Foi
recentemente publicada em Portugal pela Dom Quixote a obra “Impérios em Guerra,
1911-1913”, organizada por Robert Gerwarth, que reclama uma perspectiva
inteiramente nova sobre a Primeira Guerra Mundial, segundo a qual o conflito
deve ser entendido como uma guerra de sobrevivência e de expansão imperiais,
dominada por um processo de realinhamento de padrões de poder e de legitimidade
globais.
Se
é certo que esse é um modo de entender o conflito que ilumina alguns
acontecimentos e decisões, não é menos certo que a Grande Guerra foi muito mais
do que isso. Por outro lado, convinha que se fosse congruente. Por exemplo,
face à afirmação de um vinco imperial tão marcado, não faz sentido que o volume
português apresente na capa uma fotografia do que parece ser o avanço de uma
companhia inglesa por entre as ruínas de uma cidade da Flandres ou do norte da
França. A edição inglesa exibe alguns poilus
franceses e, em primeiro plano, um tirailleur
senegalês, o soldado colonial por excelência desde Napoleão III. Não há dúvida
de que, essa sim, é uma capa com sentido.
A
própria organização do volume levanta algumas perplexidades. Junta impérios
coloniais, isto é, que dispõem de territórios separados geograficamente da
metrópole e com estatutos político-administrativos que consagram a sua
dependência, e impérios contíguos como a Áustria-Hungria e a China, como se
fosse tudo a mesma coisa. Viena apenas almejava pequenos avanços nos Balcãs e
desconhecem-se ambições de expansão territorial da China de então, mais
preocupada com a recuperação das áreas que lhe tinham sido amputadas numa fase
de tremenda fraqueza do Império do Meio, sendo, aliás, questionável apelidar a
China de Império. Quando entrou finalmente em guerra, em Agosto de 1917, o objectivo
fundamental da China era apenas recuperar a península de Shandong. Não parece
que tal possa ser considerado um objectivo imperialista.
O
facto é que a grande competição imperial ocorreu no final do século XIX, e opôs
o Reino Unido à França e à Rússia. No primeiro caso, dois impérios coloniais
competiam sobretudo em África e no Sudoeste Asiático. No segundo, um império
contíguo como a Rússia, que pudera expandir-se no norte da Ásia (e vendera o
território não contíguo do Alasca), continuava pressionada pelo seu sempiterno
complexo de cerco (que o diga Putin), pelo que procurava descer para a Ásia
Central, ameaçando a Índia. É bom recordar que, no século XIX a Inglaterra
venceu a França e a Rússia, mas nunca esteve em guerra com a Alemanha. A Rússia
era a autocracia mais absoluta, a servidão mais abjecta, um parceiro
impensável. A França era a ambição revolucionária e napoleónica, colocando a
sua ambição sempre acima das suas posses.
Um
diplomata inglês, Sir Robert Vansittart, resumiu assim o modo como para além do
canal se contemplava o vizinho:
“Victorian England was vaguely convinced that nineteenth-century France
had too good a time; that Frenchmen laughed too much and cooked too well … More
serious still, Victorian England suspected that the French put more into, and
got more out of, sex than the English. Victorian England had not the vaguest
idea of how it was done, but was sure that the advantage was not fair, and
quite sure that it was not nice!”
Fora
de brincadeiras, no final do século XIX a rivalidade entre Inglaterra, França e
Rússia era muito séria. Mas o medo de uma nova potência continental mudou tudo.
Nada melhor do que um medo comum para unir. Em 1904, começou a formar-se a Entente Cordiale, não para criar uma
aliança defensiva contra terceiros. Tratou-se apenas de firmar um entendimento
sobre a partilha do mundo. Ou seja, deixar resolvida a questão imperial e
passar a tratar de assuntos sérios: como conter a Alemanha. Por isso, parece
deslocado dizer que a Primeira Guerra é acima de tudo um conflito imperial: os verdadeiros
competidores globais já tinham regulado as suas ambições para poderem enfrentar
juntos, como aliados, a nova potência que os ameaçava na Europa.
Desde
1871, unindo-se, a Alemanha conseguira ultrapassar a sentença que Voltaire em
tempos lhe impusera: “A Alemanha está condenada à pobreza eterna”. A riqueza
alemã já assustava os seus vizinhos, em especial a França e a Rússia. Mas o
desvario de Guilherme II impediu que a Alemanha se contentasse em dominar a
Europa como potência industrial, comercial e financeira. O Kaiser ambicionou o
palco global, criando um instrumento igual ao da Inglaterra: uma marinha de
guerra.
No
entanto, o que ameaçava a Inglaterra, e a levou a entrar em guerra, não era propriamente
a ambição imperial alemã. Comparado com o britânico, o império alemão era uma
gota de água no oceano. E, como o mundo já estava divido, não havia por onde ele
pudesse crescer sem abrir um conflito. Ora, quem na Alemanha estaria disposto a
entrar em guerra por distantes colónias e ganhos incertos?
Muito
mais importante, como aliás se viu durante a guerra, do que a marinha era o
formidável exército alemão. E este era uma força de combate do terreno europeu.
Para os ingleses, para os franceses, para os russos, a Alemanha pura e
simplesmente não podia ganhar a guerra na Europa, porque dominaria todo o
continente. Imaginam o que seria o Kaiser ter poder para impor a toda a Europa
as suas diatribes que, como contámos aqui no Malomil a propósito do caso Daily Telegraph, faziam corar de
vergonha os membros do seu governo e do parlamento alemão?
Dito
isto, não se deve desvalorizar a dimensão global do conflito e a deriva
imperialista que a justificou. Mas sobretudo porque ela é o resultado de um
nacionalismo agressivo oitocentista que operou uma transformação do
imperialismo que, de prática informal de carácter essencial comercial, se
tornou doutrina de conquista e de expansão territorial. Ora, é interessante
notar que os custos das colónias foram sempre superiores aos benefícios
económicos que delas foram retirados. Já houve quem alvitrasse, com sagaz
ironia, que a Alemanha poderia ter alcançado a melhor das vitórias, aquela que
se obtém sem combater, se tivesse esperado que a Inglaterra se esgotasse por si
própria, por meio de gastos crescentes com as colónias. Afinal, parafraseando o
que dizia Norbert Elias da aristocracia, a decadência novecentista dos impérios
deveu-se ao facto de todos gastarem em função do estatuto e não das necessidades.
Por outras palavras, viviam acima das suas posses. Mas isso é outra estória; nossa,
de sempre, de outros, por vezes.
Sendo
assim, mesmo que concluíssemos que a guerra foi, sobretudo, motivada por
ambições imperiais, o mínimo que se pode dizer é que não valia a pena. Na
época, o sucesso económico e financeiro resultou sempre do comércio com
mercados avançados e dos investimentos em mercados emergentes, como a Argentina
ou o Brasil. Por outras palavras, o imperialismo não foi uma exigência do
sistema capitalista, ou a consequência de necessidades objectivas dos
empresários e investidores capitalistas. O imperialismo manifestou-se, antes do
mais, como um apelo passional que tentou mobilizar as nações contrariando a
racionalidade económica. Basta notar que, em 1914, o Reino Unido era o maior
importador dos produtos alemães e a Alemanha constituía o segundo melhor
mercado para as exportações britânicas. Tantos esperaram então que o doce
comércio, pacificando os homens para servir os seus interesses, tornaria
impossíveis as guerras. Houve quem o quisesse provar cientificamente. Kant
chegou a argumentar que o Estado se veria forçado, malgré lui, a fomentar a nobre paz.
Schumpeter,
em Imperialism and Social Classes,
bem o disse: o capitalismo, como exercício de racionalidade, não podia ser
responsabilizado por tendências não objectivas para uma expansão forçada, sem
limites utilitários definidos, isto é, inclinações irracionais, puramente
instintivas, para a guerra e a conquista. O direito das grandes nações a ter um
império mais não era do que o direito a suicidar-se financeiramente. Este imperialismo
foi seguramente uma pulsão por vezes incontida, mas que estava destinada a não
durar. Na verdade, a criação nas comunidades políticas de então de um espírito
nacionalista, belicista e expansionista foi apenas um mecanismo para alcançar a
unidade nacional, de modo a amortecer tensões políticas e sociais internas. Não
se tratava de dominar o mundo mas de não perder o controlo do poder interno.
José
Luís Moura Jacinto
Sem comentários:
Enviar um comentário