domingo, 7 de setembro de 2014

Procriação fiscalmente assistida?








Natalidade e fiscalidade são coisas inconciliáveis, pelo menos cá em casa e sobretudo a meio de agosto, quando cinco selvagens me obrigam a recomeçar este texto vezes sem conta. Mas como me dizia o Professor Saldanha Sanches a desabafos deste género, "vous l'avez voulu, George Dandin…".

Há agora uma obsessão europeia com políticas de fomento natalista que incluem medidas fiscais. E Portugal está em último quanto a número de filhos – aliás, somos também o país com menor atividade física, e não parece que as coisas andem desligadas.

Tenho uma visão benigna do "problema" da natalidade e um grande ceticismo em relação ao fiscalismo natalista.

         Em matéria de família, cada uma sabe de si; já vi céus e infernos em famílias grandes e em famílias pequenas, em famílias com pai e mãe, só com pai, só com mãe, só com mães, só com pais. Liberalismo selvagem é a minha filosofia sobre natalidade. Quanto menos controlo, melhor. Desse, do Estado e da sociedade. O futuro a Deus pertence e quando estiver a morrer só me hei-de arrepender dos filhos que não tive e, enquanto cá estiver, gosto pouco que me digam que tenho filhos a mais ou a menos. Pratico em relação aos outros uma feroz abstinência proselitista natalista, e a última coisa que quero é o IRS a piscar-me o olho para ir ao sexto filho.

Além disso, a baixa fecundidade lusa não é coisa que me preocupe muito. No grande esquema das coisas, tanto valor tem uma criança nascida em Cantanhede como em Cantão, e não parece que a população do mundo, que não termina ali em Gibraltar nem nos Urais, esteja para acabar.

Por último, não está provado que incentivos financeiros, como são os benefícios fiscais, aumentem a natalidade total (embora possam antecipar os eventos de nascimento). Medidas laborais de proteção da mulher, um melhor sistema educativo e crédito mais fácil são coisas que comprovadamente têm algum impacto na natalidade, mas impostos mais baixos não. Ter filhos por causa de um benefício fiscal é comprar uma casa no Algarve por causa da Nespresso de oferta, e o povo é mais esperto do que isso.

A lei deve proteger os desprotegidos, e apenas estes, tenham muitos ou poucos filhos. Mas se não me parece que as famílias grandes devam ser beneficiadas apenas por serem grandes, nos impostos ou noutra coisa qualquer, também não me parece bem que sejam prejudicadas precisamente por serem grandes.

Ao contrário do que se tem lido por aí, a recente Comissão para a Reforma do IRS não veio dar um benefício fiscal a quem tem mais filhos, mas apenas revogar um malefício fiscal a quem tem mais filhos. A proposta da Comissão é simples: em vez de se dividir o rendimento do agregado por dois, antes de aplicar as taxas, essa divisão é feita por um quociente que aumenta na medida do número de filhos. Como as taxas são progressivas, quanto mais filhos, menor o imposto a pagar. O quociente familiar, que é o nome técnico desta ideia, não é um benefício fiscal a quem tem mais filhos – é a revogação de um imposto implícito por cada filho a mais, a reposição de alguma igualdade tributária entre famílias grandes e pequenas. Se o IRS se procura aproximar de rendimentos reais, e se a Constituição manda, por uma ideia de igualdade, que o imposto tenha em conta as necessidades do agregado, o que deve ser tributado é uma medida do rendimento disponível das famílias, e diz a experiência que os filhos vão ao lado direito do balanço (fora casos de crias lucrativas como um pequeno Saúl do "Bacalhau Quer Alho", ou uma Shirley Temple de "Heidi").

Como mais filhos é mais despesa, e como o IRS quer tributar o rendimento disponível e não rendimento que não é rendimento porque foi gasto em Brufen (40mg, suspensão oral, ir alternando com Ben-u-ron), tem de ser tomado em conta o número de filhos. A Comissão teve aqui um tiro certeiro, como de resto em todas as suas propostas e, com uma dose de bom senso e realismo assinaláveis, propõe um quociente modesto mas suficiente para sinalizar a intenção de não discriminação das famílias grandes, sem induzir regressividade favorecendo mais os Lopos do que os Lopes.

         Se o quociente familiar é uma medida de justiça fiscal que repõe a igualdade entre famílias grandes e pequenas, há ainda uma proposta que ajuda à tranquilidade de alguns lares: a possibilidade de declaração separada. O argumento para a declaração tributária separada é o de que havendo liberdade quanto a finanças conjugais separadas (o princípio "uma cama, duas contas"), não pode o Fisco impor um momento anual de intimidade conjugal patrimonial. Admito uma visão de conjugalidade ultrapassada e minoritária que passa pela partilha quer de contas bancárias, quer de wc (há agora a moda dos dois lavatórios), e sobretudo não compreendo o que pode levar um casal a querer preencher duas, e não uma, declarações de IRS. Mas também aqui é preciso afastar preconceitos pessoais. A possibilidade de declaração separada era necessária à luz do princípio da maior neutralidade possível da lei fiscal. Felizes esses lares onde a 31 de maio não haverá angústias ("Zé Manel, marcelopresidente2016 está-me a dar erro, e já só tenho uma tentativa. Qual era o raio da senha? – Tenta santana, deve dar, mas não juro") nem recriminações (mas deitaste fora os recibos todos da farmácia como, Maria?!?!").

 
João Taborda da Gama
 
(originalmente publicado no Jornal de Negócios, de 27 de Agosto de 2014)

Sem comentários:

Enviar um comentário