Paulo,
o montanhês
Ouro e Cinza, ou a inteligência amorosa das
coisas
Num
livro de Magris, creio, e dirigida a quem não recordo, deparei com a expressão «inteligência
amorosa das coisas». Não encontro melhor do que ela para descrever a forma como
Paulo Varela Gomes observa o mundo que o circunda, e sobre o qual redigiu
dezenas de crónicas ao longo de vários anos, agora reunidas neste Ouro e Cinza.
Desconhece-se
a razão da escolha de tão belo quanto enigmático título. A Internet indica-nos
um precedente, em livro de trovas da autoria de um poeta brasileiro com o portentoso
nome Petrarca Maranhão (mais precisamente, Petrarca da Cunha Melo Maranhão, nascido
em Manaus em 1913 e falecido em Petrópolis em 1985). Talvez Ouro e Cinza pretenda evocar a locução
latina et in pulverem reverteris, que
ao longo de séculos deu mote a abundante literatura devocional. Entre essa vasta
oratória, toda piedosíssima, encontramos o Sermão
da Cinza, proferido em 1662 pelo padre Bartolomeu
do Quental, pregador de D. João IV e de D. Afonso VI, missionário em Pernambuco
e em Goa. Lemos no Sermão da Cinza, a dado passo: «Os
que sois ouro, e andais sobre as cabeças das estátuas, não presumais; os que
sois barro, e andais pelos pés delas, não desmaieis, que o barro e mais o ouro
se hão-de converter na mesma cinza.»
Também em cada página deste livro se
pressente a consciência de que, um dia, o tempo se encarregará de irmanar ouro
e barro na mesma cinza. É esta percepção da efemeridade de tudo quanto existe que
faz de Paulo Varela Gomes um historiador paradoxal, um cultor de Clio que nos
exorta a odiarmos a História: «a raiva que sentimos não tem objecto. Não é
certamente dirigida à natureza que estava cá antes de nós, cá ficará depois, e
não gosta da morte. Nem é aos homens que temos raiva: quais deveríamos odiar?
Nós próprios? Os outros. Proponho que odiemos antes a história. Isso: a
história, o comboio da história, essa metáfora que avança largando fagulhas e
provocando incêndios, o comboio que uma poderosa locomotiva puxa. Marx
disse-nos o nome dessa locomotiva: capitalismo.»
Como
é óbvio, o autor de Ouro e Cinza não odeia
a História, até porque é na reconstrução do passado, real ou imaginário, que tantas
vezes encontra lenitivo para o seu doloroso confronto com o presente («sei
muito bem que aquilo que me faz chorar são as imagens que me recordam o que
perdi ou julgo que perdi e provocam em mim a nostalgia de um passado pintado a
tons de ouro precisamente porque passou e não acredito que possa voltar.») O
que Paulo Varela Gomes contesta, isso sim, é aquilo a que Bertrand de Jouvenel
chamou «concepção ferroviária da História», à luz da qual esta é encarada como marcha
inexorável de sentido único rumo a um futuro
radioso e lindo, muito lindo. Em suma, não é a História que se questiona, mas a
celebração festiva – dir-se-ia, quase onanista – com que o avanço dos tempos
nos é apresentado e vendido sob a forma de «progresso».
Perante
o «progresso», a atitude de Paulo Varela Gomes ultrapassa a da mera denúncia, atingindo
os cumes da repulsa visceral. Desde a década de noventa, decidiu viver no campo,
nos arredores de Coimbra. Aí encontra, mesmo que de forma esparsa e
fragmentária, fugazes resquícios de um pretérito perfeito: «o mundo era muito
mais bonito há duzentos anos do que é hoje». Além do refúgio campestre,
descobriu outra forma de viajar no tempo, que foi viajar no espaço. Fez larga
estada no Extremo Oriente, para que Goa lhe devolvesse o passado que em
Portugal perdera. Diz-nos, a este propósito, que «os países estrangeiros,
verdadeiramente estrangeiros (estranhos, de outra civilização), são o passado.»
É isso que o faz amar a Índia, sem que tal paixão o faça perder a lucidez e a
intuição críticas, a ponto de esclarecer os incautos que «há mais coisas que
detesto na Índia do que aquelas de que gosto.»
Ei-lo,
portanto, nas vestes de um militante da rejeição absoluta, protagonista da
«grande recusa» marcusiana, levando a tal extremo essa postura que, por
exemplo, jamais regressou à tão amada vila de praia e da sua infância, hoje devastada
pela estúpida cupidez do lucro («Os humanos são bastante estúpidos, sobretudo
quando alguns ganham dinheiro rápido com isso e a maioria acha que vai
ganhar.») Para quem, como ele, cultiva uma atitude tão drástica de rejeição do
presente, a memória desempenha um papel fundamental. De fio a pavio, Ouro e Cinza é atravessado por uma
indisfarçada nostalgia. Compreende-se porquê.
Onde
menos se suspeitava, desvenda-se portanto um adversário tenaz da «catástrofe da
mudança», alguém que acima de tudo aspira à quietude e ao silêncio, e fala com admiração
dos «homens do Portugal antigo», que em 1961 combateram até à morte em defesa
de Goa, Damão e Diu. Estamos diante de um radical
conservador (o que é muito diferente de um conservador radical) cuja genealogia e cujo estatuto de intelectual
público de esquerda lhe permitem produzir afirmações que, na boca de outros,
seriam de imediato apodadas de reaccionárias.
Perdida
a esperança de transformar o mundo, Paulo Varela Gomes melhora-o – aliás, muito
substancialmente – através da sua iconoclastia, condensada num humor corrosivo
e ácido, mordaz o suficiente para abalar os espíritos mais conformistas, mas
nunca excessivamente desmedido a ponto de ofender terceiros (bem, a Mota Engil
é um pouco maltratada…). O autor, já se disse, tem a inteligência amorosa das
coisas e, mesmo que porventura conteste essa caracterização, é um humanista,
quer na infinidade dos seus interesses, quer na impetuosidade com que luta
contra as injustiças terrenas, quer ainda na forma como se condói pelo
sofrimento alheio, seja o de um cão que lhe morre nos braços, seja o de uma
criança perdida nas ruas do Rio de Janeiro.
Não
admira, por conseguinte, que Paulo Varela Gomes se confronte, não poucas vezes,
com a questão do mal absoluto e radical, aquela maldade tão intrinsecamente
inscrita na natureza humana que o faz dizer, com exagero retórico: «são poucas,
em toda a parte, as pessoas de quem realmente gosto, de quem gosto lá no fundo
da alma.» Surpreende-se, com espanto e pavor, quando o mais tenebroso dos males
lhe aparece à frente de modo inesperado ou comezinho. A caça e as touradas, por
exemplo, despertam-lhe vibrante condenação. Noutra crónica, refere que os
exterminadores nazis, para acalmarem as suas vítimas antes de estas entrarem
nas câmaras de gás, lhes davam sabonetes feitos de pedra, fazendo-lhes crer que
iriam apenas tomar um duche. Pior ainda, recorda que houve pessoas que pensaram
nisso, debateram-no em reuniões, encomendaram os sabões de pedra a um
fabricante previamente seleccionado, aprovaram o protótipo e receberam os
caixotes, verificando se tudo estava de acordo com as especificações exigidas. Algo
de semelhante, aliás, sucedeu a Claudio Magris, ao ler, horrorizado, uma carta
dirigida a Heinrich Himmler por Nina Rascher, mulher do médico que em Dachau
submetia os prisioneiros – sobretudo judeus e russos – a indescritíveis experiências
mortais. Na missiva, além de agradecer educadamente os chocolates que Himmler
lhe enviara por ocasião da Páscoa, a Srª Rascher queixava-se que um dos colegas
do marido realizava aquelas horríveis experiências «com demasiados limites e
demasiada compaixão.»
Giovanni Bellini, A Virgem e o
Menino com Santa Catarina e Maria Madalena, c. 1490
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Mas
se é severamente negativo o atestado que atribui à contemporaneidade – e, em
particular, à contemporaneidade portuguesa –, Paulo Varela Gomes reserva o seu
desalento para a escrita, desgastada e cáustica. O olhar, esse, permanece juvenilmente
aberto a captar a essência do belo, deixando-se comover até às lágrimas quer na
contemplação de um quadro de Bellini ou das fotografias de Larry Burrows no Vietname, quer perante
alguns planos do filme Aquele querido mês
de Agosto. Sem cair em confessionalismos piegas e descabidos, muito
frequentes em alguns dos nossos cronistas, Paulo Varela Gomes não tem pudor ou
receio em contar-nos episódios em que se deixou emocionar até ao limite, nem
guarda para si as experiências sensoriais mais intensas que lhe aconteceram na
vida, como, por exemplo, a daquela noite sumptuosa em que percorreu sozinho o
lago de uma barragem sob o luar de Agosto, ou doutra noite em que subitamente se
viu envolto nas águas de Goa por milhares de microorganismos marinhos que em
seu redor lançavam uma estranha luminosidade, fosforescendo como pirilampos de
prata.
Desta
forma, Paulo Varela Gomes, mesmo repudiando a actual «linguagem da exibição
pública de convicções ou afectos», estabelece com os seus leitores laços de
intimidade que não são comuns (até por que, como bem diz, «as afinidades
íntimas só são partilháveis com quem já as experimentou.») Obteve o estatuto de
«cronista de culto» por várias razões, entre as quais avulta a meninice
travessa do seu espírito, a aversão ao realismo («o mais desprezível dos
valores»), a candura que o faz confessar-nos as suas quimeras e sonhos mais íntimos,
como andar de terra em terra com uma camioneta grande que recolhesse todas as
crianças, cães e outros seres vivos vadios e os levasse para uma ilha, como os
Açores ou Madagáscar, onde viveriam sem obrigações ou horários. Apercebendo-se de
que estava a resvalar num território que há muito abandonou, o da utopia, logo
desiste daquele projecto, concluindo que alguma coisa, como sempre, haveria de
correr drasticamente mal.
No
seu espírito existe, sem dúvida, um incomensurável potencial de desprezo e
furor, sentimentos que, todavia, correm a par de uma enternecedora capacidade de
deslumbramento perante um planeta em equilíbrio instável e todos quantos
efemeramente o habitam. Animais humanos e doutras espécies, plantas
identificadas com minúcia de Lineu, sítios e ambientes, tudo este livro nos
traz, em opulenta variedade temática que nos é servida numa linguagem chã e
simples, por vezes coloquial, de invulgar depuração estilística.
Portugal
é sempre o horizonte de referência da sua geografia sentimental, mesmo quando
se encontra em Goa – ou justamente por se encontrar em Goa, que para ele é mais
portuguesa («meu Portugal feliz e tropical») do que o rectângulo feio, sombrio
e sujo onde o destino o condenou a viver. Recorda um exemplo histórico em que
essa portugalidade ficou demonstrada, quando em finais do século XIX os goeses
se levantaram em defesa do Padroado perante a indiferença e até a hostilidade
do governo de Lisboa. É sintomático, de resto, que o tópico «estrangeiros em
Portugal» esteja tão presente na sua obra, quer nas crónicas de Ouro e Cinza, quer nas ficções de O Verão de 2012 e de Hotel. A terra portuguesa, e os males
que tanto lhe fizeram ao longo de décadas, são das questões que mais dilaceram Paulo
Varela Gomes, historiador de arte que tem a consciência aguda da pobreza do
nosso património e da nossa paisagem, facto que adensa a sua revolta por
assistir à degradação irreversível do pouco que temos. Daí a raiva funda e
tremenda, emitida a partir de Goa: «Ah, sim, são tão ridículos aí, vocês e o
vosso futebol, a vossa política de anedota que mete pena a toda a gente, o
vosso falhanço quotidiano, a vossa incapacidade de ser alguma coisa que não
simpáticos, o desprezo condescendente com que olham para vós, tão pequeninos e
tão tristes nesse ridículo rectângulo de economia falida, sociedade amarga,
cultura de empréstimo, entregue a esse ridículo destino de pertencer a essa
União de falhados.»
Convergindo,
pela faixa da esquerda, com outro leit-motiv
de alguns conservadorismos (por vezes, dos mais reaccionários), o autor assume-se
como um incorrigível pessimista, atormentado pela «incrível fragilidade da
sensatez nas sociedades humanas». Aliás, assinou na revista Meus Livros, entre 2002 e 2004, uma
coluna expressivamente intitulada «Crónicas de um Pessimista», na qual publicou
alguns textos agora reeditados em Ouro e
Cinza. Descrê da felicidade absoluta e permanente, dizendo: «Ninguém tem
naturalmente a ilusão de que os homens serão alguma vez felizes. Desde que não
padeçam de doença, fome, frio, podem, quando muito, ter momentos de
felicidade.»
A leitura deste livro constitui, mesmo para os
pessimistas mais incorrigíveis, um raro momento de felicidade pura. A Ouro e Cinza só podemos censurar uma
coisa: é demasiado breve. Belíssima na capa, de tigre faiscante, e nos
acabamentos, a obra peca pela estreiteza dos seus interiores. Apesar das suas
mais de duzentas páginas, trata-se de uma selecta excessivamente selectiva, que
usou malha demasiado fina na repescagem dos muitos textos que Paulo Varela
Gomes escreveu durante tantos anos, nos mais diversos lugares. Para a próxima,
se não «obras completas» em edição crítica e anotada por equipa
multidisciplinar, reivindica-se maior generosidade para com os seus leitores,
que já vão sendo muitos – e cada vez mais devotos.
Entre
eles, desenganem-se todavia os que julgam poder alcançar um nível semelhante de
escrita. Algumas páginas de Ouro e Cinza,
como as que descrevem paisagens ou lugares, encontram-se entre as melhores e
mais belas que a literatura portuguesa tem produzido nos últimos anos. Para
escrever desta forma, o autor decerto seguiu o conselho dado por Bertrand
Russell a um jovem aspirante a romancista, que um dia lhe perguntou o que era
necessário para concretizar esse intento. Recomendou-lhe o filósofo apenas duas
coisas: ler e escrever muito. Paulo Varela Gomes leu muito, e de tudo. Nas
primícias, Emilio Salgari, por sinal evocado em Ouro e Cinza; depois, foi indo por aí fora. Lamenta-se, a dada
altura, de ter nascido cedo ou tarde demais. Mas, no mínimo, terá que
reconhecer uma coisa: no tempo que era o seu não havia televisão ou Internet para
fazer concorrência aos livros. A doce aprendizagem do tédio, que realizou na
juventude, seria impossível nos nossos dias, marcados pelo pavor dos «tempos
mortos». Daqui resultou uma cultura enciclopédica e uma erudição imensa, que
vão muito para lá do campo universitário de especialização do autor mas que
nunca são apresentadas de forma pomposa ou exuberante. A subtileza do estilo e
a beleza neoclássica da prosa, de linhas claras e remates delicados, nascem de um
esforço de concisão que se adivinha extenuante. Paulo Varela Gomes domina como
poucos a economia política do verbo, sabendo escolher sempre, mas sempre, a
palavra certa, e nada mais do que ela. Apre, até irrita.
O
ouro que refulge nestas páginas talvez um dia se converta em cinza. Et in pulverem reverteris é lei universal,
que se aplica tanto à obra como ao seu autor. Mas não, não o chorem já. Saibam
merecê-lo, porque é privilégio tê-lo. Como este, há poucos.
António
Araújo
(*) uma versão ligeiramente mais reduzida deste texto foi publicada no jornal Público/suplemento Ípsilon, de 6-IX-2014, tendo a Inês Nadais feito o trabalho de edição, o que muito lhe agradeço)
Gosto de o ver a dizer bem de quem também sabe dizer bem de quem faz bem. Amen
ResponderEliminarMais uma vez,excelente, Obrigado. JS
ResponderEliminarUm excelente texto. O autor («... é privilégio tê-lo. Como este, há poucos» -- nem mais) e o livro merecem-no.
ResponderEliminarMuito obrigado por estas imerecidas palavras.
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo