Kim Song Sil, Cesta de Flores Kim Jong Il.
Bordado, 64 x 80 cm, 2003.
Oficinas Mansudae
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Esta
história entala muita gente.
Em
Frankfurt, no nº 29 da Kaiserstrabe,
situa-se o imponente edifício-sede do Banco Central Europeu. Quem quiser ir de
metro, deve apear-se na estação Willy-Brandt Platz. É aí o coração do poder
financeiro do Velho Continente, de uma Europa que se compraz na afirmação de
«valores» e «princípios»: a liberdade, a democracia, o respeito pelos direitos
humanos.
O edifício-sede do Banco Central Europeu, Frankfurt
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A
poucos metros da Kaiserstrabe,
mesmo ao virar da esquina, existe uma zona arborizada, um pequeno jardim entre as
torres frias de vidro e aço. Depois, numa praceta despida, uma fonte com uma
estátua. Märchenbrunnen ou, se
quisermos, «Fonte dos Contos de Fadas». Em Berlim existe outra «Fonte dos
Contos de Fadas», da autoria de Ludwig Hoffmann (1852-1932), um dos mais famosos arquitectos
da cidade (entre centenas de outras obras, desenhou, em co-autoria com Alfred
Messel, o edifício destinado a albergar o esmagador Museu Pérgamo). Nas suas Memórias, Hoffmann conta a atribulada
história da construção da Fonte dos Contos de Fadas, concebida para adornar o
primeiro jardim público de Berlim, o Volkspark
Friedrichshain. Muitas das obras de Hoffmann não chegaram a ser construídas
devido ao eclodir da Guerra de 1914-18, outras foram devastadas durante a
guerra de 1939-45. Os dois lados da Europa: um, majestoso e apolíneo, marcando
o traço historicista de Ludwig Hoffmann; outro, furioso e dionisíaco, arrasando as
obras criadas no seu ateliê.
A
Fonte dos Contos de Fadas de Frankfurt foi desenhada por um autor menos famoso,
Friedrich Christoph Hausman (1860-1936). A estátua art-nouveau
é encimada pela figura de uma jovem graciosa e frágil, que, segundo dizem
alguns guias turísticos, representa a bela filha de um padeiro de Frankfurt. O
modelo terá sido uma rapariga de 19 anos, lavadeira de profissão, de seu nome Margaret
Endres, que mais tarde casou com o músico Edward Gelbart. A estátua foi
construída graças ao generoso e vultuoso financiamento de um fundo instituído
pelo mecenas Leo Gans (1843-1935), e destinado a apoiar as artes e a cultura. Nesse gesto
ecoa a presença da Europa civilizada e culta. O mundo de ontem. A Fonte das
Fadas foi inaugurada em Agosto de 1910, mas teve vida curta. As figuras de
bronze que se encontravam na sua base foram derretidas durante a 2ª Guerra,
para apoiar o esforço belicista germânico. Salvou-se a ninfa, esculpida em
mármore branco do Tirol, mas, ao que sei, também ela se perdeu nos escombros do
pós-guerra.
Frankfurt, Märchenbrunnen, imagens dos anos 1910-20
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Em Maio de 2006, a estátua foi
reinaugurada, na sua versão au complet,
com uma nova figura feminina no topo e a base contendo representações de
lagartos, crocodilos e crianças, entre outras feras. Agora, daqui para a frente
só há dragões. Em Novembro de 2005, dois alemães viajaram até Pyongyang. A sua
missão não era tratar dos direitos humanos ou do programa nuclear da Coreia do
Norte. Voaram até à Coreia para contactar os responsáveis da Oficina Artística
Mansudae (tradução algo bárbara de Mansudae
Arts Studio). A Fonte das Fadas fora totalmente destruída e os seus planos
originais não constavam dos arquivos municipais de Frankfurt. Havia que
reconstruir o monumento apenas com base em fotografias dos anos 20. A cidade de
Frankfurt queria a sua estátua reedificada – e exibida com esplendor «antigo» nas
imediações do Banco Central Europeu. A Europa tinha liberalizado os movimentos
de capitais em 1990, introduzido o euro em 1999. Nesse mesmo ano de 1999,
entrara em vigor o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Decidiu-se que o Banco
Central Europeu teria a sua sede em Frankfurt. E assim se fez. Já agora: está a
ser finalizado, ou já foi mesmo inaugurado, o novo edifício-sede do Banco Central
Europeu, da traça do arquitecto austríaco Wolf Dieter Prix (visita virtual aqui).
Duas torres, com 165 e 185 metros de altura, respectivamente, equivalendo a 48
pisos cada uma. As torres da nova sede do BCE estão ligadas por um jardim
suspenso e serão decoradas por esculturas de artistas dos vários
Estados-membros da União (os resultados do concurso internacional irão ser
anunciados já neste Outono). Custo da obra: mil milhões de euros, mais coisa
menos coisa. Num momento em que a Europa atravessa uma crise como a que
vivemos, é estranho construir algo que custa mil milhões de euros. Mas, como bem
sabeis, são insondáveis os desígnios desta União.
Wolf Dieter Prix, Nova sede do Banco Central Europeu, Frankfurt
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Insondáveis foram também os motivos que
levaram os alemães a recorrer à Coreia do Norte para reconstruir uma estátua. E
logo ali, no coração da cidade, a poucos metros da sede Banco Central Europeu,
perto da estação de metro com o nome de Willy Brandt. A Östpolitik de Brandt, concorde-se ou não com ela, visava uma
abertura ao Leste, buscando a paz e a segurança europeias, em nome da democracia
e dos direitos humanos. A Östpolitik das
autoridades de Frankfurt, ao contratarem os escultores norte-coreanos, não visa
nada de nada. Apenas visou obter uma estátua ao melhor preço e por quem se
especializou em intervenções artísticas monumentais, ao serviço de uma das mais
cruéis ditaduras do planeta. Por esses anos, em 2005-2006, a Coreia do Norte
esteve presente na Feira do Livro de Frankfurt. Falava-se então na necessidade
de chamar a Coreia do Norte, que tem um feitio terrível, ao convívio ameno dos
povos democráticos. Daí o álibi para lhes encomendar a estátua. Passaram quase
dez anos, não se viu nada. Mudanças, só para pior. E a estátua permanece lá, no
centro de Frankfurt, feita pelos artistas da Mansudae.
Märchenbrunnen, na versão actual, nas imediações do BCE
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Oficinas Mansudae, o modelo de crocodilo para a estátua de Frankfurt...
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Sendo, muito provavelmente, a maior
fábrica de objectos artísticos do mundo, com um belo site em inglês e tudo (http://www.myinweb.com/mansudae/), a
Mansudae emprega cerca de 4.000 pessoas. É a única instituição autorizada a
fazer retratos da dinastia Kim, que depois são reproduzidos ad nauseam. Tem trabalhado e feito monos horríveis para glória dos
regimes mais corruptos e autocráticos desta Terra, actuando especialmente em
África, como já veremos. O director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt,
Klaus Klemp, descobriu a Mansudae em 2004. Ficou maravilhado. Justifica a
decisão de contratar a empresa norte-coreana com o argumento inacreditável de
que na Europa já ninguém consegue produzir arte realista. Afirma que a atracção
pela arte conceptual e abstracta tirou aos escultores europeus – e de todos os
países do mundo, que não os norte-coreanos… – a capacidade de reconstruir a estatuária
fin-de-siècle. «Os artistas mais
proeminentes da Alemanha pura e simplesmente já não fazem trabalhos realistas.
Pelo contrário, os norte-coreanos têm apurado a sua experiência neste estilo,
exactamente aquele que queríamos para refazer uma escultura de 1900», teve o
desplante de afirmar o director do Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt (aqui). No fundo, como se a
opção fosse apenas escolher entre a Alemanha e a Coreia do Norte. Ou como se a
«experiência» adquirida pelos norte-coreanos na arte realista não o tenha sido
à conta de fazerem centenas de estátuas representando Kim Il Sung, Kim Jong Il,
Kim Jong Un. «Tratou-se de uma decisão puramente técnica», disse Klaus Klemp.
Não, não foi. Contratar uma fábrica como a Mansudae é uma decisão política. Porquê? Porque a Mansudae é uma fábrica política. Falta falar do
essencial, o preço. A Mansudae fez o trabalhinho todo por 200 mil euros,
incluindo shipping and handling de
Pyongyang até Francoforte-sobre-o-Meno. Dizer que o preço se deve aos salários
miseráveis da Coreia do Norte é algo que certamente não interessará recordar
aos alemães que contrataram a Mansudae. Como se refere aqui,
na Coreia do Norte o salário médio é de 50 cêntimos por mês. O salário mensal
dá para comprar dois quilos de arroz, nada mais. Nas imediações do Banco
Central Europeu, o baluarte da moeda única e das suas promessas de prosperidade,
encontramos uma estátua feita por pessoas que nem uma moeda de euro ganham num mês
inteiro de trabalho. Provavelmente, os cerca de 1.000 artistas profissionais
que trabalham na Mansudae ganham mais do que isso. Mas essa desigualdade não
favorece a atitude dos alemães; pelo contrário, torna-a ainda mais abjecta e
vil.
Há uma coisa, porém, em que temos de
concordar com os alemães de Frankfurt: os Estúdios Mansudae são únicos no
mundo. A este propósito, recomendo muito a leitura de um livro, Art Under Control in North Korea,
da autoria de Jane Portal. Obra profusamente ilustrada, de leitura fácil e,
para mais, não excessivamente volumosa (não chega às 200 páginas, entre texto e
abundantes imagens). A Mansudae é frequentemente mencionada, quase em todas as
páginas. Pela leitura do livro, percebemos a dimensão do seu poder. A estátua
monumental de Kim Il Sung, que se ergue nos arredores de Pyongyang, com vinte
metros de altura – e perante a qual os norte-coreanos são «aconselhados» a
fazer uma vénia e dobrar a espinha –, foi feita pela Mansudae. E, já que
falamos nela, foi feita com pouco profissionalismo: datada de 1982, era de bronze,
posteriormente substituído quando começou a acusar as marcas da corrosão do
tempo, algo inconcebível para a representação de um Padre Eterno. Também de 1982,
e pelas mãos da Mansudae, a Torre Juche, na capital norte-coreana. Com 170
metros, é a maior torre de pedra do mundo. No cimo, uma chama ou tocha que
acende pela luz eléctrica, simbolizando o poder incandescente do pensamento juche, também ele bastante electrizante.
Mais antiga, mas também em grande, a Estátua de Cholima. 46 metros de altura,
bronze, datada de 1961.
Monumento a Kim Il Sung, Pyongyang.
Oficinas Mansudae
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Torre Juche, Pyongyang.
Oficinas Mansudae
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Existem outras oficinas artísticas na
Coreia do Norte, todas sob apertado controlo estatal, mas a maior de todas – de
longe – é a Mansudae, de seu nome completo Mansudae
Changjaska. Fundada em 1959, esteve sempre sob controlo directo dos
sucessivos membros do clã Kim, que acompanham pessoalmente, repete-se, o que
por ali se faz. Os campos de acção são vários e divididos em dez departamentos:
pintura a tinta, pintura a óleo, escultura, impressão e cartazes, pintura
mural, cerâmica, manufactura, desenho e design. Além disso, uma especialidade
local: pintura com pó de pedra. Cerca de 100 membros da Mansudae receberam o
título de «Artista de Mérito». Na Coreia, essa distinção foi atribuída a 200
artistas, o que significa, portanto, que a Mansudae arrecada 50% dos títulos.
Existem cerca de 50 a 60 «Artistas do Povo», dos quais 30 integram os quadros
de pessoal da Mansudae. Por ano, a Mansudae produz aproximadamente 4.000 obras,
das quais cerca de metade resultam de encomendas oficiais. Algumas são vendidas
para o exterior, através do Mansudae Overseas Project, com clientela no Japão,
na Coreia do Sul e na China. A Alemanha juntou-se ao clube em 2005, mas também
há africanos – muitos. Já vamos falar deles. Antes disso, só um breve apontamento
sobre Chung Young-man. Considerado um dos maiores calígrafos e pintores a tinta
da Coreia do Norte, foi secretário-geral do comité central da Federação dos
Artistas Coreanos. Recebeu o título de «Artista de Mérito» em 1974 e o Prémio
Kim Il Sung em 1989, sendo elevado à categoria de Herói em 1991 e, como se não
bastasse, de Duplo Herói, em 1997. Faleceu em 1999. E era vice-presidente da
Mansudae, claro está. Agora vamos a África.
Em Dacar, no Senegal, ergue-se o piramidal Monumento da Renascença Africana.
Comecemos por este fantástico vídeo:
Inaugurado
em 2010 e com 49 metros de altura, é mais alto do que a Estátua da Liberdade ou
que o Cristo Redentor. Aliás, é a mais alta estátua do mundo fora da Ásia e da
ex-URSS. A sua monumentalidade decorre não apenas da dimensão do objecto; para
ela contribui ainda o facto de estar pousada numa colina de 100 metros de
altura, no subúrbio de Ouakam. Representa em bronze uma família africana ao melhor
estilo do realismo socialista. A criança ergue a mão na direcção do Atlântico. O
desenho é do escultor romeno Virgil Magherusan, que começou a carreira a
trabalhar para os artistas que estavam ao serviço de Ceaucescu e mais tarde se
celebrizou pelas suas esculturas de cavalos e soldados, bem como por incursões
ousadas em temáticas eróticas. O projecto de obra coube ao arquitecto senegalês
Pierre Goudiaby Atepa,
autor da horrenda Porte du Troisième millénaire, em Dacar, que por pudor nos abstemos de exibir ao público. Pierre Atepa dirigiu a Ordem
dos Arquitectos do Senegal, foi designado conselheiro especial do Presidente Abdoulaye Wade
em matéria de arquitectura. Convém referir que em matéria de arquitectura
Pierre Atepa é um artista a valer: proclamou arquitecto da sede da Banque centrale des États de l’Afrique de
l’Ouest, mas na barra dos tribunais o seu colega Cheik Ngom conseguiu
provar ter sido o verdadeiro autor do projecto. Nada disso impediu Pierre Atepa
de abrir ateliers na Gâmbia, na Guiné Bissau, no Mali, no Togo, na Mauritânia,
no Chade, no Burkina Faso, como não o impediu de ser eleito presidente da União
dos Arquitectos de África. Aliás, é membro da Academia Internacional de
Arquitectura. Em 2006, abriu um centro com o seu nome («Espace Atepa»), nos
Campos Elísios, Paris. E, em 2010, uma sucursal em Pequim. Na sua terra natal,
nos tempos do Presidente Abdoulaye Wade, os colegas chamavam-lhe «artista
oficial do Rei Sol». Invejosos.
O arquitecto: Pierre Atepa.
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Como
se disse, a monumental estátua de Dacar foi construída pela Mansudae.
Trabalharam nela cerca de 150 artistas norte-coreanos, sendo uma obra pessoal
do antigo Presidente senegalês, Abdoulaye Wade, cuja biografia é riquíssima de
pormenores sórdidos e escabrosos, envolvendo até acusações de homicídio do
vice-presidente do Conselho Constitucional. Na versão francesa da Wikipedia,
afirma-se que, após concluir estudos superiores, entre 1952 e 1953 obteve
«diversos certificados em várias faculdades da Universidade de Besançon» (aqui).
O Presidente: Abdoulaye Wade.
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Oficialmente,
diz-se que o Monumento da Renascença Africana custou cerca de 25 a 27 milhões
de dólares. Fontes credíveis apontam, todavia, para um custo total de 70
milhões. Os trabalhos começaram em 2002, a construção em 2008, prevendo-se
terminar em 2009. Atrasou-se. Só esteve pronta em 2010, sendo inaugurada a 4 de
Abril desse ano, em comemoração do 50º aniversário da independência do Senegal,
numa cerimónia que contou com a presença de 19 chefes de Estado africanos. Além
deles, altos funcionários da Coreia do Norte e uma delegação afro-americana
chefiada pelo reverendo Jesse Jackson. Enquanto isso, nas ruas de Dacar
eclodiam manifestações exibindo «estátuas», em protesto contra a realização de
uma obra desta envergadura num país pobre, flagelado pelo desemprego e pela
miséria. Nos tempos de Wade, que abandonou a Presidência em 2012, a percentagem
de senegaleses em situação de pobreza atingiu os 54%, com uma inflação
galopante. A ajuda internacional representava 10% do PIB senegalês. Terá
servido essa ajuda internacional para financiar as dezenas de milhões de
dólares que custou o Monumento da Renascença Africana? Perguntas sem resposta. Mas não se pode pôr em causa que tudo isto é muitíssimo ilustrativo da corrupção e nepotismo que grassam em vários Estados africanos. E da rapina neocolonial a que são sujeitos por potências estrangeiras, muitas vindas da Ásia. Tudo ocorre com a cumplicidade das elites locais, que encontraram uma nova forma de colonialismo: colonializaram os seus próprios países, capturando-os, e aos seus recursos, em benefício pessoal e das cliques que alimentam. Veja-se o caso do monumento que, por ironia, se chama da «renascença africana». Edificado por um Presidente que quis chamar a si uma parcela dos lucros de exploração, projectado por um arquitecto que era seu apaniguado. Contratado aos norte-coreanos, custando milhões num país em que a população vive miseravelmente. Diz-se que a Coreia do Norte, em vez de dinheiro, recebeu terras em troca, hectares a perder de vista.
A figura feminina, vista a partir da cabeça da figura masculina. O inconfundível estilo Mansudae. |
Dacar, Senegal, Monumento da Renascença Africana
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Reivindicando
ter sido uma ideia sua, o Presidente Wade reclamou para si uma percentagem de
35% do valor total da obra (outras fontes referem que reclamou, isso sim, uma
percentagem do preço dos bilhetes de entrada). A obra provocou controvérsia
desde o início. Apresentada como uma evocação da ideia de renascença africana, conceito com um longo historial,
despertou o repúdio dos sindicatos senegaleses, que se queixaram de uma
empreitada destas proporções estar a ser feita por estrangeiros numa época em
que a taxa de desemprego no país era de 50%. Abdoulaye Wade defendeu-se: «Só os
norte-coreanos seriam capazes de fazer a
minha estátua. Eu não tinha dinheiro» (itálico acrescentado). Usou, no fundo,
os mesmíssimos argumentos utilizados pelo director do Museu de Artes Aplicadas
de Frankfurt para justificar um facto inédito: a Alemanha é o único país
democrático do mundo a ter contratado os serviços da Mansudae. Para reconstruir
uma estátua perto da sede do Banco Central Europeu. Sempre a lógica do think big: nova sede do BCE com custo de
mil milhões de euros, estátuas com mais de cem metros de altura, uma fábrica
norte-coreana cujas instalações ocupam uma área equivalente a 22 estádios de
futebol. Já agora, outros números grandes: segundo as Nações Unidas, 30% das
crianças norte-coreanas sofrem de malnutrição; no ano em que se celebrou o 100º
aniversário do nascimento de Kim Il Sung, 44,8% de todo o Orçamento do Estado foi destinado a erigir monumentos à sua
memória. Também há think small: o
salário médio de um norte-coreano são 50 cêntimos/mês, como vimos.
A clientela da Mansudae inclui países
como a Argélia, Angola, o Benim, o Camboja, o Chade, a República Democrática do
Congo, o Egipto, a Guiné Equatorial, a Etiópia, a Malásia, Moçambique,
Madagáscar, Namíbia, Senegal, Síria, Togo e Zimbabwe. Por ano, a Mansudae
International movimenta algo como 160 milhões de dólares, de acordo com uma
estimativa de 2011 (aqui).
O trabalho feito resume-se numa palavra: horrível. A fábrica ostenta nas suas
paredes os dizeres: «Quando o Partido dá ordens, nós executamos!». É verdade. Os
artistas da Mansudae, petrificados há décadas no realismo socialista em versão
baratucha e made in China, são
incapazes de fugir das normas e das convenções. Quando os alemães que
contrataram a Mansudae viram os primeiros esboços ficaram horrorizados com o aspecto
anguloso e sem vida da estatuária, tendo de explicar que o realismo socialista
não estava muito em voga em Frankfurt e que era necessário suavizar um pouco a
rigidez das linhas. «Foram muito compreensivos» − diz, justificando-se, Philipp
Sturm, o homem que em 2005 acompanhou Klaus Klemp na fatídica viagem a
Pyongyang.
Também o Presidente senegalês ficou
horrorizado quando viu as primeiras versões da «sua» estátua monumental, com
uma família africana de aparência oriental (que ainda mantém, aliás). No país,
os muçulmanos reprovaram a nudez dos corpos musculados. Nas mesquitas, os imãs
emitiram uma fatwa implorando a Alá
que o país não fosse castigado por ter construído uma estátua tão obscena,
contrária aos mandamentos do Profeta. Por sua vez, o Presidente Wade (que aos
83 anos anunciara candidatar-se a um novo mandato…) teve de pedir desculpas à minoria cristã, por, numa entrevista, ter comparado a estátua a Jesus Cristo.
O arcebispo de Dacar disse sentir-se «humilhado» pelas palavras presidenciais. Os
movimentos feministas senegaleses protestaram pela aparência submissa da
mulher. Mas, como disse à Reuters um senador senegalês, a arte, a grande arte, é sempre polémica: «Todos
os grandes trabalhos arquitectónicos suscitaram controvérsia – vejam a Torre
Eiffel, em Paris». Por seu turno, o Ministro da Cultura senegalês, Mamadou Bousso Léye, iria mais longe. Asseverou que o
Monumento estava tão bem edificado (no cimo de uma colina vulcânica…) que se
esperava vir a ter uma duração de 1200 anos. Nem mais, nem menos.
Construída para honrar a Renascença
Africana, a soviética Sagrada Família de Dacar é bem uma síntese da África do
nosso tempo, em que a pobreza de milhões convive com os milhões de muito
poucos. Dos muito poucos que, para sua glória, encomendam trabalhos e projectos
à Mansudae:
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A
presença da Mansudae tem sido alvo de polémica em vários países africanos. No
Botswana, os artistas locais protestaram quando em 2004 foi celebrado um contrato
de um milhão de dólares com os norte-coreanos. Mas a obra já está feita, o Monumento
dos Três Chefes (ou Monumento dos Três Dikgosi), homenageando, como o próprio
nome indica, três históricos chefes tribais.
Botswana, Monumento dos Três Chefes
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Em Angola, na capital, o Memorial Agostinho
Neto, um grotesco míssil de betão armado, parece que teve a mão da Mansudae,
segundo se diz aqui. Mas
julgo que se está a falar do Centro Cultural Dr. Agostinho Neto em Catete, no
Bengo, onde a marca da Mansiudae é inconfundível. Também o Monumento à Paz, na
Praça Lenine, em Luena, parece ter dedo norte-coreano. Foi inaugurado por José
Eduardo dos Santos em Abril de 2012 (aqui). De igual modo, o Monumento aos Heróis do 4 de Fevereiro, em Luanda, revela sinais do
estilo do realismo socialista, mas não encontro registo de que tenha sido feito
pela Mansudae.
Angola, Luanda, Memorial Agostinho Neto
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Angola, Bengo, Centro Cultural Dr. António Agostinho Neto
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Angola, Bengo, Centro Cultural Dr. António Agostinho Neto
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Angola, Luena, Monumento à Paz
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Angola, Luena, Monumento à Paz
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Por
terras de África, poderíamos ainda falar da estátua a Kabila ou do palácio presidencial
na Namíbia. Mencionemos por ora a estátua a Samora Machel, em Maputo,
inaugurada em 2011, no 25º aniversário da sua morte.
Moçambique, Maputo, Monumento a Samora Machel
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O
Zimbabwe contratou a Mansudae para fazer duas estátuas de Joshua Nkomo. A
família deste, quando viu a obra, nem queria acreditar (a estátua teve de ser
refeita, o que, como vimos, acontece muito com os trabalhos da Mansudae).
Erguer monumentos a Nkomo foi considerado uma afronta para quem se recorda que,
nos anos 80, milhares de cidadãos do Zimbabwe foram massacrados e houve
violações em massa de mulheres por parte das tropas governamentais treinadas…
na Coreia do Norte.
A Mansudae continua a operar no mundo,
em parte graças à intermediação de Pier Luigi Cecioni, um antigo chefe de
orquestra que agora se move à larga nos meandros da indústria artística internacional. Naveguei um pouco na página da
Mansudae, não sendo difícil descobrir maravilhas. Neste ano de 2014, foi
publicado um catálogo, penso que de uma exposição, com o título propagandístico
North Korea: a Unique History.
Publicado em inglês, coreano e italiano, recolhe o trabalho de 210 artistas da
Coreia do Norte. O curador da mostra foi, naturalmente, Pier Luigi Cecioni. E
quem foi o director do projecto? Luciano Benetton. Exactamente, o criador da
companhia que fabrica as camisolas que, possivelmente, alguns dos que lerem
este texto estarão a vestir neste momento. Os textos do livro são da autoria de
Pier Luigi Cecioni, de Eugenio Cecioni (coincidência de apelidos?) e de Luciano
Benetton. Ah, também de Yang Byong Su, da Mansudae. Luciano Benetton. Como
disse no início, esta história entala muita gente.
Luciano Benetton
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A
Mansudae não actua apenas na órbita do realismo socialista. É também líder na
contrafacção e no pastiche. Paisagens
holandesas, vistas de Montmartre, pinturas venezianas, tudo se produz em Pyongyang.
É o próprio Klemp que o diz: «se comprar um quadro nas margens do Sena, é muito
possível que tenha sido pintado na Coreia do Norte». Palavras do director do
Museu de Artes Aplicadas de Frankfurt, do homem que contratou os serviços da
Mansudae.
Uma amostra da produção clássica Mansudae
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Para evitar excessos de orientalismo,
os alemães apresentaram aos artistas da Mansudae modelos e fotografias de
crianças com aparência caucasiana, talvez mesmo ariana. «Para que o produto não
fosse demasiado coreano», diz Klemp. Terminada a obra, foi transportada para a
China, da China para Hamburgo e daí levada para Frankfurt. «Ficámos muito
satisfeitos com o trabalho», diz Klemp. «Tudo foi feito dentro dos prazos e
todas as pessoas com quem trabalhámos eram excepcionalmente profissionais. Para
mim, o mais interessante foi a normalidade com que tudo foi feito». A normalidade com que tudo foi feito.
Isso é, de facto, o mais interessante de toda esta história. Uma história que entala muita gente. Daqui ninguém sai vivo.
António
Araújo
Protestos em Dacar contra a construção
do Monumento à Renascença Africana
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Märchenbrunnen, Frankfurt, anos 1910-20 |
O horror, o horror!
ResponderEliminarTalvez só comparavel com as catedrais erigidas ao longo da historia com o sangue e o dinheiro dos crentes de todos os credos.Não?
ResponderEliminarInteressantíssimo.
ResponderEliminarPior que esta estatuária só a do Sá Carneiro no Areeiro. Aquilo nem sei que estilo é se é que se pode chamar de estilo.
ResponderEliminarEh lá. tudo isto. A sede bancária e o "monumento". Eh lá.
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