desilusão com o marxismo, após a revolução húngara e a denúncia dos crimes de Estaline feita por Nikita Krutchev.
         Com isto desviámo-nos do nosso passeio pelo Isokon e pelo livro de David Burke. Esta história de V. Gordon Childe é apenas uma, entre a de tantos inquilinos que passaram pelos apartamentos de Lawn Road, no elegante bairro de Hampstead, cidade de Londres. Porventura, o mais misterioso dos residentes foi Arnold Deutsch, nem mais nem menos do que o recrutador do «cinco de Cambridge», que durante anos passaram informações secretas para lá do Muro: Philby, Burgess, MacLean, Blunt… e não vou entrar na inyterminável querela sobre quem seria o «quinto homem».
         O edifício é produto das esperanças numa sociedade bem-ordenada e planificada, acusando a influência de um think tank a que Pritchard pertencia, o Political Economic Planning. Na altura, quando mal se conheciam os crimes já em curso na URSS, muitos olhavam com fascínio para os resultados da NEP (Nova Política Económica) de Lenine. Muitos queriam uma vida melhor para todas as classes, mais liberdade e igualdade sexual, acesso generalizado das massas à educação. Era uma aspiração partilhada por gente tão diversa como Keynes, Bertrand Russell ou Maurice Dobb. Mas, se olharmos para a lista dos moradores originais do Isokon, verificamos que o edifício não era tão «socialista» como pretendiam quem o concebeu. Entre os residentes, um amigo próximo de Winston Churchill, Ralph Edward Gathorne-Hardy, filho do 3º conde de Cranbrook e de Lady Dorothy Montagu Boyle, educado em Eton e no Christ Church College, em Oxford. Outro morador do foi o escritor e pintor Adrian Sytokes, filho de um stock broker multimilionário… Não se pense, porém, que o Isokon era uma moradia elitista e snobe (os apartamentos, apesar de funcionais, não era propriamente espaçosos…). Graças aos múltiplos talentos de Jack Pritchard, foi uma casa aberta, luminosa e vanguardista mas sem pretensões a ser o que não era; contudo, também não era, obviamente, um edifício para trabalhadores de poucas letras.
         O livro de Burke, que recomendo a valer, não é uma obra sobre arquitectura. É a história de um edifício, em especial das pessoas que lá moraram. Entramos na intimidade de Agatha Christie, das poucas residentes do Isokon que nunca revelou inclinações políticas. Apesar da ausência forçada do marido, parece ter sido feliz ali, na companhia da escrita. Lá fora todos sofriam os horrores do Blitz e procuraram adaptar as casas aos bombardeamentos nazis (o que, aliás, também sucederia no Isokon). Com algum voyeurismo, conhecemos, nas páginas desta obra fascinante, os problemas domésticos com o aquecimento ou a canalização que afectavam personalidades grandes do século XX, com biografias interessantíssimas, vidas cheias, como Walter Gropius ou Moholy-Nagy. Gente apanhada nas tormentas das duas guerras. A eles se juntaram, sem que houvesse relações íntimas de vizinhança, famílias em que cada qual trabalhava para a espionagem do Leste. Mas, como o livro lhes dedica muitas páginas, não vou estragar o interesse dos leitores. Basta uma estatística: no total, pelos Lawn Road Flats passaram nada menos do que 32 agentes ou sub-agentes ligados à espionagem soviética. Será por acaso que a única novela de espionagem de Agatha Christie foi escrita ali? 
         O Isokon é um edifício histórico bela beleza chã das suas linhas, pela atenção aos pormenores mais ínfimos, pelo cuidado extremo de quem o concebeu e, já agora, pela gestão atenta e diligente de Jack Pritchard. Quando foi restaurado, quem o conheceu ficou horrorizado com a cor com que o pintaram, diferente do branco original que o fazia assemelhar-se a um paquete de cruzeiros aportado no meio de Londres. O edifício foi vendido por Pritchard à revista New Statesman, em 1969, e, em 1972, por esta ao Camden London Borough Council. À semelhança de Lili Caneças, entrou num dramático processo de deterioração, sendo mesmo abandonado na década de noventa. Em 2003, foi recuperado, na linha de uma estratégia sistemática de salvaguarda do património arquitectónico do modernismo que, infelizmente, só chegará a Portugal quando tudo estiver arrasado e morto para sempre. Entretanto, enquanto tudo não desaba, discutam-se questões essenciais: por exemplo, os brasões ajardinados da Praça do Império.
 
Para a Elena Piatók, com amizade 
 
António Araújo
 
 
 
 

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