Natalidade e fiscalidade são coisas
inconciliáveis, pelo menos cá em casa e sobretudo a meio de agosto, quando
cinco selvagens me obrigam a recomeçar este texto vezes sem conta. Mas como me
dizia o Professor Saldanha Sanches a desabafos deste género, "vous l'avez
voulu, George Dandin…".
Há agora uma obsessão europeia com
políticas de fomento natalista que incluem medidas fiscais. E Portugal está em
último quanto a número de filhos – aliás, somos também o país com menor
atividade física, e não parece que as coisas andem desligadas.
Tenho uma visão benigna do
"problema" da natalidade e um grande ceticismo em relação ao
fiscalismo natalista.
Em
matéria de família, cada uma sabe de si; já vi céus e infernos em famílias
grandes e em famílias pequenas, em famílias com pai e mãe, só com pai, só com
mãe, só com mães, só com pais. Liberalismo selvagem é a minha filosofia sobre
natalidade. Quanto menos controlo, melhor. Desse, do Estado e da sociedade. O
futuro a Deus pertence e quando estiver a morrer só me hei-de arrepender dos filhos
que não tive e, enquanto cá estiver, gosto pouco que me digam que tenho filhos
a mais ou a menos. Pratico em relação aos outros uma feroz abstinência
proselitista natalista, e a última coisa que quero é o IRS a piscar-me o olho
para ir ao sexto filho.
Além disso, a baixa fecundidade lusa
não é coisa que me preocupe muito. No grande esquema das coisas, tanto valor
tem uma criança nascida em Cantanhede como em Cantão, e não parece que a
população do mundo, que não termina ali em Gibraltar nem nos Urais, esteja para
acabar.
Por último, não está provado que
incentivos financeiros, como são os benefícios fiscais, aumentem a natalidade
total (embora possam antecipar os eventos de nascimento). Medidas laborais de
proteção da mulher, um melhor sistema educativo e crédito mais fácil são coisas
que comprovadamente têm algum impacto na natalidade, mas impostos mais baixos
não. Ter filhos por causa de um benefício fiscal é comprar uma casa no Algarve
por causa da Nespresso de oferta, e o povo é mais esperto do que isso.
A lei deve proteger os
desprotegidos, e apenas estes, tenham muitos ou poucos filhos. Mas se não me
parece que as famílias grandes devam ser beneficiadas apenas por serem grandes,
nos impostos ou noutra coisa qualquer, também não me parece bem que sejam
prejudicadas precisamente por serem grandes.
Ao contrário do que se tem lido por
aí, a recente Comissão para a Reforma do IRS não veio dar um benefício fiscal a
quem tem mais filhos, mas apenas revogar um malefício fiscal a quem tem mais
filhos. A proposta da Comissão é simples: em vez de se dividir o rendimento do
agregado por dois, antes de aplicar as taxas, essa divisão é feita por um
quociente que aumenta na medida do número de filhos. Como as taxas são
progressivas, quanto mais filhos, menor o imposto a pagar. O quociente
familiar, que é o nome técnico desta ideia, não é um benefício fiscal a quem
tem mais filhos – é a revogação de um imposto implícito por cada filho a mais,
a reposição de alguma igualdade tributária entre famílias grandes e pequenas.
Se o IRS se procura aproximar de rendimentos reais, e se a Constituição manda,
por uma ideia de igualdade, que o imposto tenha em conta as necessidades do
agregado, o que deve ser tributado é uma medida do rendimento disponível das
famílias, e diz a experiência que os filhos vão ao lado direito do balanço
(fora casos de crias lucrativas como um pequeno Saúl do "Bacalhau Quer
Alho", ou uma Shirley Temple de "Heidi").
Como mais filhos é mais despesa, e
como o IRS quer tributar o rendimento disponível e não rendimento que não é
rendimento porque foi gasto em Brufen (40mg, suspensão oral, ir alternando com
Ben-u-ron), tem de ser tomado em conta o número de filhos. A Comissão teve aqui
um tiro certeiro, como de resto em todas as suas propostas e, com uma dose de
bom senso e realismo assinaláveis, propõe um quociente modesto mas suficiente
para sinalizar a intenção de não discriminação das famílias grandes, sem
induzir regressividade favorecendo mais os Lopos do que os Lopes.
Se
o quociente familiar é uma medida de justiça fiscal que repõe a igualdade entre
famílias grandes e pequenas, há ainda uma proposta que ajuda à tranquilidade de
alguns lares: a possibilidade de declaração separada. O argumento para a
declaração tributária separada é o de que havendo liberdade quanto a finanças
conjugais separadas (o princípio "uma cama, duas contas"), não pode o
Fisco impor um momento anual de intimidade conjugal patrimonial. Admito uma
visão de conjugalidade ultrapassada e minoritária que passa pela partilha quer
de contas bancárias, quer de wc (há agora a moda dos dois lavatórios), e
sobretudo não compreendo o que pode levar um casal a querer preencher duas, e
não uma, declarações de IRS. Mas também aqui é preciso afastar preconceitos
pessoais. A possibilidade de declaração separada era necessária à luz do
princípio da maior neutralidade possível da lei fiscal. Felizes esses lares
onde a 31 de maio não haverá angústias ("Zé Manel, marcelopresidente2016
está-me a dar erro, e já só tenho uma tentativa. Qual era o raio da senha? – Tenta
santana, deve dar, mas não juro") nem recriminações (mas deitaste fora os
recibos todos da farmácia como, Maria?!?!").
João Taborda da Gama
(originalmente publicado no Jornal de Negócios, de 27 de Agosto de 2014)
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