terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Arendt em Jerusalém.







 

 


 
 



 
 
 

À memória do Diogo Veiga da Cunha


 

 

 

1. Ricardo Klement, aliás Adolf Eichmann. No dia 11 de Maio de 1960, uma equipa de agentes da Mossad capturou Adolf Eichmann (1906-1962) quando este, no final de um dia de trabalho, se dirigia à sua modesta casa nos subúrbios de Buenos Aires[1]. A operação, que se revestiu de alguns aspectos rocambolescos, foi já objecto de obras de ficção e mesmo adaptações cinematográficas[2].

Desde há muito que esta personalidade-chave da “Solução Final” (Endlösung) era um dos principais alvos dos “caçadores de nazis”. Simon Wiesenthal recorda o júbilo com que, em 23 de Maio de 1960, ouviu a rádio noticiar que o Primeiro-Ministro Ben Gurion anunciara ao Knesset que o célebre criminoso de guerra fora capturado na Argentina e se encontrava detido em Israel [3]. 

Vivendo sob a identidade forjada de Ricardo Klement, Eichmann refugiara-se na Argentina graças ao apoio da famosa organização ODESSA (Organisation der ehemaligen SS-Angehöringen) [4]. Esteve detido num campo de prisioneiros norte-americano, de onde escapou dois dias depois do seu colaborador Dieter Wisliceny testemunhar em Nuremberga que Eichmann, ao ponderar a hipótese de suicídio, lhe dissera que “se iria rir no túmulo porque a sensação de ter cinco milhões de mortos na consciência seria uma fonte de satisfação extraordinária” [5]. Sobreviveu escondido na Alemanha durante quatro anos. Em 1950, num mosteiro em Génova, o padre franciscano Edoardo Dömöter, supostamente com a colaboração do bispo Alois Hudal, forneceu-lhe um passaporte falso de refugiado da Cruz Vermelha com o nome de Ricardo Klement; em Julho desse ano, obteve um visto para a Argentina [6]. Em 14 de Julho de 1950, desembarcou em Buenos Aires. Dois anos depois, em Abril de 1952, já em solo argentino, adquiriu finalmente os seus documentos de identidade: Ricardo Klement, cidadão alemão nascido em Bolzano, na Itália. A família deslocou-se para a terra de Perón em Junho de 1952. Aí levaram uma existência modesta, naturalmente discreta, e, por assim dizer, vulgar, de acordo com um padrão de normalidade que bem se enquadrava, ao cabo e ao resto, na personalidade de Adolf Eichmann. O mesmo padrão que Hannah Arendt iria definir através do famoso conceito de “banalidade do mal”.  
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         2. “Ich bin Adolf Eichmann”. Mas quem era este indivíduo “banal”, que se vangloriava da morte de cinco milhões de seres humanos? Nascido em Solingen, na Alemanha, em 19 de Março de 1906, Adolf Eichmann muda-se com a família para Linz, na Áustria, durante a I Guerra. A família, protestante, frequentava a igreja todos os domingos. O pai era gerente comercial de uma firma de material eléctrico de Linz e casou uma segunda vez após a morte de Maria Eichmann, que ocorreu quando Adolf tinha dez anos. Adolf Eichmann foi um estudante medíocre, que confessou mais tarde, numa entrevista a um jornalista holandês, que o seu melhor amigo de infância era um judeu. Tendo abandonado a escola, emprega-se como caixeiro-viajante da empresa Socony Vacuum.

Em 1932, Eichmann e o seu pai assistem, a convite de um amigo da família, Ernst Kaltenbrunner, a uma reunião do Partido Nazi austríaco. Em 1 de Abril, adere ao Partido Nazi e, em Novembro desse ano, passa a integrar as SS; por essa altura, trabalha numa companhia petrolífera norte-americana, a Vacuum Oil Company A.G., de onde é despedido em 1933. Atribui o despedimento a uma vingança do novo director, um judeu, devido ao seu envolvimento com o nazismo. Este envolvimento levou-o, aliás, a ser procurado pela polícia, tendo de fugir da Áustria e refugiar-se em Berlim, onde integrou a divisão austríaca das SS no exílio. Pouco depois, em Agosto de 1933, inicia treinos militares na chamada “Legião Austríaca” (batalhão Deutschland), sendo promovido a SS-Scharführer. Em 1934, serve como cabo das SS no campo de concentração de Dachau. No seio do Partido, começa a ganhar fama como especialista em assuntos judaicos, já que, entre o mais, tinha aprendido pelos seus próprios meios hebreu e iídiche. Voluntaria-se para trabalhar nos Serviços Centrais do SD (Sicherheitsdienst), em Berlim, onde é destacado para o Departamento de Investigação sobre a Maçonaria.

Em 1935, é colocado, então, na área da sua especialidade: o Departamento Judaico. Em 1936, casa com Vera Liebl, natural da Boémia, e, no ano seguinte, depois de ver recusada a sua candidatura para dirigir o Museu dos Assuntos Judaicos, é enviado à Palestina com vista a indagar da possibilidade de uma deportação dos judeus para esse território. Antes de partir, é promovido a SS-Hauptführer. O relatório que entrega a Heydrich é francamente negativo quanto à possibilidade de deportação dos judeus para a Palestina. A partir daí, a sua carreira é fulgurante: em Março de 1938, é nomeado assessor para os assuntos judaicos e enviado à Áustria para evacuar todos os judeus do país; em Agosto, é promovido a Untersturmführer (2º tenente). Esse é o ano da Kristallnacht, recorde-se.

Em Janeiro de 1939, Göring dá instruções a Reinhard Heydrich para se resolver o problema da emigração dos judeus. No Departamento Central de Emigração Judaica (Zentralstelle für jüdiesche Auswanderung), em Viena, Eichmann passa a ocupar-se da gestão das questões administrativas e logísticas, ascendendo, em Fevereiro de 1939, ao posto de Obersturmführer (tenente); no mês seguinte, encontra-se com os dirigentes judaicos em Berlim. No final do ano, dá-se uma importante evolução na sua carreira: é transferido para Berlim para chefiar o departamento judaico da Gestapo. A sua trajectória prossegue no interior do Reich: em 21 de Dezembro de 1939, Heydrich cria o Departamento IV-B4 da RSHA (Reichssicherheitshauptamt), com vista a centralizar o trabalho de deportação dos judeus do Leste. Eichmann é escolhido para dirigir este organismo. Em Junho do ano seguinte, pondera-se a evacuação do povo judaico para Madagáscar [7] e Eichmann começa a trabalhar na concretização deste projecto. Em Agosto, é promovido a Hauptsturmführer (capitão). Entretanto, as deportações massa começam a ser postas em prática, registando-se já um apreciável número de vítimas. 1941 é o ano em que Auschwitz, Majdanek e Chelmno começam a laborar como campos de extermínio; Eichmann recomenda aos respectivos comandantes o uso de Zyklon-B e toma providências para assegurar o fornecimento deste gás. No Verão desse ano, atinge uma posição de grande relevo: é o responsável pelo tratamento da população judaica em toda a Alemanha. Em Junho desse ano, após o início dos extermínios em massa na Roménia, Göring encarrega Heydrich de organizar a “solução final” do problema judaico. Heydrich e Eichmann participam num encontro em Praga onde se definem as linhas do programa da Endlösung da questão dos judeus. Pouco antes, Eichmann assiste a uma execução em massa nas proximidades de Minsk e, quando questionado sobre o destino a dar a oito mil judeus da Sérvia, propôs que fossem mortos a tiro. Não admira, pois, que no final do ano alcançasse o posto de Obersturmbannführer (tenente-coronel). E é nessa qualidade que assiste em Chelmno a um massacre de judeus e participa naquele que será um dos acontecimentos mais importantes da sua carreira: a Conferência de Wannsee.

Neste encontro de altos funcionários, realizado em 20 de Janeiro de 1942 nas imediações de Berlim, discutem-se os aspectos logísticos da “solução final”[8]. Ele é o organizador da conferência[9]. No final do encontro, Eichmann é designado como responsável máximo pela organização da “solução final”. Pouco depois, os campos de Belzec e Sobibor entram em funcionamento, ao mesmo tempo que o gabinete de Eichmann começa a preparar a deportação de judeus eslovacos e decide iniciar a evacuação de quinze mil judeus da Holanda. Por essa altura, entra em funcionamento o campo de Treblinka, que Eichmann visita e onde assiste ao processo de extermínio. Em Julho de 1942, recebe um pedido de orientação sobre o destino a dar a quatro mil crianças internadas no campo de Drancy; no final, o seu gabinete ordena a deportação das crianças para Auschwitz. Metodicamente, iniciam-se os preparativos para novas deportações, desta feita da Bulgária, da Noruega e da Grécia. O seu empenho no extermínio dos judeus é imparável; significativamente, envida esforços para impedir que seja autorizada a emigração de judeus romenos para a Palestina.

Ao mesmo tempo, continua a liderar a burocracia do Holocausto: em Outubro de 1943, assume o controlo de todas as operações relacionadas com o confisco de bens pertencentes aos judeus; nesse mesmo mês, iniciam-se os trabalhos de “limpeza” da Dinamarca e, um pouco mais tarde, da Itália e da Hungria. O ano de 1944 é justamente dedicado à resolução da “questão húngara”, onde Eichmann atinge os seus objectivos: entre Maio e Julho, realizam-se deportações em massa de judeus da Hungria para Auschwitz. Adolf Eichmann converte-se, em definitivo, num autêntico Schreibtischmörder, um “assassino de secretária”.

Os ventos, todavia, começavam a mudar. Em 6 de Junho de 1944, o “dia-D”, inicia-se a libertação da Europa pelos Aliados. É nessa altura que se intensifica a tentativa de quebrar as resistências existentes na Hungria à deportação de judeus. Pressente-se, contudo, que o regime estava prestes a terminar; em 1945, Eichmann faz uma visita de despedida à família, na Áustria, e dá veneno à mulher e aos filhos, ordenando-lhes que o usem se estiverem na iminência de ser capturados pelos russos. Em 7 de Maio desse ano, dá-se a rendição da Alemanha. Eichmann é capturado pelos norte-americanos nas cercanias de Ulm. Adopta o nome de Adolf Karl Barth e enverga um uniforme de um cabo da Luftwaffe. Foge do campo ao ter conhecimento de que os americanos iriam começar a procurar as tatuagens das SS marcadas nos corpos dos prisioneiros. Em Agosto de 1945, é preso novamente, recorrendo a uma outra identidade: Otto Eckmann. É nessa qualidade que é mantido em cativeiro no campo de Oberdachstetten, de onde escapa em Janeiro de 1946. O resto da sua vida é passado em fuga. Apenas na Argentina encontra algum descanso, sobretudo quando recebe a família em 1952. Acaba, porém, por ser detectado. E, às dez e meia da noite do dia 11 de Maio de 1960, ao descer do autocarro que o levava a casa, é interceptado por um comando judaico, a quem responde, ao lhe perguntarem a identidade: “Ich bin Adolf Eichmann”; acrescentará ainda saber que se encontrava “nas mãos de israelitas”.
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         3. A caça ao homem. Ao que parece, a localização de Eichmann deveu-se, em larga medida à acção de um cego. Lothar Hermann, que esteve internado em Dachau em 1938 devido às suas actividades socialistas, fugiu para a Argentina em 1938, na sequência da famosa Kristallnacht. Alguns anos depois de chegar à Argentina, perderia a visão, ainda em resultado da tortura que a Gestapo lhe infligiu em Dachau. Por um acaso do destino, a sua filha tornou-se amiga dos filhos de Eichmann e Lothar Hermann, ao escutar o nome de Eichmann a partir dos relatos jornalísticos de um julgamento que tinha lugar em Francoforte, apressou-se a enviar uma carta às autoridades alemãs. A carta foi recebida pelo activo Procurador-Geral (Generalstaatsanwalt) do Estado de Hesse, Fritz Bauer, que, depois de concluir que seria muito difícil obter a extradição de Eichmann e julgá-lo na Alemanha, decidiu informar secretamente as autoridades israelitas do paradeiro do antigo colaborador de Himmler, indo ao ponto de fornecer a morada exacta: nº 4261 da Calle Chacabuco, no bairro Olivos. A Mossad, no entanto, não deu grande importância ao assunto, limitando-se a enviar um agente a Buenos Aires, em Janeiro de 1958, que, ao perscrutar o bairro de Olivos, informou os seus superiores que era impossível um nazi tão importante viver num lugar tão modesto. Uma segunda missão foi enviada a Buenos Aires, por insistência de Fritz Bauer. Desta feita, os agentes encontraram-se com Lothar Hermann e acabaram por confiar a tarefa de localizar o fugitivo de guerra a um cego que vivia a dez horas de comboio de Buenos Aires...

         A tenacidade deste homem - a que não era alheia a vontade de obter uma recompensa no valor de dez mil dólares, oferecidos, ao que parece, pelo Congresso Mundial Judaico - acabou por vencer a letargia dos serviços secretos israelitas. O resto da história é conhecido: uma equipa da Mossad capturou Eichmann quando este se deslocava a casa, no nº 6061 da Calle Garibaldi, e manteve-o em cativeiro durante dez dias, antes de o enviar para Israel sob o efeito de drogas e disfarçado de comissário de bordo da companhia aérea El Al.

Menos conhecidos são outros pormenores: em Março de 1961, Lothar Hermann, o homem que localizara Eichmann, foi preso e acusado de ser Josef Mengele! Tudo indicia que este grotesco episódio foi uma forma de os elementos anti-semitas das forças policiais argentinas se vingarem do papel que Hermann tivera na captura de um dos principais arquitectos do Holocausto. Não por acaso, no dia seguinte ao da execução de Eichmann, uma jovem judia, Graciela Narcisa Sirota, a filha do dono da casa onde se suspeitava que os agentes da Mossad guardaram o seu prisioneiro, foi raptada, torturada, violada e queimada no peito com uma cruz suástica; outra rapariga judia, Mirta Penjerek, acusada de ter fornecido alimentos aos agentes da Mossad, foi morta. Um conhecido académico judeu, Maximo Handel, foi gravemente agredido por simpatizantes nazis argentinos, que marcaram à navalha o seu corpo com cruzes suásticas. Bombas artesanais explodiram nas representações diplomáticas e consulares israelitas por toda a América do Sul, o mesmo sucedendo em escolas judaicas, centros cívicos e culturais ou sinagogas. Muitos cemitérios judaicos foram profanados. A organização extremista Tacuara, a quem os filhos de Eichmann pediram auxílio, chegou a planear o rapto do embaixador de Israel em Buenos Aires e a colocação de engenhos explosivos na embaixada.

         O rapto de Eichmann provocou, naturalmente, um conflito nas relações entre Israel e a Argentina, tendo o embaixador nas Nações Unidas apresentado um protesto formal ao Conselho de Segurança [10]. Este, por unanimidade, condena o Estado de Israel por ter violado a soberania argentina e as regras de Direito Internacional. O embaixador israelita em Buenos Aires, Arieh Levavi, é chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde lhe exigem explicações sobre o rapto de Eichmann. A nota verbal que mais tarde entregará ao ministro Diogenes Taboada negava qualquer responsabilidade do Governo israelita no caso, atribuindo-o a uma acção dos serviços secretos e de voluntários, de que o Executivo de Ben Gurion não fora informado. Obviamente, os argentinos não ficaram satisfeitos com a explicação fornecida – numa declaração extremamente dura, exigiram o imediato retorno de Eichmann a Buenos Aires e a punição dos “voluntários” que auxiliaram a sua descoberta. Nem uma mensagem pessoal de Ben Gurion, dirigida ao Presidente argentino Arturo Frondizi, conseguiu sanar o incidente diplomático [11]. Pelo contrário, a Argentina promoveu, como se disse, a condenação do Estado de Israel pelas Nações Unidas e rejeitou com veemência a “expressão de sinceras desculpas” apresentada pelas autoridades israelitas. O embaixador Arieh Levavi foi considerado persona non grata e teve de regressar a Israel.  Ao mesmo tempo, as autoridades policiais argentinas decidiram iniciar uma investigação sobre as condições em que Eichmann tinha sido capturado. E o cardeal argentino Antonio Caggiano foi ao ponto de dizer à imprensa: “Ele veio para a nossa pátria em busca de perdão e esquecimento. Não interessa se o seu nome é Ricardo Klement ou Adolf Eichmann, pois a nossa obrigação enquanto cristãos é perdoar-lhe pelo que fez”.

Os israelitas não partilhavam esta opinião. Decidiram julgá-lo e com isso abriram um dos mais famosos processos do século XX, que foi tema de diversos livros[12] e, pelo menos, dois documentários [13]. 

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4. Estado de Israel vs. Adolf Eichmann. Dois meses após ser interrogado pela polícia israelita [14], Adolf Eichmann é levado a julgamento. Este decorreu perante o Tribunal de Jerusalém com a designação Processo-crime 40/61 (Procurador-Geral vs. Adolf Eichmann). Além, naturalmente, do próprio Adolf Eichmann – que, para sua própria segurança, foi mantido numa cela de vidro durante todo o julgamento –, outras personalidades se destacaram neste processo. O colectivo de juízes era composto pelo magistrado do Supremo Tribunal de Israel, Moshe Landau, que presidiu, Benjamin Halevi e Yitzchak Raveh, assessorados por Joseph Bodenheimer. Refira-se que os três juízes eram fluentes em língua alemã e decidiram ouvir o acusado sem recurso a tradutores, de modo a não serem induzidos em erro por qualquer lapso que estes eventualmente cometessem. Hannah Arendt não deixa, no entanto, de reprovar o uso do hebraico durante o julgamento, falando mesmo numa “comédia com o hebraico, já que todos sabem alemão e pensam em alemão” [15].

A acusação esteve a cargo do Procurador-Geral, Gideon Hausner, que liderava uma equipa composta por Gabriel Bach, Jacob Bar-Or, Zvi Terlo e Jacob Robinson (este último seria um dos principais críticos da obra de Arendt [16]). Ao longo do julgamento, o gabinete do Ministério Público foi literalmente inundado com correspondência: a acusação recebeu mais de dez mil cartas, metade das quais de cidadãos israelitas, muitos deles crianças ou adolescentes que simplesmente não compreendiam o motivo pelo qual os seus compatriotas não resistiram às deportações. 

A defesa, por seu turno, foi confiada a Robert Servatius, assessorado por Dieter Wechtenbruch, um jovem advogado de Munique. Saliente-se que muitas sociedades de advogados norte-americanas de prestígio se voluntariaram para defender Eichmann, mas este, ao que parece a conselho da família, decidiu escolher Robert Servatius, um advogado de Colónia que se notabilizara nos processos de Nuremberga. Existia, no entanto, um problema: Eichmann não tinha meios para pagar os honorários deste famoso causídico. O Estado de Israel aceitou pagar os custos da defesa, no valor de trinta mil dólares.

         O julgamento iniciou-se em 11 de Abril de 1961. Uma cadeia de televisão norte-americana, a Capital Cities Broadcasting Corporation, requereu a gravação de todas as sessões. O requerimento foi deferido, pelo que, apesar das objecções do advogado de Adolf Eichmann, este foi o primeiro julgamento da História a ser objecto de gravações televisivas. Muitas estações cobriram o julgamento, e a ABC (American Broadcasting Company) transmitiu um programa semanal de uma hora sobre o processo nas sessenta estações emissoras que possuía. Diz-se, aliás, que Ben Gurion se regozijou por tão intensa cobertura televisiva, porquanto desejava mostrar as atrocidades do Holocausto às gerações nascidas no pós-guerra. Centenas de jornalistas – entre os quais Hannah Arendt – afluíram a Jerusalém. Certamente por isso, o julgamento foi transferido para um teatro, que foi transformado numa sala de audiências com cerca de setecentos e cinquenta lugares. 

         Eichmann foi acusado ao abrigo de uma lei israelita de 1950, especialmente destinada a punir os criminosos de guerra nazis. Teve de enfrentar nada menos do que quinze acusações, prevendo as doze primeiras como pena máxima a morte: (1) era responsável pela morte de milhões de judeus; (2) era responsável por ter colocado esses judeus, antes de os matar, em condições que visavam a sua morte; (3) era responsável por graves danos físicos e psicológicos aos judeus; (4) era responsável por medidas que resultaram na esterilização de judeus; (5) era responsável pela escravatura, fome e deportação de milhões de judeus; (6) era responsável por perseguir judeus com base em motivos nacionais, raciais, religiosos e políticos; (7) era responsável por confiscar bens de judeus através de medidas que envolviam a extorsão, o roubo, o terrorismo e a violência; (8) era responsável por crimes de guerra; (9) era responsável pela deportação de meio milhão de cidadãos polacos; (10) era responsável pela deportação de catorze mil eslovenos; (11) era responsável pela deportação de dezenas de milhar de ciganos; (12) era responsável pela deportação e morte de cem crianças checas da aldeia de Lidícia. As três últimas acusações – não puníveis com a pena de morte – relacionavam-se com a pertença a organizações consideradas criminosas pelo Tribunal de Nuremberga: SD, Gestapo e SS [17]. 

         O julgamento desenrolou-se ao longo de quatro meses, com cerca de cento e quarenta e quatro sessões que terminaram em 14 de Agosto de 1961; depois, em 11 de Dezembro, os juízes iniciaram a leitura dos duzentos e quarenta e quatro parágrafos da sentença. Adolf Eichmann foi julgado culpado de todas as acusações de que era alvo – e, em consequência, condenado à morte. O veredicto determinava que fosse enforcado. Foi a primeira – e única – condenação à morte na história do Estado de Israel [18].

         Vale a pena transcrever a declaração final Eichmann em Jerusalém, proferida no dia 13 de Dezembro de 1961:

 
“- Ouvi a pesada condenação pronunciada pelo tribunal e perdi todas as esperanças de encontrar aqui justiça, não posso reconhecer esta condenação.
- Compreendo muito bem que se exija que os crimes cometidos contra os Judeus sejam expiados. Os depoimentos das testemunhas que foram apresentados na barra do tribunal gelaram-me, novamente, o sangue, assim como quando fui obrigado a assistir a estes horrores, devido às ordens que tinha recebido.
- Tive a infelicidade de me ver envolvido nestes horrores, o que não foi fruto da minha vontade, não tive a intenção de matar homens. São os próprios dirigentes políticos os únicos responsáveis deste assassinato colectivo.
- Tentei abandonar as minhas funções e ser transferido, para combater honradamente, mas retiveram-me para continuar esta pesada tarefa. Neste momento ainda, sublinho uma vez mais:
- A minha culpa reside na minha obediência, no meu respeito pela disciplina e nas minhas obrigações militares em tempo de guerra, no meu juramento de fidelidade que prestei tanto como soldado, como funcionário.
- Além disso, estava submetido às leis de guerra.
- Esta obediência não era fácil. Aquele que já esteve sob ordens ou a mandar sabe o que se pode exigir de um ser humano.
- Não persegui os Judeus por paixão nem por prazer, como foi o caso do governo. Só para um governo é que uma perseguição destas é possível, eu próprio seria incapaz.
- Acuso os governantes de terem abusado da minha obediência, que era exigida naqueles tempos, como também será exigida, no futuro, a qualquer subordinado.
- A obediência encontra-se entre os virtuosos. É por isso que eu peço para terem em conta o facto de eu ter obedecido, e não a quem eu obedeci.
- Como já disse, a classe dirigente, da qual eu não fazia parte, ditava as ordens. Penso que esta é quem merecia ser punida pelos horrores cometidos às suas ordens.
- Mas os subordinados são agora vítimas. Eu sou uma dessas vítimas, não podemos deixar de ter isso em conta.
- Pretende-se alegar que eu deveria ter desobedecido. É um ponto de vista eminentemente retrospectivo. Naquelas circunstâncias, uma atitude destas era impossível, ninguém tinha a coragem de se comportar desta maneira.
- Sei por experiência própria que esta possibilidade de desobedecer a uma ordem, a qual nunca foi questionada a não ser depois da guerra, é uma fábula inventada por aqueles que tinham necessidade disso. Foram raros os que puderam esquivar-se e eu não estava entre aqueles que aprovavam uma atitude destas.
- É um grande erro acreditar que eu fazia parte dos fanáticos da perseguição dos Judeus.
- Depois do final da guerra, fiquei indignado ao constatar que todos os meus superiores me atribuíam todas as culpas. Com efeito, nunca disse nada que testemunhasse qualquer fanatismo da minha parte e a minha coragem não transcende a minha consciência.
- As testemunhas indicaram, a este propósito, grandes contradições.
- O tribunal relacionou estes testemunhos com certos documentos e expressões de uma maneira que, à primeira vista, é muito convincente, mas é também enganadora.
- Tentarei trazer luz sobre estes erros junto do tribunal de recurso.
- Ninguém se dirigiu a mim para censurar as minhas actividades, no âmbito das minhas funções. Até mesmo o pastor Grüber, no que lhe dizia respeito, não o pretendia. Veio ver-me apenas para me pedir clemência, e nunca disse o que quer que fosse sobre a maneira como eu cumpria as minhas funções. Este confirmou aqui perante o tribunal que nunca me neguei a recebê-lo, mas que lhe disse que devia recorrer aos meus superiores, visto que eu não estava habilitado para decidir por mim mesmo.
- O Dr. Lösener, já falecido, que tem sido mencionado ao longo deste processo, era a “Autoridade” para as questões judaicas no Ministério do Interior do Reich. Num relatório que redigiu mais tarde para se justificar, e que foi recentemente publicado, afirmava que tinha tomado conhecimento de atrocidades e que tinha participado aos seus superiores. Podemos pois supor que todas as personalidades do Ministério do Interior foram postas ao corrente do facto. Sem dizer uma palavra, o Dr. Lösener refugiou-se na oposição muda continuando a servir o seu Führer, enquanto juiz generosamente remunerado do Tribunal Administrativo do Reich. Eis ao que se assemelha a coragem cívica de uma alta personalidade.
- No seu relatório de 1950, Lösener formula pareceres, acerca da minha pessoa, nos quais afirma eu ter sido uma das figuras centrais da campanha de perseguição dos Judeus, mas isto não é mais do que uma explosão emocional, que não é sustentada por qualquer facto.
- Acontece o mesmo com outras testemunhas.
- Os juízes perguntaram-me se eu queria declarar reconhecer a minha culpabilidade, como fez Hoess, o comandante de Auschwitz, e Frank, o governador-geral da Polónia. Estes dois tinham todas as razões para reconhecerem a sua culpabilidade:
- Frank, que ditava as ordens, reconheceu a sua culpabilidade por causa dessas mesmas ordens e absteve-se de atribuir culpas aos seus subordinados.
- Hoess era quem, de facto, tinha executado as exterminações em massa.
- Encontro-me numa posição diferente. Nunca tive o poder nem a responsabilidade de um personagem que ditava ordens. Nunca executei as exterminações como o fez Hoess.
- Se tivesse sido eu que recebi as ordens de execução, não me teria refugiado por detrás de falsos pretextos. Já referi ao longo do meu interrogatório: como não havia meio de fugir à obrigação de obediência, ter-me ia dado um tiro na cabeça a fim de resolver o conflito entre a consciência e o dever. 
- O tribunal considera que a minha atitude é determinada pelo processo e é falsa. Uma amálgama de factos seguiu-se e parece confirmá-lo. Ora, as contradições que se puderam verificar nas minhas declarações provinham do facto de, no início quando a polícia me interrogou, era naturalmente impossível lembrar-me de todos os detalhes. Já vivi demasiado, nos tempos de antigamente.
- Não me esquivei, as três mil e quinhentas páginas do auto do meu interrogatório provam-no. Aquilo que lá disse constituía, de certa forma, uma primeira tentativa de contribuir sem reservas ao esclarecimento dos factos. Cometi erros, mas deveriam dar-me a possibilidade de os rectificar. Depois de um período de dezasseis a vinte anos, não podem atirar todos os erros para cima de mim, e não podem chamar à minha boa vontade "manha e mentira".
- O princípio segundo o qual procurei orientar a minha vida, e que me foi inculcado muito cedo, era a vontade e a aspiração de realizar valores éticos.

- A partir de um certo momento, o Estado impediu-me de viver de acordo com esses princípios éticos e tive de ignorar inúmeras manifestações da moral. Tive de me curvar a valores que eram ditados pelo Estado, contrários àqueles que eu queria servir.

- Apenas posso fazer um exame de consciência no meu foro íntimo. Procedendo a este exame, devo ignorar o facto de me sentir inocente, do ponto de vista jurídico.

- Se dependesse de mim, pediria já perdão, por iniciativa própria, ao povo Judeu e reconheceria a vergonha que me persegue quando penso na injustiça de que os Judeus foram vítimas e nos actos cometidos contra estes. No entanto, é provável que isto seja considerado como uma hipocrisia da minha parte, à luz do tribunal.

- Eu não sou o monstro que querem fazer de mim.

- Em Buenos Aires, atiraram-se a mim, acorrentaram-me a uma cama durante uma semana e, inconsciente com injecções, fui conduzido ao aeródromo de Buenos Aires. De lá, fizeram-me sair da Argentina de avião. Manifestamente, não se pode atribuir tal facto apenas ao facto de me considerarem responsável por tudo.

- A explicação reside no facto de que certos nacional-socialistas da época e outras pessoas espalharam mentiras acerca da minha pessoa. Tentaram desculpar-se às minhas custas ou tentaram lançar a confusão, por razões que desconheço.

- É assombroso que uma parte dos órgãos de imprensa e de outras publicações tenham difundido estes relatos falsos durante quinze anos, exagerando-os propositadamente. É esta a causa das conclusões erróneas, é esta a causa da minha presença aqui.

- Agradeço ao meu advogado, que defendeu os meus direitos.

- Estou profundamente convencido que vou ter de prestar contas de actos que outros cometeram.

- Tenho de suportar o que o destino me reserva” [19].

 
 
 
 
 
 

Em Dezembro de 1961, a defesa recorreu para o Supremo Tribunal de Israel (recurso nº 336/61). Presidido por  Yitzchak Olshan, o colectivo era ainda integrado pelo Vice-Presidente, Shim'on Agranat, e pelos juízes Moshe Silberg, Yoel Sussmann, Alfred Witkon, tendo como assessores J. Bodenheimer e A. Walfisch. Como se esperava, em 29 de Maio de 1962, o recurso foi indeferido, confirmando-se o julgamento da primeira instância [20].
Nesse mesmo dia – 29 de Maio de 1962 –, o Presidente de Israel, Itzhak Ben-Zvi, recebe um pedido de clemência de Adolf Eichmann, um manuscrito de quatro páginas, e, bem assim, cartas da mulher e da família do condenado. Numerosos pedidos de clemência chegam de todo o mundo. O Presidente, no entanto, rejeita tais apelos, em 31 de Maio. Nesse mesmo dia, algumas horas mais tarde, pouco antes da meia-noite, Adolf Eichmann é enforcado na prisão de Ramleh. As suas últimas palavras são: “Em breve, meus senhores, voltaremos a ver-nos. É esse o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Jamais as esquecerei!”. O corpo é cremado e as cinzas lançadas nas águas do Mediterrâneo. Poucos dias depois, Hannah Arendt escrevia à sua amiga Mary McCarthy: “Estou satisfeita por terem enforcado Eichmann. Não porque isso fosse importante. Mas eles cobrir-se-iam de ridículo, creio, se não levassem a coisa até ao único resultado lógico” [21]. 

 

 
Rua da Sociedade Farmacêutica, nº 6-A
Local onde Hannah Arendt residiu em Lisboa, em 1941
 
 
 
         5. Hannah Arendt, repórter. O processo de Eichmann representava para Hannah Arendt (1906-1975) uma forma de ajustar contas com o passado [22]. É ela que oferece os seus serviços a William Shawn, redactor-chefe da New Yorker, que aceita com entusiasmo a proposta [23]. Hannah Arendt, como é sabido, fora uma refugiada judia, que escapara do campo de Gurs, nos Pirinéus franceses, e, fugindo por Hendaia, chegou a Lisboa, onde permaneceu durante três meses  [24]. Daí embarca rumo aos Estados Unidos.
Para Arendt, era fundamental presenciar o julgamento de Adolf Eichmann. Ao pedir uma bolsa de investigação à Fundação Rockfeller, em Dezembro de 1960, escreve: “(...) tenho que fazer a cobertura deste processo, falhei Nuremberga, nunca vi esta gente em carne e osso e será provavelmente a única ocasião que terei para o fazer” [25]. E, em Janeiro de 1961, anula uma conferência em Vassar com o argumento de que “assistir a este processo é, de certo modo, uma forma de me libertar de uma dívida que tenho em relação ao meu passado” [26]. Sentir-se-ia Hannah Arendt “culpada” por ter fugido ao destino que levou à matança de milhões dos seus compatriotas? Porque necessitaria daquilo que qualificou, usando a expressão latina, como uma cura posterior?
         Não adianta penetrar nos meandros da alma humana nem ceder a indagações psicológicas pouco ou nada consequentes. O importante é notar o entusiasmo – talvez mesmo, a alegria – com que Hannah Arendt comparece em Jerusalém. Ela própria o confessa à sua amiga Mary McCarthy, em Junho de 1964, no auge da controvérsia provocada pelo seu texto, dizendo que tinha escrito o livro “num curioso estado de euforia”.
Em 7 de Abril de 1961, Hannah Arendt parte de Nova Iorque e faz uma curta paragem em Paris; a 9, encontra-se em Tel-Avive e, no dia seguinte, em Jerusalém. Regressa no dia 7 de Maio, com direcção a Basileia, onde visita o seu mestre e amigo Karl Jaspers, um céptico em relação a este projecto [27]. Permanece, pois, cerca de um mês em Israel: assiste ao início do interrogatório de Eichmann pelo procurador Gideon Hausner e aos depoimentos das primeiras testemunhas. Aqui pode entrever-se um motivo para criticar a sua obra: na realidade, Arendt assistiu apenas a cerca de um quarto do processo de Eichmann. Enquanto permaneceu em Israel, visitou familiares (designadamente, o primo Ernst Fürst) e encontrou-se com personalidades como o ministro da Justiça, Felix Rosenblüth, e Golda Meier, com quem manteve uma extenuante discussão pela noite dentro [28]. As suas impressões de Israel – que confia em privado ao marido, Heinrich Blücher, e a Karl Jaspers – são francamente negativas. O retrato que traça dos diversos protagonistas do julgamento, do “homem na cela de vidro” ao procurador, passando pelo advogado de defesa, é, também ele, bastante negativo [29]; mesmo algumas testemunhas não escapam ao seu olhar crítico e até sarcástico. A única excepção é o Presidente do Tribunal, Moshe Landau, que Hannah Arendt, numa carta ao seu marido, qualifica como “um homem extraordinário! Modesto, inteligente, muito aberto... do melhor judaísmo alemão” [30].

 

Eichmann em Jerusalém, ed. portuguesa

 


6. O livro e a sua circunstância. Tendo entregue cinco artigos para a revista New Yorker (“A Reporter at Large: Eichmann in Jerusalem”, Fevereiro e Março de 1963), Arendt decide editá-los em livro. A obra é escrita entre o Verão e o Inverno de 1962, sendo concluída em Novembro desse ano. Assim que foi publicado, em Maio de 1963, o livro deu azo a uma intensa polémica[31]. A controvérsia começou, aliás, com a publicação nos artigos na New Yorker, havendo quem questionasse, desde logo, o facto de se abordar um tema tão dramático no meio de anúncios publicitários[32]. Esse não era, todavia, o ponto mais delicado. Uma das questões que suscitou maior reacção foi, sem dúvida, o relevo que Hannah Arendt deu à “colaboração” dos conselhos judaicos na logística da Shoah, um tema que retomou, por exemplo, numa entrevista que concedeu à televisão, em Nova Iorque, em 24 de Janeiro de 1964[33]; já antes, ainda no tempo da guerra, Arendt procurara ir “mais além” na explicação da perseguição aos judeus, designadamente quando analisou, no periódico Aufbau, os verdadeiros motivos da instituição do “campo modelo” de Theresienstadt[34].  

O tema é retomado em Eichmann em Jerusalém, mas o relevo agora dado à intervenção dos judeus não podia, obviamente, deixar de provocar uma intensa polémica. Já se disse – e não é exagero – que o livro trouxe um “novo idioma” ao discurso sobre o Holocausto[35]. Dois historiadores britânicos, Hugh Trevor-Roper e Walter Laqueur, analisaram a questão com algum distanciamento. No Sunday Times de 13 de Outubro de 1963, Trevor-Roper escrevia que “a Sr.ª Arendt não afirma expressis verbis que os judeus foram mais culpados do que Eichmann mas, como tende a menorizar a responsabilidade deste e a destacar a responsabilidade daqueles, dá por vezes essa impressão” [36]. Em 1966, Laqueur concluiu que Hannah Arendt “foi atacada não tanto pelo que disse mas pela maneira como o disse, ainda que os que a atacam estão, em contrapartida, demasiado inclinados a deitar fora o bebé com a água do banho” [37]. Na polémica intervieram outros nomes de destaque nos meios intelectuais, como Daniel Bell[38], Bruno Bettelheim[39] ou Gershom Scholem[40]. É com este último que Hannah Arendt mantém uma interessante troca de correspondência. Mas, além dele, muitos outros escreveram textos em torno de Eichmann em Jerusalém: Michael Musmanno, antigo procurador em Nuremberga e testemunha de acusação em Jerusalém (“Man with an unspotted conscience”, New York Times, de 19-V-1963) [41], Norman Podhoretz (“Hannah Arendt on Eichmann. A study in the perversity of brilliance”, Commentary, Septembro de 1963), L. Abel (“The aesthetics of evil”, Partisan Review, Verão de 1963), M. Syrkin (“Hannah Arendt: the clothes of the empress”, Dissent, Outono de 1963), entre outros, participaram naquilo que Hannah Arendt considerava ser praticamente uma campanha contra a sua pessoa. Na verdade, organizações como a Anti-Defamation League do B’nai B’rith emitiram circulares para todos os rabinos dos Estados Unidos incitando-os a pregarem contra Arendt [42] e alguns dos seus amigos – como Gershom Scholem e Hans Jonas – vão ao ponto de cortar relações com ela; outros apoiam-na, como sucede com Daniel Bell e Mary McCarthy[43]. Mesmo o seu grande amigo Kurt Blumenfeld, que tanto a apoiara no seu trabalho em Jerusalém [44], se encontrava indignado por aquilo que tinha ouvido sobre o escrito de Hannah Arendt; esta tenta, no entanto, esclarecê-lo numa curta viagem que realiza a Israel, em Maio de 1963, pouco tempo antes de Blumenfeld falecer[45]. O próprio procurador Gideon Hausner não se absteve de intervir na polémica: ao deslocar-se a Nova Iorque para discursar perante a Associação dos Sobreviventes de Bergen-Belsen, disse que o seu objectivo era “responder à bizarra defesa que Hannah Arendt fez de Eichmann”[46]. Tudo isto pode revelar, talvez, que o mal é, no fim de contas, tão banal como Hannah Arendt sustentava.

 


Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta (2012)




 
 

         7. Entre o “mal radical” e a “banalidade do mal”. Como já atrás se disse, o subtítulo do livro de Arendt que agora se apresenta em língua portuguesa – “relatório sobre a banalidade do mal” – sintetiza a mensagem que ela procurou transmitir, mas também, e por isso mesmo, exprime a polémica que desde o início ela despoletou. O que pretendia Arendt significar com esta expressão “banalidade do mal”, que parece, só por si, questionar uma certa visão estabelecida do Holocausto como suprema manifestação do mal, enquanto pecado, depravação ou corrupção?

         Sobre a origem da expressão são elucidativos os comentários de Karl Jaspers numa carta dirigida a Hannah Arendt em 13 de Dezembro de 1963:

 

“Alcopley contou-me que foi o Heinrich [Blücher] quem inventou a expressão da ‘banalidade do mal’ e que ele se censura agora por seres tu quem sofres as consequências. Será esta história falsa, ou tê-la-ei eu distorcido na minha lembrança? Seja como for, penso que a ideia é brilhante e ajustada como subtítulo do teu livro. O ponto essencial é que este mal, e não o mal em si, é banal.”[47]

 

         Seja como for, a verdade é que ao usar a expressão “banalidade do mal”, Arendt parece distanciar-se da posição que havia anteriormente assumido no final de As Origens do Totalitarismo, cuja primeira edição é de 1951, em que o Holocausto e muito particularmente os campos de extermínio são descritos como a manifestação no mundo do “mal radical”. Afirmou aí Hannah Arendt:

 

“Está inerente a toda a nossa tradição filosófica o facto de não podermos conceber um ‘mal radical’, e isto é verdade quer para a teologia cristã, que chegou mesmo a conceder ao próprio Diabo uma origem celestial, quer para Kant, o único filósofo que, na expressão que forjou para o efeito, deve ao menos ter suspeitado da existência deste mal, apesar de imediatamente o ter racionalizado através do conceito de ‘vontade perversa’, a qual poderia ser explicada com base em motivos compreensíveis. Assim, não temos de facto nada a que nos possamos referir para compreender um fenómeno que, no entanto, nos confronta na sua realidade esmagadora e quebra todos os padrões que conhecemos. Uma só coisa parece ser discernível: podemos dizer que o mal radical emergiu associado a um sistema em que todos os homens se tornaram igualmente supérfluos. Os manipuladores deste sistema acreditam na sua própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são tanto mais perigosos porquanto não se importam se eles próprios estão vivos ou mortos, se alguma vez viveram ou nunca chegaram a nascer”[48].

 

         Em 1958, em The Human Condition, Arendt voltou a referir-se a esta ideia de “mal radical”:

 

“É por isso muito significativo, na verdade um elemento estrutural no domínio dos assuntos humanos, que os homens são incapazes de perdoar aquilo que não podem punir e de punir o que mostrou ser imperdoável. É esta a verdadeira marca daquelas ofensas a que, desde Kant, chamamos ‘mal radical’ e sobre cuja natureza tão pouco é conhecido, mesmo para aqueles de entre nós que estiveram expostos a uma das suas raras explosões na cena pública. Tudo o que sabemos é que não podemos, nem punir, nem perdoar, essas ofensas e que por isso elas transcendem o domínio dos assuntos humanos e as potencialidades do poder humano, os quais são ambos radicalmente destruídos quando elas aparecem. Aqui, onde o próprio acto nos desapossa de todo o poder, podemos na verdade apenas repetir com Jesus: ‘Seria melhor para essa pessoa ser atirada ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço’”[49].

 

         Qual é, pois, a distância que separa o “mal radical” da “banalidade do mal”? São várias as respostas que é à partida possível encontrar para esta questão e essa diversidade começou a manifestar-se na correspondência trocada entre Arendt e Gershom Scholem logo após a publicação original de Eichmann em Jerusalém. Em carta dirigida a Hannah Arendt em 23 de Junho de 1963, Scholem, não sem alguma ironia, afirmava:

 

“Depois de ter lido o seu livro, não fiquei convencido pela sua tese respeitante à «banalidade do mal», tese, aliás, que a acreditar no subtítulo do livro, está subjacente a todo o seu argumento. Esta nova tese surpreende-me como uma frase feita; ela não me parece seguramente ser o produto de uma análise profunda, do género daquela que você deu de forma tão persuasiva, ao serviço de uma tese completamente diferente e mesmo contraditória, no seu livro sobre o totalitarismo. Nessa altura você não tinha ainda aparentemente descoberto que o mal é banal. Daquele «mal radical», que a sua análise de então constituía um testemunho tão repleto de eloquência e erudição, nada mais resta senão esta frase feita – para ser mais do isso, deveria ser objecto de uma investigação séria, enquanto conceito relevante de filosofia moral ou ética política. Lamento, e creio dizê-lo sinceramente e sem espírito polémico, não poder levar mais a sério a tese do seu livro. Esperava, atendendo ao livro anterior, uma coisa diferente”[50].

 

         Hannah Arendt, na sua resposta a esta carta, retoma a questão da banalidade do mal em termos que parecem evidenciar um distanciamento em relação à sua utilização do conceito de “mal radical”:

 

“Em conclusão, permita-me regressar à única questão em que você me compreendeu  e relativamente à qual me alegra que tenha suscitado o ponto essencial. Tem você toda a razão: mudei de opinião e já não falo mais de «mal radical». Há muito tempo que não nos vemos, caso assim não tivesse acontecido teríamos com certeza falado já deste assunto. (A propósito, não vejo porque razão você qualifica de frase feita a minha expressão «banalidade do mal». Tanto quanto sei, ninguém usou o termo antes de mim; mas isso não é importante). Tenho hoje, com efeito, a opinião de que o mal nunca é «radical», que ele é apenas extremo e de que não possui nem profundidade, nem qualquer dimensão demoníaca. Ele pode invadir tudo e assolar o mundo inteiro precisamente porque se espalha como um fungo. Ele «desafia o pensamento», como disse, porque o pensamento tenta alcançar a profundidade, ir à raiz das coisas, e no momento em que se ocupa do mal sai frustrado porque nada encontra. Nisto consiste a sua «banalidade». Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical. Mas não é este o lugar para aprofundar estes temas: pretendo elaborá-los mais tarde num contexto diferente. Eichmann pode muito bem permanecer o modelo concreto daquilo que tenho para dizer”[51].

 

         Poder-se-ia assim ser levado a pensar que Hannah Arendt deu ela própria resposta à questão atrás colocada. A banalidade do mal reside simplesmente na sua inadequação a constituir-se como objecto do pensamento, diferentemente do que possa ainda suceder com o “mal radical”, que é ainda, no fim de contas, um conceito filosófico. Talvez a principal razão da polémica em torno da expressão resida, afinal, no facto de o livro Eichmann em Jerusalém não discutir ex professo a “banalidade do mal” e, em boa verdade, conter apenas duas passagens em que o mal é expressamente referido[52].

         É legítima a questão de saber se a utilização dos conceitos de “mal radical” e de “banalidade do mal” denuncia alguma contradição no pensamento de Arendt. Richard Bernstein, por exemplo, entende que as duas concepções do mal no pensamento de Arendt são essencialmente compatíveis. Não haveria nenhuma mudança contraditória de opinião subjacente ao facto de Arendt utilizar a segunda expressão em vez da primeira. Isso mesmo pode ser demonstrado, segundo Bernstein, se substituirmos a questão vaga de saber qual o significado do uso de uma outra expressão na obra de Arendt por questões mais determinadas. Assim, à questão de saber se o “mal radical”, tal como apresentado em The Origins of Totalitarianism, contradiz a noção de banalidade do mal, Bernstein responde negativamente. O entendimento, expresso, como se viu, em The Origins of Totalitarianism, segundo o qual o “mal radical” torna os seres humanos supérfluos, por erradicar as condições necessárias para a vida humana, é inteiramente compatível com o que Arendt diz sobre a “banalidade do mal”: Eichmann carecia da ponderação e da reflexão necessárias para sequer se aperceber das consequências das suas acções monstruosas. À pergunta sobre se Arendt acreditava que os crimes nazis podiam ser adequadamente explicados como actos cometidos por monstros e demónios, Bernstein responde também pela negativa. Finalmente, quanto à questão de saber se Arendt acreditava ser algo semelhante a uma “grandeza satânica” um conceito relevante para compreender o mal inerente à dominação totalitária, a resposta é, para Bernstein, igualmente negativa[53]. Arendt resiste assim a todas as tentações para conferir um carácter mítico ou estético ao mal inerente ao totalitarismo. Tudo isto não significa, no entanto, que ao responder enfaticamente na negativa a estas questões Bernstein pretenda também negar a existência de uma mudança de perspectiva no pensamento de Arendt quando esta falou na “banalidade do mal”. Segundo ele, enquanto o conceito chave subjacente à noção de “mal radical” era a superfluidade, Arendt desloca a sua atenção, depois do julgamento de Eichmann, para a ausência de reflexão. Por outras palavras, o facto de não existir incompatibilidade entre os conceitos de “mal radical” e de “banalidade do mal” não significa que esses conceitos não se articulem no contexto de diferentes modos de ver o mal inerente ao totalitarismo. Através do primeiro, Arendt procurou salientar o carácter sem precedentes que o mal adquiriu nos totalitarismos do século vinte, encontrando-o na capacidade destes últimos alterarem sistematicamente a natureza humana, tornando supérfluos os seres humanos, na sua pluralidade, espontaneidade e individualidade. O segundo conceito permitiria a Arendt responder a uma questão diferente: como lidar com os actos monstruosos de pessoas que em outras circunstâncias seriam normais e até respeitáveis? Em qualquer caso, a conclusão de Arendt, segundo Bernstein, é a de que não existe nenhuma “garantia ontológica” na natureza humana que nos proteja contra o mal do totalitarismo[54].

         A “banalidade do mal” é, assim, um conceito que visa fazer face às complexas questões colocadas pelo mal nas sociedades totalitárias, no fundo ao colapso moral do comportamento daquelas que seriam pessoas respeitáveis, em circunstâncias “normais”. Como afirma Margaret Canovan as questões morais mais intratáveis para Hannah Arendt não resultam do comportamento dos nazis ideologicamente comprometidos, mas das pessoas vulgares, daquelas que não pensariam sequer em cometer crimes se vivessem numa sociedade em que tais actividades não fossem toleradas[55]. Seria a perda da capacidade de pensar e reflectir das pessoas normais que caracterizaria em última análise o mal das sociedades totalitárias. Foi a consciência desta perda que levou Hannah Arendt, confessadamente, a interessar-se, numa perspectiva filosófica, pelas actividades mentais e a questionar a relação entre o mal, o pensar e o julgar[56]. Muito embora Hannah Arendt nunca tenha chegado a concluir aquilo que seria a última parte de The Life of the Mind, sobre a faculdade de julgar, a verdade é que, segundo Bernstein, ela não deu uma resposta satisfatória às questões que colocou sobre a relação entre o pensamento e o mal [57]. Não conseguiu demonstrar a existência de uma conexão íntima entre a capacidade ou incapacidade para pensar e o problema do mal e muito menos a existência de um efeito libertador do pensar sobre a faculdade de julgar, sobre a capacidade de distinguir entre o bem e o mal [58]. Em última análise, Arendt não conseguiu, na sua obra posterior a Eichmann em Jerusalém, explicar porque motivo alguns, inseridos numa sociedade totalitária, perdem a sua capacidade de pensar e julgar aquilo que é mau de acordo com as suas consciências, enquanto outros mantêm essa mesma capacidade. A verdade, porém, é que se afigura duvidoso se poderemos avançar algo mais, nesta matéria, em relação ao que Arendt disse em Eichmann em Jerusalém:

 

“Pois a lição de tais histórias é simples e está ao alcance de todos. Politicamente falando, acontece que em condições de terror a maior parte das pessoas sujeitar-se-á, mas algumas não o farão, tal como a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é a de que ‘pode acontecer’ em quase todos os lugares, mas não acontecerá em todos. Humanamente falando, nada mais é exigido, e nada mais pode ser razoavelmente pedido, para que este planeta permaneça um lugar adequado para a habitação humana.”[59]

 

         Podemos, sem dúvida, encarar a obra de Arendt posterior a Eichmann em Jerusalém como a tentativa de encontrar uma explicação teórica da autonomia das faculdades de pensar e julgar em condições adversas, ou seja, sobre as razões que explicam como é possível para alguns distinguir o bem e o mal mesmo sem o apoio de regras e valores socialmente aceites, ou mesmo contra essas regras[60]. E não há dúvida que algumas afirmações de Arendt parecem indicar que ela própria assumia esse objectivo teórico. Mas, ao mesmo tempo, ocorre perguntar se uma tal explicação exaustiva não acabaria por pôr em causa aquela mesma autonomia das faculdades de pensar e julgar, ao “restringir o espaço para o inexplicável que acompanha todo o acto que tem lugar no domínio da liberdade”[61]. Parece-nos, sem dúvida, ser possível uma tal leitura de Hannah Arendt, ela que justamente afirmava que a reflexão e o pensamento não podiam ser reservados a especialistas ou considerados como o monopólio de uma disciplina especializada [62].

         De qualquer modo, não vamos aqui ocupar-nos da coerência da análise de Arendt sobre o mal, o pensar e o julgar [63]. Em vez disso, mas tendo sempre presente o lugar central que a ideia de “banalidade do mal” ocupou na obra de Hannah Arendt posterior a Eichmann em Jerusalém, iremos terminar estas reflexões com três breves ilustrações dessa ideia que nos parecem da maior importância, até na perspectiva das razões que nos levaram a promover a tradução para português daquele livro e, ao mesmo tempo, garantem, no nosso modo de ver, a sua actualidade. Em primeiro lugar, as implicações da ideia da “banalidade do mal” na responsabilização dos “pensadores profissionais” e dos filósofos perante o mundo; em segundo lugar, a sua relação com o problema da teodiceia; por último, a sua importância na tentativa de explicação do Holocausto e, simultaneamente, na justificação de uma justiça penal internacional.

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Centro de Saúde Mental Shaar Menashe para Sobreviventes do Holocausto.
 

 

         8. O mal e os “pensadores profissionais”. Uma primeira leitura de Eichmann em Jerusalém poderia induzir a ideia de que a banalidade do mal é sobretudo um vício de burocratas, como Eichmann, ou ainda a ideia, não sabemos se apesar de tudo tranquilizadora, de que por trás dos hediondos crimes nazis não existem génios demoníacos, mas gente vulgar que simplesmente renunciou a pensar e a julgar pelas suas próprias cabeças. Mas não é exactamente assim. Como logo adverte Arendt na introdução a The Life of the Mind, “a ausência de pensamento não é estupidez; ela pode ser encontrada em pessoas altamente inteligentes, e um coração malvado não é a sua causa; provavelmente as coisas passam-se ao contrário, no sentido em que a perversidade pode ser causada pela ausência de pensamento” [64].

         Esta advertência leva-nos logo a pensar como a “banalidade do mal” não é apta a contaminar apenas as mentes de burocratas menores, antes atinge todas aquelas inteligências que actuam nos quadros de uma racionalidade meramente instrumental. E todos sabemos como o percurso intelectual do Ocidente se caracteriza também por um impressionante êxito na construção e elaboração de um tal tipo de racionalidade. A este propósito seria interessante comparar o destino de Eichmann com o de uma mente brilhante como Albert Speer, cujas capacidades técnicas de organizador permitiram o prolongamento do esforço de guerra alemão para além de um ponto em que a única contrapartida assinalável foi um ainda maior desperdício de vidas humanas. E seria igualmente interessante testar o conceito de “banalidade do mal” não apenas em face da dificuldade experimentada por uma mente culta e elevada, como a de Speer, em exercer de forma autónoma as suas capacidades de reflexão crítica e julgamento no contexto de uma sociedade totalitária, mas também em face da facilidade com que essa mesma mente parece ter readquirido aquelas capacidades após o desaparecimento de tal sociedade, como se tornou manifesto logo no julgamento de Nuremberga. Ao ponto de não sabermos se tudo não se reduziu afinal, para Speer, a uma simples mudança das regras do jogo... [65]

         O que pensar, no entanto, se entre as “pessoas altamente inteligentes” mencionadas por Hannah Arendt tivermos de contar não apenas técnicos cultos e até cientistas (ainda hoje não é completamente claro o posicionamento de homens como Werner Heisenberg, por exemplo), mas “pensadores profissionais” [66], isto é, aqueles que são responsáveis por moldar os horizontes do nosso modo propriamente humano de pensar?

         A este propósito, podemos comparar a análise de Hannah Arendt com as considerações tecidas por Emmanuel Lévinas, logo em 1934, em Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme. Aquando da tradução americana deste estudo, em 1990, Lévinas escreveu o seguinte:

 

“O artigo procede de uma convicção que a fonte da barbárie sangrenta do nacional-socialismo não está numa qualquer anomalia contingente do raciocínio humano, nem em qualquer mal-entendido ideológico acidental. Existe neste artigo a convicção de que esta fonte se prende com uma possibilidade essencial do Mal elemental, onde pode conduzir uma boa lógica e contra a qual a filosofia ocidental não se tinha suficientemente assegurado” [67].

 

         Se em vez do neologismo “Mal élémental”, Lévinas tivesse falado em “Mal élémentaire”, seria muito fácil conciliar o seu pensamento com a “banalidade do mal” de Arendt. Com efeito, a expressão “Mal élémentaire”, que poderíamos sem dificuldade traduzir por “Mal elementar”, permitiria ainda pensar que Lévinas tem em mente o mal rudimentar, um mal grosseiro, afinal, a recusa de qualquer grandeza, de qualquer profundidade subjacente a esse mal. Ao usar a expressão “Mal élémental”, Lévinas afasta estas possibilidades interpretativas: o que está em causa é um mal essencial, um mal que põe em causa os próprios princípios da civilização ocidental. A “filosofia do hitlerismo” procede de uma exaltação do corpo biológico e do tipo de identificação que ela proporciona, as quais desmentem a concepção ocidental do homem, assente num espírito de liberdade, e põem em causa, em última análise, a “própria humanidade do homem” [68]. Mas a nova concepção do homem subjacente a esta “filosofia do hitlerismo” não é apresentada como simplesmente desmentindo toda uma cultura de pensamento, que Lévinas sumariamente descreve; ela é também apresentada como sendo ensejada por alguns desenvolvimentos dessa cultura. Lévinas afirma que “uma concepção verdadeiramente oposta à noção europeia do homem não seria possível a não ser no caso em que a situação em que o homem é revirado (rivé) não se acrescentasse a ele, mas fosse o próprio fundo do seu ser” [69]. Pois bem, é a ambiguidade dos desenvolvimentos da cultura filosófica europeia em apresentar o “ser revirado do homem”, isto é, a consciência de uma relação inevitável entre o espírito e uma situação determinada, como algo que determina a existência do homem como união entre o Eu e o seu corpo, como unidade da dualidade de um espírito livre que se debate com o corpo ao qual foi acorrentado, ou já como negação pura e simples do espírito, é essa ambiguidade, dizíamos, que permite a Lévinas responsabilizar, em certa medida, a filosofia ocidental pela hecatombe do nazismo.

         É claro que subjacente a esta responsabilização está também uma tentativa de Lévinas em “explicar-se” com Heidegger, como justamente salienta Miguel Abensour[70]. E explicar-se duplamente: por um lado, tentar compreender o incompreensível, isto é, a relação de “um dos maiores filósofos da história” [71] com o nacional-socialismo; por outro lado, procurar resgatar da ambiguidade atrás aludida a superação filosófica, largamente devida a Heidegger, da interpretação clássica que “relega a um nível inferior e considera como uma etapa a ultrapassar, um sentimento de identidade entre o nosso corpo e nós próprios que certas circunstâncias tornam particularmente agudo” [72]. Na verdade é a elucidação fenomenológica que torna possível explicitar a essência do nazismo [73]. No pós-escrito acrescentado em 1990 ao artigo de 1934, Lévinas é particularmente claro a este respeito quando afirma que a possibilidade do “mal elemental”, contra a qual a filosofia ocidental não se tinha assegurado, “inscreve-se na ontologia do Ser, preocupado em ser – do Ser «dem es in seinem Sein um dieses Sein selbst geht», segundo a expressão heideggeriana”[74].

         Lévinas foi estudante de Heidegger[75]. Hannah Arendt foi algo mais do isso[76]. Mas também ela pôs a descoberto a “estranha aliança” ocorrida no pensamento de Heidegger entre a filosofia e a ausência de reflexão e julgamento[77]. Também ela tornou aparente que a “banalidade do mal” se podia estender ao domínio da filosofia. Na verdade, em The Life of the Mind, Arendt critica a retirada do Ser, operada por Heidegger, do mundo dos assuntos humanos, a sua visão do pensamento como acção puramente interior, crítica essa que está desde logo subjacente à sua interpretação de Seit und Zeit[78]. Nessa mesma perspectiva, a sua análise da acção em The Human Condition é uma tentativa, profundamente influenciada pela linguagem filosófica de Heidegger, de contrariar aquela retirada [79].

         Podemos, talvez, afirmar que Lévinas e Arendt, cada um a seu modo, pensam com Heidegger contra Heidegger. Ambos desenvolvem, de alguma forma, a riqueza da linguagem fenomenológica do Ser existente de Heidegger em sentidos que este recusou: Lévinas explorando a ligação ética com o Outro, Arendt valorizando a dimensão política da acção comunicativa e dos espaços públicos[80]. Sentidos que aliás se completam, na medida em que a dignificação da esfera política operada por Arendt (que a entendia como a mais alta possibilidade da existência humana) é, por vezes, demasiado unilateral e até redutora, ao desvalorizar aspectos da interioridade marcados pela ideia de bem e irredutíveis a essa esfera[81].



 
Centro de Saúde Mental Shaar Menashe para Sobreviventes do Holocausto.


 

         9. A teodiceia entre o terramoto de Lisboa e os campos de Auschwitz. Como adverte Paul Ricoeur, para que se possa falar de teodiceia é necessário: a) enunciar o problema do mal na base das seguintes proposições, visando a univocidade: Deus é todo-poderoso; a sua bondade é infinita; o mal existe; b) assumir o fim apologético da argumentação, segundo o qual Deus não é responsável pelo mal; c) usar meios na argumentação que satisfaçam a lógica da não-contradição e da totalização sistemática[82]. A própria expressão “teodiceia” foi, como se sabe, forjada por Leibniz num livro de 1710 com o mesmo título, destinado a justificar um Deus cuja Criação se estende aos monstruosos crimes de que é feita a história humana, procurando sustentar a sua inteligibilidade e justiça através de uma análise da ideia de justiça divina no “melhor” dos mundos possíveis[83]. O terramoto de Lisboa de 1755 contribuiu para fazer ruir a tentativa e pôr a descoberto a sua vacuidade, pela impossibilidade de um entendimento finito, como o dos homens, aceder aos dados do cálculo divino relativos ao equilíbrio entre o bem e o mal e ao balanço global positivo a favor do primeiro.

         Kant pôs em causa a própria possibilidade de uma teodiceia, ao deixar de encarar o mal como parte de uma harmonia que persiste no melhor dos mundos possíveis, como o havia entendido Leibniz, para o situar no plano da história, como uma contingência, uma realidade que não é necessária, mas que radica em última análise no livre-arbítrio[84]. Como salienta Ricoeur, o mal para Kant releva unicamente da esfera prática e, por isso, não faz sentido perguntar de onde vem o mal, mas apenas de onde resulta que nós o pratiquemos; o problema do sofrimento, incluído na contabilidade divina de Leibniz, é, por assim dizer, sacrificado ao problema do mal moral[85].

         Independentemente das vicissitudes da ideia de teodiceia e da própria teologia, o certo é que o problema da justificação de Deus, ou, noutro registo, da justificação do mal, adquire contornos muito diferentes em face da realidade e do triunfo do mal deliberado e já não do simples sofrimento resultante de uma causalidade natural cega – os campos de Auschwitz e não o terramoto de Lisboa[86]. Pois bem, em face desta constatação, julgamos poder dizer-se que Hannah Arendt ocupa na história da reflexão sobre o mal uma posição semelhante à de Kant. É claro que a sua abordagem do mal se caracteriza por um afastamento da concepção tradicional, que Kant ajudou justamente a enraizar, do mal, entendido como a manifestação de “maus motivos”[87]. As intenções de Eichmann não eram porventura más, no sentido de baseadas no ódio ou em outros motivos vis; mas eram, sem dúvida, totalmente desligados das gravíssimas consequências das suas acções. Simplesmente, se as intenções de alguém que tornou possíveis execuções em massa de pessoas inocentes podem não revelar uma vontade perversa, isso não significa uma exclusão de responsabilidade, significa apenas que o problema da responsabilidade não pode ser sempre resolvido com base na intenção e deve ser equacionado em outros moldes. E é aqui que entra a questão do julgamento[88]. Se, como afirma Arendt, a faculdade de distinguir entre o bem e o mal tiver algo que ver com a capacidade de pensar, “então deveremos ser capazes de exigir o seu exercício por parte de qualquer pessoa sã, independentemente de quanto erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida, ela possa ser”[89]. É precisamente neste ponto que se pode afirmar que a posição de Arendt é semelhante à de Kant. Não apenas porque as suas reflexões sobre as condições necessárias para a superação do mal se inspiram na crítica kantiana da faculdade do juízo, mas porque também ela, à semelhança de Kant, afirma a contingência do mal e recusa qualquer justificação dele de acordo com a qual o mesmo se integra necessariamente na ordem do mundo como um todo, segundo sustentaram Leibniz, antes de Kant, e Hegel, depois dele[90].

         Hannah Arendt lida com o problema do mal em termos inteiramente seculares, quando recusa qualquer explicação demoníaca, qualquer mitologização do Holocausto e quando afirma a necessidade de enfrentar “a música da capacidade genuína do homem para o mal” e critica qualquer visão do mal enquanto obra do Diabo como uma fuga da realidade através da qual se procura escapar à responsabilidade do homem pelos seus actos. Tais visões resultariam de um gnosticismo moderno, o qual releva de um “oportunismo metafísico”, de uma “fuga da realidade em direcção a uma luta cósmica em que o homem necessita apenas de se juntar às forças da luz para ser salvo das forças das trevas” [91]. Mas também no plano da teologia a lição de Auschwitz seria, como propõe Hans Jonas, a de que não podemos compatibilizar a infinita bondade de um Deus cujo governo do mundo é, em certa medida, inteligível, com a existência do mal nesse mesmo mundo senão à custa da sua omnipotência (pois se Ele é omnipotente, porque razão não actuou?) e, nessa medida, através da responsabilização do homem em virtude da sua liberdade[92].

 
         Em certo sentido, Auschwitz poderia significar assim, na perspectiva filosófica judaica de Hans Jonas, a liquidação de toda a teodiceia, no sentido em que ela era tradicionalmente entendida[93]. Num artigo famoso, J. L. Mackie afirmou existir uma contradição entre as três proposições “Deus é omnipotente”, “Deus é inifinitamente bom” e “o mal existe”, no sentido em que se duas delas fossem verdadeiras a terceira seria falsa. Mas, ao mesmo tempo, segundo Mackie, as três proposições, em conjunto, seriam partes essenciais da maioria das posições teológicas, no sentido em que os teólogos têm de aderir a todas elas e, ao mesmo tempo, não podem fazê-lo consistentemente. É claro que, como afirma Mackie, a contradição entre as mencionadas proposições apenas decorre da circunstância de a elas serem adicionadas algumas premissas que estabelecem ligações entre os termos “bem”, “mal” e “omnipotente”. De acordo com estas premissas, o bem opõe-se ao mal, no sentido em que algo bom elimina sempre o mal na medida em que o pode fazer, e não existem limites ao que pode ser feito por algo omnipotente. Daqui seguir-se-ia que algo omnipotente e bom elimina o mal completamente e, assim, as proposições segundo as quais algo omnipotente e bom existe, e o mal existe, são incompatíveis[94]. Depois de criticar as diversas propostas para a solução do problema do mal, aqui exposto na sua forma mais simples, a análise de Mackie culmina na proposta que considera porventura mais importante: aquela segundo a qual o mal não pode ser atribuído a Deus, mas às acções independentes dos seres humanos, aos quais foi conferido por Deus o livre-arbítrio. Ora, sem prejuízo das diversas críticas que é possível opor a esta proposta, relacionadas com as dificuldades da noção de livre-arbítrio, Mackie encontra uma dificuldade fundamental na noção de um Deus omnipotente criador de homens dotados de livre-arbítrio, pois se as vontades dos homens são verdadeiramente livres isso deve significar que nem Deus as poderá controlar, ou seja, que Deus não é mais omnipotente depois de criar o homem. Segundo Mackie, somos assim levados àquilo que chama o Paradoxo da Omnipotência: pode um ser omnipotente criar algo que não possa subsequentemente controlar? Numa formulação praticamente equivalente, pode um ser omnipotente criar regras que depois o vinculam? O paradoxo decorre de não podermos responder, satisfatoriamente, quer na positiva, quer na negativa. Com efeito, se respondermos afirmativamente isso significará a cessação da omnipotência divina; se respondermos negativamente, teremos que admitir que essa omnipotência nunca existiu[95]. A conclusão, para Mackie, é a de que não existe uma solução válida para o problema do mal que não modifique ao menos uma das três proposições iniciais, afectando seriamente o “núcleo essencial” da posição teísta[96].
         Quando formulou a sua crítica da posição teísta Mackie não tinha em vista, pelo menos explicitamente, a versão extrema do mal representada por Auschwitz [97]. A proposta de Hans Jonas, numa perspectiva filosófica judaica, visando a modificação da proposição relativa à omnipotência divina não pretende, por seu turno, responder ao argumento de Mackie e demonstra que este não esgota os recursos de uma posição teísta possível. Mas numa perspectiva filosófica, seja ela judaica ou cristã, impor-se-á necessariamente a revisão das premissas respeitantes à omnipotência e omnisciência divinas e à infinita bondade de Deus, em face não apenas da existência do mal, mas das suas versões mais extremas? Limitamo-nos aqui a indicar uma possível defesa da coerência daquelas premissas, levada a cabo por Marilyn McCord Adams, na sua tentativa de resposta ao problema levantado ao cristianismo por aqueles que designa como os “males horrendos”[98]. Na longa lista de exemplos paradigmáticos de “males horrendos” dois surgem individualizados: a participação nos campos de morte nazis e a paixão de Cristo[99]. De um ponto de vista cristão, Deus é um ser relativamente ao qual não podemos conceber qualquer superior, um bem incomensurável com quaisquer bens criados e males temporais; de igual modo o bem representado pela amizade com Deus é simplesmente incomensurável com quaisquer bens não transcendentes ou males que uma pessoa possa experimentar. Existe, pois, uma razão teológica que leva os cristãos a acreditar que Deus pode derrotar todos os sofrimentos, através da integração da participação nos “males horrendos” na relação pessoal com Deus. As dimensões possíveis dessa integração são reveladas pela soteriologia cristã, a começar pela participação de Deus em Cristo no “mal horrendo” que foi a Sua paixão. É claro que na maior parte dos casos os horrores não são reconhecidos como experiências de Deus, mas na perspectiva cristã da vida eterna os sofrimentos deles resultantes serão vistos como tal.

         Marilyn McCord Adams reconhece que em relação à natureza humana a participação em “males horrendos” e a intimidade de amor com Deus são igualmente desproporcionadas, no sentido em que se a primeira ameaça submergir o bem com o mal numa vida humana individual, a segunda garante a submersão reversa do mal pelo bem. Mas existe também uma desproporção entre o “mal horrendo” e a relação de amizade com Deus, na medida em que esta última, como se disse, é incomensurável com quaisquer outros bens ou males[100]. A proposta de Marilyn McCord Adams não nos parece poder ou dever ser interpretada à luz de quaisquer especulações sobre um «Deus sofredor», na conhecida expressão de Dietrich Bonhoeffer, um «Deus crucificado», ou mesmo sobre a «morte de Deus», que em última análise procuram superar Auschwitz através de “uma dialética intradivina da dor”, na expressão de Hans Küng. Na leitura que dela fazemos, seria ainda possível afirmar, com Hans Küng, que Deus permanece a luz no meio de uma obscuridade abismal. Porque existe Auschwitz não seria a ideia de Deus que se torna insuportável, ou apenas suportável como um Deus impotente ou sofredor; seria, pelo contrário, o Deus compassivo do amor, da força, da bondade e da misericórdia o único meio de suportar a ideia de mal representada por Auschwitz[101]. Nesta perspectiva, ainda que conservem algum sentido, depois de Auschwitz, as proposições relativas à teodiceia, elas dificilmente se poderão articular em torno de um plano transcendente de combate ao mal, que garantirá “no fim de contas”, o triunfo do bem [102].

         Não pretendemos aqui tomar uma posição definitiva sobre as complexas questões colocadas ao problema do mal pelos campos da morte nazis, mas apenas oferecer uma  última reflexão. Na verdade, não sabemos se ao lidar com o problema do mal em termos puramente seculares Hannah Arendt oferece respostas plenamente satisfatórias para pessoas sem convicções religiosas; o que suspeitamos é que aqueles que as tenham não podem ignorar as suas propostas e o seu modo de pensar.
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Centro de Saúde Mental Shaar Menashe para Sobreviventes do Holocausto.


 

         10. Do “direito a ter direitos” aos “crimes contra a humanidade”. Em The Origins of Totalitarianism, Hannah Arendt afirmou que o “direito a ter direitos” e o “direito a pertencer a algum tipo de comunidade organizada” apenas se tornaram patentes quando surgiram milhões de pessoas que perderam e não podiam readquirir esses direitos em virtude da situação política global. O problema, segundo ela, é que “esta calamidade resultou não de uma qualquer falta de civilização, atraso, ou simples tirania, mas, pelo contrário, do facto de ela não poder ser reparada, porque não existia mais nenhum espaço ‘incivilizado’ sobre a terra, porque, quer queiramos, quer não, começámos realmente a viver em Um Mundo. Apenas com uma humanidade completamente organizada podia a perda do lar e do estatuto político identificar-se com a própria expulsão da humanidade” [103].

         A ideia do “direito a ter direitos” apresenta uma íntima conexão com o conceito de “crimes contra a humanidade”. Não apenas como resultado de um universalismo antropológico que estaria subjacente a ambos os conceitos[104], mas porque, na verdade, Eichmann em Jerusalém marca o início do esforço de Hannah Arendt em articular racionalmente o seu desejo de sujeitar ao juízo e ao direito dos homens os actos praticados pelos artífices e executantes da Solução Final, apresentados como hostis generi humani [105]. A substituição do “mal radical” pela “banalidade do mal” insere-se justamente nesse esforço.

         Em íntima conexão com o que acaba de ser dito, Eichmann em Jerusalém conduziu também Arendt à conclusão de que o papel do anti-semitismo na montagem e execução da Solução Final era menos importante, em relação à dinâmica própria de um sistema totalitário, do que ela inicialmente se encontrava disposta a aceitar [106]. Como sinal evidente de que a polémica em torno das ideias de Arendt não vai esmorecer, Daniel Goldhagen veio recentemente sustentar o contrário, fazendo revivescer a importância da ordem da motivação e da intenção (assente, segundo ele, no profundo anti-semitismo dos alemães) nos crimes da Solução Final. Para Goldhagen a dominação totalitária não teve o efeito de transformar os executantes da Holocausto nos seres isolados e atomizados, sem intenções necessariamente malévolas, que nos apresentaria Hannah Arendt [107]. É claro que Goldhagen não compreendeu o livro de Hannah Arendt: esta não procurou identificar um tipo representativo do criminoso nazi responsável pelo Holocausto, como é o objectivo confesso de Goldhagen, mas compreender filosoficamente um facto com que foi confrontada e sobretudo discorrer sobre as condições que devem verificar-se para que uma tragédia como o Holocausto não volte a repetir-se [108]. Arendt não nega a participação de fanáticos, sádicos e toda a casta de mentes perversas na perpetração do Holocausto; simplesmente, em lugar de uma simples iteração do ódio, a sua reflexão sobre o caso individual de Eichmann levou-a a interessar-se pelos contornos morais da participação das pessoas respeitáveis, daquelas que em outras circunstâncias seriam porventura normais, e se o continuassem a ser fariam talvez a diferença, no quadro da sua preocupação em encontrar garantias que permitam ao pensamento assegurar-se contra a ocorrência do mal [109]. De um mal que, se deixarmos de pensar e julgar de forma autónoma, se tornará certamente essencial.

 

 

 

         António de Araújo                             Miguel Nogueira de Brito (*)
 
 
 
 
 
 
(*) Prefácio à edição portuguesa de Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal, Coimbra, Edições Tenacitas, 2003.  

 

 

 

 






[1] Sobre a captura de Eichmann, cf., entre tantos outros, Isser Harel, The House of Garibaldi Street, Nova Iorque, 1975; Peter Malkin e Harry Stein, Eichmann in My Hands, Waterville, 1990; Zvi Aharoni e Wilhelm Dietl, Operation Eichmann. Pursuit and Capture, Londres, 1999; cf. ainda a entrevista de Peter Malkin à revista brasileira Isto É, de 18-XII-1996 (in www.terra.com.br/istoe/internac/142024.htm).
[2] The Man Who Captured Eichmann (1996), de William A. Graham, com Robert Duvall e Arliss Howard, 96min.
[3] Cf. Simon Wiesenthal, Eu Persegui Eichmann, s.l., s.d., p. 9; idem, Os Assassinos Entre Nós, s.l., s.d., pp. 96ss; cf. ainda Alan Levy, The Wiesenthal File, Michigan, 1994, pp. 89ss.
[4] Cf., por ex., Uki Goñi, The Real Odessa. How Perón brought the nazi war criminals to Argentina, Londres, 2002, em esp. pp. 292ss.
[5] Cf. Uki Goñi, The Real Odessa..., cit., p. 297. Simon Wiesenthal apresenta uma afirmação algo diferente: “Morrerei feliz com a certeza de ter morto quase seis milhões de pessoas” (Os Assassinos..., cit., p. 117).
[6] Cf. Uki Goñi, The Real Odessa..., cit., pp. 298-299.
[7] A “solução Madagáscar”, que remontava à literatura anti-semita do século XIX (cf. Wolfgang Benz, The Holocaust. A short history, Londres, 2000, p. 66), foi avançada por diversas vezes, ao mesmo tempo que se ponderavam outros destinos, como o Equador, a Colômbia ou a Venezuela; no entanto, é duvidoso que haja havido uma firme intenção de concretizar este projecto (cf. Ian Kershaw, Hitler, 1936-1945: Nemesis, Londres, 2001, pp. 134, 321ss e 349; AA.VV., The Holocaust Chronicle. A history in words and images, Lincolnwood, 2000, p. 138), ao contrário do que afirmam certos autores (cf., por ex., Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Nova Iorque, 1985, pp. 158ss, em esp. pp. 160-161; Daniel Jonah Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners. Ordinary germans and the Holocaust, Londres, 1997, p. 146). O abandono da “solução Madagáscar” é ainda mais evidente com a invasão da União Soviética e a abertura a Leste de novos territórios para instalação dos judeus (cf. Walter Laqueur, The Terrible Secret. Supression of truth about Hitler’s “Final Solution”, Nova Iorque, 1998, p. 184). Registe-se, pela sua curiosidade, que em 1946 o Governo britânico procurou encontrar um local para os refugiados judeus, tendo o cônsul em Madagáscar informado que as autoridades francesas dispunham-se a receber agricultores mas rejeitavam “judeus urbanos debilitados por um longo cativeiro em campos de concentração” (cf. Martin Gilbert, Descent Into Barbarism. A history of 20th century, 1933-1951, Londres, 1999, p. 748).
[8] Cf. o protocolo da conferência de Wannsee in Ytzhak Arad, Israel Gutman, Abraham Margaliot (eds.), Documents on the Holocaust. Selected sources on the destruction of the jews of Germany and Austria, Poland, and the Soviet Union, 8ª ed., Jerusalém, 1999, pp. 249ss.
[9] Sobre a Conferência de Wannsee, é interessante o telefilme Conspiracy (2001), director: Frank Pierson; argumentista: Loring Mandel, 96min, com Kenneth Branagh (no papel de Heydrich) e Stanley Tucci  (no papel de Eichmann).
[10] Cf. Raanan Rein, Argentina, Israel and the Jews: the Eichmann capture, and after, Maryland, 2002.
[11] Cf. a mensagem in Lord Russell of Liverpool, The Trial of Adolf Eichmann, 2ª ed., Londres, 2002, pp. XXVII-XXIX.
[12] Sobre o julgamento de Eichmann, cf., por ex., Haim Gouri, Facing the Glass Cage: reporting the Eichmann trial, Detroit, 2003; Bruce L. Brager (ed.), The Trial of Adolf Eichmann: the Holocaust on trial (Famous trials), Farmington Hills, 1999; Lord Russell of Liverpool, The Trial of Adolf Eichmann, Londres, 1962; Anette Wievorka, Le Procès Eichmann, 1961, Bruxelas, 1989; Gideon Hausner, Justice in Jerusalem, Nova Iorque, 1978; Moshe Pearlman, The Capture and Trial of Adolf Eichmann, Nova Iorque, 1963; AAVV, After the Eichmann Trial. On a controversy about the stance of the Jews, Tel Avive, 1963; Christina Grosse, Der Eichmann-Prozess zwischen Recht und Politik, Berna-Berlim, 1995; Hans Lamm (ed.),Der Eichmann-Prozess in der deutschen öffentlichen Meinung, Francoforte, 1961; Harry Mulisch, Strafsache 40/61. Eine Reportage über den Eichmann Prozess, Amesterdão, 1961; Bernd Nellessen, Der Prozess von Jerusalem, Düsseldorf, 1964; Dov Schmorak, Der Prozess Eichmann, Viena, 1964; numa perspectiva revisionista, cf. Paul Rassinier, Real Eichmann Trial, Newport Beach, 1980; a documentação encontra-se reunida in: The Trial of Adolf Eichmann: record of proceedings in the District Court of Jerusalem, 9 vols., Jerusalém, 1998; cf. ainda, Adolf Eichman, Jochen von Lang e Claus Sibyll (ed.s), Eichmann Interrogated: transcripts from the archives of the istraeli police, Nova Iorque, 1984; na Internet, cf., por ex: www.nizkor.org/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/
[13] The Trial of Adolf Eichmann, Estados Unidos, ABC News Production, 1997 (repórter: David Brinkley; produtor: Daniel P. Polin), dur. aprox.: 120min. (cf. www.pbs.org/eichmann); Un Spécialiste, França, P & B, 1999, 123min. (realização: Eyal Sivan; argumento: Romy Brauman e Eyal Sivan); cf., a propósito, Rony Brauman e Eyal Sivan, Éloge de la Désobéissance. A propos d’«un spécialiste» Adolf Eichmann, Paris, 1999 (com o script do filme a pp. 101ss).     
[14] Cf. Jochen von Lang e Claus Sibyll (eds.), Eichmann Interrogated. Transcripts from the archives of the Israeli Police, Nova Iorque, 1999.
[15] Carta a Karl Jaspers, de 13-IV-1961, in Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance (1926-1969), Paris, 1995, pp. 585-587; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem. Correspondances et dossier critique”, in Hannah Arendt, Les Origines du Totalitarisme. Eichmann à Jérusalem, Paris, 2002, p. 1326.
[16] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt. For love of the world, New Haven-Londres, 1982, pp. 355ss.
[17] Cf. Lord Russell of Liverpool, The Trial of Adolf Eichmann, cit., pp. 4-7.
[18] Cf. Michel Berenbaum, “Foreword”, in Jochen von Lang e Claus Sibyll (eds.), Eichmann Interrogated..., cit., p. VII.
[19] In Léon Poliakov, Le Procès de Jérusalem. Jugement-Documents, Paris, 1963, pp. 302-306; trad. portuguesa de Ana Bela Cabral, in Sub Judice. Justiça e Sociedade, nº 25 – «Justiça e Memória». Registe-se que foram publicados em 1999, pelo semanário alemão Die Welt, excertos do relato memorialístico de Eichmann, um manuscrito de cerca de mil e duzentas folhas. Nesse texto, Eichmann escreve, entre o mais: “Agora que olho para trás, percebo que uma vida que se baseia no princípio da obediência a ordens é muito confortável. Viver assim reduz ao mínimo a necessidade de pensar” (cf. Público, de 15-VIII-1999).  A isso poderia replicar-se com a afirmação que Günther Anders usa  numa carta ao filho de Adolf Eichmann, Klaus Eichmann: “É triste mas é verdade: a deslealdade pode ser uma virtude” (cf. Günther Anders, Nosotros, los hijos de Eichmann. Carta abierta a Klaus Eichmann, 2ª ed., Barcelona – Buenos Aires – México, 2001, p. 97). 
[20] Cf. a decisão do Supremo Tribunal in Léon Poliakov, Le Procès de Jérusalem..., cit., pp. 309-322.
[21] Cf. a carta de Hannah Arendt de 7-VI-1962, in Carol Brightman (ed.), Between Friends. The correspondence between Hannah Arendt and Mary McCarthy, 1949-1975, Nova Iorque-São Diego-Londres, 1995, p. 136.
[22] Cf., neste sentido, Pierre Bouretz, “Hannah Arendt entre passions et raison”, in Hannah Arendt, Les Origines..., cit., p. 13.
[23] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 329.
[24] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 159.
[25] Apud Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, in Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem. Rapport sur la banalité du mal, Paris, 1991, p. III; Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 329.
[26] Apud Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, in Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem. Rapport sur la banalité du mal, Paris, 1991, p. III; Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 329.
[27] “O processo de Eichmann não lhe irá agradar”, escreveu Jaspers a Arendt em 14-X-1960 (cf. Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance..., pp. 546-547; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1314). Como se sabe, Karl Jaspers mostrou as maiores reservas em relação à imparcialidade do Estado de Israel. Ainda que compreendesse o rapto de Eichmann – não com base em razões jurídicas mas enquanto acto político – temia, entre o mais, que o processo criasse um “mártir” para a causa do antisemitismo. Preferia, por isso, o julgamento por um tribunal internacional (cf. a carta de Jaspers a Hannah Arendt de 14-XII-1960, in Hannah Arendt / Karl Jaspers, ob. cit., pp. 554-557). Em todo o caso, Jaspers auxiliou Hannah Arendt no seu trabalho, reunindo, nomeadamente, notícias da imprensa europeia (cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 329).
[28] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 332.
[29] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., pp. 331-332.
[30] Cf. a carta a Heinrich Blücher, de 15-IV-1961, in Hannah Arendt / Heinrich Blücher, Correspondance, 1936-1968, Paris, 1999, pp. 473-476; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1328.
[31] Para uma síntese da polémica suscitada na época, cf. Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, cit., em esp. pp. IV-XI; Sylvie Courtine-Denamy, Hannah Arendt, Paris, 1994, p. 212; Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., pp. 347ss. Cf. ainda Jacob Robinson, And the Crooked Shall be Made Straight: the Eichmann trial, the jewish catastrophe, and Hannah Arendt’s narrative, Nova Iorque, 1965; Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, Berkeley e Los Angeles, 2001; Bernard J. Bergen, The Banality of Evil: Hannah Arendt and “The Final Solution”, Blue Ridge Summit, 1998; Shiraz Dossa, “Hannah Arendt on Eichmann: the public, the private and the evil”, The Review of Politics, vol. 46, nº 2, 1984; Dagmar Barnow, “The secularity of evil: Hannah Arendt and the Eichmann controversy”, Modern Judaism, vol. 3, nº 1, 1983; J. Beatty, “Thinking and moral considerations: Socrates and Arendt’s Eichmann”, The Journal of Value Inquiry, nº 10, 1976; Norman Fruchter, “Arendt’s Eichmann and jewish identity”, in J. Weinstein e D. Eakins (eds.), For a New America, Nova Iorque, 1970; F. Krummacher (ed.), Die Kontroverse Hannah Arendt und die Juden, Munique, 1964; Walter Laqueur, “Hannah Arendt in Jerusalem: the controversy revisited”, in L. Letgers (ed.), Western Society After the Holocaust, Boulder, 1983; Hans Mommsen, “Hannah Arendt und der Prozess gegen Adolf Eichmann”, introd. a: Eichmann in Jerusalem: ein Bericht von der Banalität des Bösen, Munique, 1986; Sharon Muller, “The origins of Eichmann in Jerusalem: Hannah Arendt’s interpretation of jewish history”, Jewish Social Studies, nº 43, 1981; Tobin Siebers, “The politics of storytelling: Hannah Arendt’s Eichmann in Jerusalem”, Southern Humanities Review, vol. 26, nº 3, 1992; Seyla Benahib, “Arendt’s Eichmann in Jerusalem”, in Dana Villa (ed.), The Cambridge Companion to Hannah Arendt, Cambridge, 2000; Dana R. Villa, “The banality of philosophy: Arendt on Heidegger and Eichmann”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: twenty years later, Cambridge, Mass., 1996; Randolph L. Braham, The Eichmann Case: a source book, Nova Iorque, 1969; Luiz Carlos Lisboa, “Eichmann em Jerusalém – Relato e meditação sobre os extremos da condição humana”, Jornal da Tarde, de 30-VII-1983.  Para uma bibliografia (activa e passiva) de Hannah Arendt, com elementos até 1996, cf. António de Araújo, “Hannah Arendt (1906-1975): uma aproximação bibliográfica”, Estado & Direito. Revista Semestral Luso-Espanhola de Direito Público, nº 17/18, 1996, pp. 171-213.
[32] Foi o caso de Irving Howe, “The New Yorker and Hannah Arendt”, Commentary, Outubro de 1963, cit. por Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, cit., p. IV.
[33] Cf. «Le “cas Eichmann” et les allemands. Entretien avec Thilo Koch”, in Hannah Arendt, Les Origines..., cit., p. 1411. O problema foi ainda abordado numa entrevista de Arendt a Samuel Grafton, em Setembro de 1963, recentemente descoberta (cf. Seyla Benahib, “Arendt’s Eichmann...”, cit., pp. 70-71).
[34] Cf. Hannah Arendt, “Die Wahren Gründe für Theresienstadt”, Aufbau, de 3-IX-1943, trad. francesa: “Les vrais raisons de Theresienstadt”, in Hannah Arendt, Auschwitz et Jerusalém, Paris, 1991, pp. 55-57.
[35] Cf. Shoshana Felman, The Juridical Unconscious. Trials and traumas in the twentieth century, Cambridge, Mass., 2002, p. 106.
[36] Apud Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, cit., p. VII.
[37] Apud Michelle-Irène Brudny-de Launay, “Présentation”, cit., p. VII.
[38] Cf. Daniel Bell, “The alphabet of justice: on Eichmann in Jerusalem”, Partisan Review, vol. 30, nº 3, 1963.
[39] Cf. Bruno Bettelheim, “Recensão a: Eichmann in Jerusalem”, New Republic, nº 184, 1963, reimp. In Surviving and Other Essays, Nova Iorque, 1979.
[40] Cf. Gershom Scholem, “Eichmann in Jerusalem: an exchange of letters”, in R. Feldman (ed.), The Jew as a Pariah: jewish identity and politics in modern age, Nova Iorque, 1978; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann...”, cit., em esp. pp. 1342ss.
[41] Michael Musmanno seria ainda autor da obra The Eichmann Kommandos, Londres, 1962.
[42] Cf. a carta de Hannah Arendt a Karl Jaspers, de 20-X-1963, in Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance..., cit., pp. 695-699; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1387; cf. ainda Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 348.
[43] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 359.
[44] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 329.
[45] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., pp. 352-353.
[46] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt..., cit., p. 349.
[47] Cf. Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1402. Alcopley era o médico de Hannah Arendt e Heinrich Blücher: cf. a carta de Hannah Arendt a Karl Jaspers, de 20-X-1963, in Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance..., cit., pp. 695-699; tb. in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1387. O próprio Jaspers não é alheio à génese da ideia de «banalidade do mal». Com efeito, numa carta dirigida a Arendt em 19-X-1946, Jaspers afirma o seguinte: “aquilo que os nazis fizeram não se deixaria, segundo a sua opinião, compreender como um crime; a sua concepção inquieta-me um pouco se a ela estiver subjacente a ideia segundo a qual toda a culpa que extravasa o âmbito penal adquira inevitavelmente uma certa «grandeza» – uma grandeza satânica da qual, no que respeita aos nazis, me distancio tanto quanto dos discursos sobre o «demonismo» de Hitler e outras coisas do género. Em meu entender, devemos ver estas coisas na sua total banalidade, na sua trivialidade prosaica porque é isso que as caracteriza. As bactérias podem provocar epidemias que aniquilam populações inteiras e não passam, por isso, de bactérias. Vejo com horror qualquer vestígio de mito e lenda” (cf. Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance..., cit., pp. 110-111).
[48] Cf. Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, Nova Iorque, 1979 (1951), p. 459.
[49] Cf. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, 1958, p. 241. A passagem do Novo Testamento tida em vista por Arendt é certamente o Evangelho segundo S. Lucas 17, 2 (mas vejam-se ainda Mt 18, 6-7; Mc 9, 42).
[50] Cf. Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1348.
[51] Cf. carta de Hannah Arendt a Gershom Scholem, de 24-VII-1963, in Pierre Bouretz, “Eichmann à Jérusalem...”, cit., p. 1358.
[52] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem, pp. 150 e 252. Na primeira das passagens Arendt refere-se ao mal na Alemanha Nazi como sendo imune à voz da consciência: “O mal no Terceiro Reich tinha perdido a qualidade pela qual a maioria das pessoas o reconhece – a qualidade da tentação”. Na segunda, Hannah Arendt comenta as últimas frases de Eichmann: “Perante a morte, ele não encontrou senão o cliché usado na oratória funerária. No patíbulo, a sua memória pregou-lhe a última partida; ficou ‘extasiado’ e esqueceu-se de que estava no seu próprio funeral”. Hannah Arendt conclui: “Foi como se naqueles últimos minutos ele condensasse a lição que o seu longo percurso de perversidade humana lhe tinha ensinado – a lição da terrível, desafiadora da palavra e do pensamento, banalidade do mal.”
[53] Bernstein baseia-se neste ponto na correspondência trocada entre Arendt e Karl Jaspers, em que aquela afirma “rejeitar totalmente” a ideia de uma “grandeza satânica” dos crimes nazis (cf. carta de Hannah Arendt a Karl Jaspers de 17-XII-1946, in Hannah Arendt / Karl Jaspers, Correspondance..., cit., p. 120; cf., ainda, a carta de Jaspers a Arendt de 19-X-1946, in ob. cit., pp. 110-111).
[54] Cfr. Richard Bernstein, “Did Hannah Arendt Change Her Mind? From Radical Evil to the Banality of Evil”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: Twenty Years Later, Cambridge, Mass., 1996, pp. 138-144; Richard Bernstein, Hannah Arendt and the Jewish Question, Cambridge, 1996, pp. 147-153. Cf., ainda, as interessantes considerações de Tzvetan Todorov, Face à l’Extrême, nova ed., s. l., 1994, pp. 134 e ss. (esp. pp. 169-170), 305 e 323, sobre os «vícios quotidianos» de gente vulgar nas situações extremas de uma sociedade totalitária.
[55] Cfr. Margaret Canovan, Hannah Arendt: A Reinterpretation of Her Political Thought, Cambridge, 1992, p. 158.
[56] Cf. Hannah Arendt, The Life of the Mind, San Diego – Nova Iorque – Londres, pp. 3-5: “Factualmente, a minha preocupação com as actividades mentais tem duas origens bastantes diferentes. O impulso imediato veio da minha assistência ao julgamento de Eichmann em Jerusalém. No meu relatório desse julgamento, falei de ‘banalidade do mal’. Subjacente a essa expressão, não sustentei qualquer tese ou doutrina, embora estivesse no fundo consciente do facto de ela ir contra a nossa tradição de pensamento – literária, teológica ou filosófica – sobre o fenómeno do mal. O mal, assim aprendemos, é algo demoníaco (…). Todavia, aquilo com que fui confrontada era algo totalmente diferente. Impressionou-me a manifesta superficialidade do agente, que tornava impossível seguir o mal incontestável das suas acções até um nível mais profundo de raízes ou motivos. Os actos eram monstruosos, mas o agente – pelo menos aquele que estava a ser julgado – era bastante ordinário, vulgar e, nem demoníaco, nem monstruoso. Não havia nele sinal de convicções ideológicas firmes ou motivos especificamente maus, e a única característica notável que se podia detectar no seu comportamento passado, tal como no seu comportamento durante o julgamento e ao longo da investigação policial que o antecedeu, era algo inteiramente negativo: não era estupidez, mas ausência de pensamento. (…). Foi esta ausência de pensamento – que é tão frequentemente uma experiência da nossa vida de todos os dias, em que raramente temos tempo, para já não falar da inclinação, para parar e pensar – que despertou o meu interesse. (…) É a ruindade, seja como for que a definamos, este estar ‘determinado a ser um vilão’, uma condição não necessária para fazer mal? Poderá o problema do bem e do mal, a nossa faculdade para distinguir o bem e o mal, estar ligado com a nossa faculdade de pensar? (…) depois de ter sido atingida por um facto que, querendo ou não, ‘me pôs na posse de um conceito’ (a banalidade do mal), não podia evitar levantar a quaestio juris e perguntar-me a mim mesmo ‘com que direito eu o possuía e usava’.” (a segunda origem da preocupação de Arendt com as actividades mentais são as suas reflexões sobre o problema da Acção, das quais resultou o livro The Human Condition, cf. Arendt, The Life of the Mind, pp. 6ss).
[57] Cf. Richard Bernstein, Hannah Arendt and the Jewish Question, p. 171; no mesmo sentido, Seyla Benhabib afirma que nas reflexões subsequentes a Eichmann em Jerusalém sobre estas questões, Arendt não conseguiu dar conta, de um modo coerente, de todos os aspectos relativos às actividades do pensar e do julgar e da sua relação com o problema do mal [cf. “Arendt’s Eichmann in Jerusalem”, in Dana Villa (ed.), The Cambridge Companion to Hannah Arendt, Cambridge, 2000, p. 76; cf., ainda em sentido semelhante, Albrecht Welmer, “Hannah Arendt on Judgment: The Unwritten Doctrine of Reason”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: Twenty Years Later, Cambridge, Mass., 1996, pp. 35-39].
[58] Cf. Hannah Arendt, “Thinking and Moral Considerations”, in The Life of the Mind, p. 5.
[59] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem, p. 233.
[60] Cf. Albrecht Wellmer, , “Hannah Arendt on Judgment: The Unwritten Doctrine of Reason”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: Twenty Years Later, Cambridge, Mass., 1996, p. 35.
[61] Cf. Susan Neiman, “Theodicey in Jerusalem”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, Berkeley – Los Angeles – Londres, 2001, p. 76.
[62] Cf. Hannah Arendt, The Life of the Mind, cit., p. 13.
[63] Para uma interessante visão dessa análise que procura sustentar a respectiva coerência em torno da ideia de pluralidade e do carácter intersubjectivo do julgamento, cf. Jerome Kohn, “Evil and Plurality: Hannah Arendt’s Way to The Life of the Mind, I”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: Twenty Years Later, cit., pp. 147ss.
[64] Cf. Hannah Arendt, The Life of the Mind, cit., p. 13.
[65] Cf. Gitta Sereny, Albert Speer: His Battle with Truth, Londres, 1996, esp. pp. 702ss.; idem, The German Trauma, Experiences and Reflections: 1938-2001, Londres, 2001, pp. 266-285.
[66] Temos em vista o título do livro de Jacques Taminiaux, La Fille de Thrace et le Penseur Professionnel, Paris, 1992, pp. 11ss., o qual, por sua vez, evoca o episódio relatado por Platão no Teeteto (174a e ss.), em que a criada de Trácia se ri de Tales de Mileto quando o vê cair num poço por se encontrar distraído a observar o movimento dos corpos celestes: “na sua ânsia de conhecer o que se passava no céu, perdeu de vista o que se encontrava aos seus pés”. O episódio havia, aliás, sido invocado por Hannah Arendt em The Life of the Mind, p. 82, e em “Martin Heidegger at Eighty”, in Michael Murray (ed.), Heidegger and Modern Philosophy, New Haven, 1978, p. 301.
[67] Cf. Emmanuel Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, Suivi d’un Essai de Miguel Abensour, Paris, 1997, p. 25.
[68] Cf. Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, cit., pp. 24 e 18-19: “O biológico, com tudo aquilo que ele comporta de fatalidade, torna-se mais do que um objecto da vida espiritual, torna-se o seu coração. As misteriosas vozes do sangue, os apelos da hereditariedade e do passado aos quais o corpo serve de enigmático veículo perdem a sua natureza de problemas submetidos à solução de um Eu soberanamente livre. O Eu não encerra para os resolver mais do que os próprios desconhecidos desses problemas. Ele é constituído por eles. A essência do homem não reside mais na liberdade, mas numa espécie de acorrentamento”.
[69] Cf. Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, cit., p. 15.
[70] Cf. Miguel Abensour, “Le Mal Élémental”, in Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, p. 31.
[71] É o próprio Lévinas quem o afirma: “Entretiens Emmanuel Lévinas – François Poirié”, in François Poirié, Emmanuel Lévinas, Paris, 1987, p. 78.
[72] Cf. Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, cit., p. 16.
[73] Cf. Miguel Abensour, “Le Mal Élémental”, in Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, p. 91.
[74] Cf. Lévinas, Quelques Réflexions sur la Philosophie de l’Hitlérisme, cit., p. 25.
[75] Cf. Marie-Anne Lescourret, Emmanuel Lévinas, s. l., 1994, pp. 74ss; Lévinas, “Entretiens Emmanuel Lévinas – François Poirié”, in François Poirié, Emmanuel Lévinas, Paris, 1987, pp. 80-81.
[76] Cf. Elisabeth Young-Bruehl, Hannah Arendt…, cit., pp. 50ss; Elzbieta Ettinger, Hannah Arendt / Martin Heidegger, New Haven e Londres, 1995; Dana R. Villa, “The Anxiety of Influence: On Arendt’s Relationship to Heidegger”, in idem, Politics, Philosophy, Terror: Essays on the Thought of Hannah Arendt, Princeton, New Jersey, 1999, pp. 61ss.
[77] Cf. Dana R. Villa, “The Banality of Philosophy: Arendt on Heidegger and Eichmann”, in Larry May e Jerome Kohn (eds.), Hannah Arendt: Twenty Years Later, cit., p. 191.
[78] Cf. Dana R. Villa, Arendt and Heidegger: The Fate of the Political, Princeton, New Jersey, 1996, pp. 230ss.
[79] Como impressivamente afirma Taminiaux, La Fille de Thrace et le Penseur Profissionnel …, cit., p. 114, enquanto a análise fenomenológica de Heidegger, visando a resposta à questão de saber quem é o Dasein, desemboca no “isolamento radical de um Selbst cuja actividade, antes de toda a dispersão num corpo e num Mit-Sein, se esgota na vida solitária e muda de um poder-ser singular”, a análise da vida activa desenvolvida por Hannah Arendt gravita em torno da questão “Quem somos nós?”, a qual, na medida em que é colocada por outros, só pode ser respondida por cada um através da sua “identificação como actor dos seus actos que anuncia aos outros «o que faz, o que fez ou o que tem intenção de fazer» no seio de uma pluralidade que o precede e que lhe sucederá, de modo que esta individuação em actos e palavras suscita de pleno direito a narrativa e implica por assim dizer uma simbolização ilimitada”. Mas, é claro, como salienta Taminiaux, ob. cit., p. 77, “a questão arendtiana pode ser vista como uma réplica à questão heideggeriana”.
[80] Cf. Dermot Moran, Introduction to Phenomenology, Londres e Nova Iorque, pp. 287ss. e 320ss.
[81] Cf. Catherine Chalier, “Radicalité et Banalité du Mal”, in AA. VV., Politique et Pensée: Colloque Hannah Arendt, Paris, 1996, p. 281. Catherine Chalier tem em vista aspectos de resistência interior ao sistema dos campos de concentração, que evidentemente andavam muito longe de configurar uma qualquer existência política. A importância atribuída à política e a exclusão da chamada “questão social” no pensamento de Arendt pode também ser vista como um reflexo da sua preocupação em esconjurar a «banalidade do mal» através da promoção das actividades políticas de discussão e deliberação (cf. neste sentido Hanna Fenichel Pitkin, The Attack of the Blob: Hannah Arendt’s Concept of the Social, Chicago, 1998, pp. 256-257).
[82] Cf. Paul Ricoeur, Le Mal: Un Défi à la Philosophie et à la Théologie, Genève, 1996, p. 26.
[83] Cf. Patrick Riley, Leibniz’ Universal Jurisprudence, Justice as the Charity of the Wise, Cambridge, Mass., e Londres, 1996, pp. 88ss.
[84] Cf. Immanuel Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão, Lisboa, 1992, p. 27.
[85] Cf. Paul Ricoeur, Le Mal …, cit., p. 28.
[86] Cf. Hans Jonas, Le Concept de Dieu après Auschwitz. Une Voix Juive (trad. do original Der Gottesbegriff nach Auschwitz. Eine jüdische Stimme, 1987), Paris, 1994, pp. 36-37; Susan Neiman, “Theodicey in Jerusalem”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, cit., p. 69. Repare-se que o problema teria de ser colocado em moldes diferentes no âmbito de religiões, como a budista, para as quais todo o mal decorre de uma separação ontológica (isto é, decorrente do próprio acto da criação), e não apenas moral, em relação ao Único (cf. Leszek Kolakowski, Religion, If there is no God ... On God, the Devil, Sin and other Worries of the so-called Philosophy of Religion, pp. pp. 41-43).
[87] Cf. Richard J. Bernstein, Hannah Arendt and the Jewish Question, cit., p. 151; Susan Neiman, “Theodicey in Jerusalem”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, cit., p. 77.
[88] Cf. Susan Neiman, “Theodicey in Jerusalem”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, cit., pp. 80-81. Seria aqui interessante uma comparação com a análise de Lévinas sobre o mal como desresponsabilização pelo Outro: cf. Cristina Beckert, Subjectividade e Diacronia no Pensamento de Levinas, Lisboa, 1998, p. 262.
[89] Cf. Hannah Arendt, The Life of the Mind, cit., p. 13.
[90] Abstraímos aqui da diferença evidente entre Leibniz e Hegel: se para o primeiro o mundo se apresenta como inteiramente predeterminado e por isso se torna necessário encontrar razões metafísicas para a existência do mal, Hegel encontra essas razões no tempo, isto é, na história como processo necessário de desenvolvimento da razão.
[91] Cf. Hannah Arendt, “Nightmare and Flight”, in idem, Essays in Understanding, 1930-1954, editados por Jerome Kohn, Nova Iorque, 1994, pp. 134-135; cf., ainda, Dana R. Villa, “Conscience, the Banality of Evil, and the Idea of a Representative Perpetrator”, in idem, Politics, Philosophy, Terror…, cit., pp. 57-58; Susan Neiman, “Theodicey in Jerusalem”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, cit., pp. 88-89.
[92] Cf. Hans Jonas, Le Concept de Dieu après Auschwitz, cit., pp. 27ss. Segundo Jonas, ob. cit., pp. 38-39, a relação com o Deus criador que renúncia à sua omnipotência estruturar-se-ia agora, depois que Ele se deu inteiramente ao mundo no seu devir e nada mais tem para oferecer, sobre a dádiva do homem a Deus, sobre o seu cuidado em não dar azo a que Deus se possa arrepender de ter deixado devir o mundo (cf. Génesis 6, 6-7).
[93] A liquidação da teodiceia na sequência de Auschwitz é também a tese de Emmanuel Lévinas, segundo o qual “a desproporção entre o sofrimento e toda a teodiceia mostra-se em Auschwitz com uma clareza que fere a vista” (cf. E. Lévinas, “La Souffrance Inutile”, in Entre Nous, Essais sur le Penser-à-l’Autre, Paris, 1991, p. 107). A questão que coloca é a de saber como conservar, depois do fim da teodiceia, não só a religiosidade, mas também a moral humana da bondade. Em resposta a este pergunta Lévinas começa por referir a posição do filósofo judeu canadiano Emil Fackenheim, para o qual Auschwitz faz nascer para os judeus a obrigação de viverem e permanecerem como judeus, pois só assim evitarão tornar-se cúmplices de um projecto diabólico. Neste sentido, o judeu, depois de Auschwitz está destinado à sua fidelidade ao judaísmo e às condições materiais e mesmo políticas da sua existência. Esta reflexão pode também, segundo Lévinas, receber um significado universal: a humanidade pode escolher abandonar o mundo a um sofrimento inútil, perante o qual se afigura impotente a ideia, própria da teodiceia, de um plano de combate ao mal situado para além da compreensão humana (em que a dor se subordina a finalidades metafísicas apenas entrevistas pela fé ou pela crença no progresso), ou, pelo contrário, pode escolher continuar a História Santa, apelando aos recursos do eu em cada um e ao sofrimento inspirado pelo sofrimento do outro homem, à sua compaixão, que é um sofrimento não inútil, ou amor (cf. ob. cit., pp. 109-110).
[94] Cf. J. L. Mackie, “Evil and Omnipotence”, primeiro publicado na revista Mind, 64, 1955, pp. 200-212, reimpresso em Marilyn McCord Adams e Robert Merrihew Adams (eds.), The Problem of Evil, Oxford, 1990, pp. 25-26 (a partir do qual citamos).
[95] Cf. J. L. Mackie, “Evil and Omnipotence”, pp. 33-35. Mackie, caracteristicamente (isto é, em consonância com a sua visão “ateológica” de um problema teológico), equipara o Paradoxo da Omnipotência ao Paradoxo da Soberania, que identifica na resposta à questão de saber se um soberano pode adoptar uma lei que restrinja a sua própria futura soberania (cf. ob. cit., p. 35). A solução do paradoxo passaria pela distinção entre soberania de primeiro grau, isto é, autoridade sem limites para fazer leis que regulam a conduta de indivíduos ou colectividades distintos da entidade soberana, e soberania de segundo grau, isto é, autoridade sem limites para regular a acção do próprio soberano. Segundo ele, quando afirmamos que o Parlamento Britânico é soberano podemos querer significar que ele detém soberania de primeiro grau em qualquer momento, ou que detém soberania de primeiro e segundo graus no momento presente, mas não podemos querer significar simultaneamente, sem contradição, que o parlamento actual tem soberania de segundo grau e que qualquer parlamento sucessivo tem soberania de primeiro grau. Na verdade, o parlamento actual pode utilizar a sua soberania de segundo grau para eliminar a soberania de primeiro grau dos parlamentos sucessivos. Não seria assim possível atribuir a uma instituição duradoura soberania num sentido inclusivo e, pelas mesmas razões, não seria possível atribuir a um ser duradouro omnipotência nesse mesmo sentido inclusivo (a soberania de primeiro e segundo graus seriam agora substituídos pela omnipotência de primeiro grau – o poder ilimitado para actuar – e de segundo grau – o poder ilimitado para determinar que poderes para actuar as coisas terão: cf. ob. cit., p. 36; sobre o paradoxo da soberania, cf., ainda, Miguel Nogueira de Brito, A Constituição Constituinte, Coimbra, 2000, pp. 227ss. e 409ss.).
[96] Cf. J. L. Mackie, “Evil and Omnipotence”, p. 37. Numa obra posterior, Mackie revê a sua posição anterior, afirmando que um ser divino poderia ter tanto omnipotência de primeiro como de segundo grau, desde que não exercesse esta última de uma forma que limitasse o seu poderio de primeiro grau (cf. El Milagro del Teísmo. Argumentos en Favor y en Contra de la Existencia de Dios, trad. do original inglês, Madrid, 1994, p. 191). Por outro lado, a questão que conduz ao paradoxo da omnipotência (pode um ser omnipotente fazer coisas que não pode controlar?) é contraditória, pois é logicamente impossível fazer tais coisas. A resposta negativa à questão paradoxal seria, pois, satisfatória, desde que se esteja de acordo que a omnipotência não inclui o poder de fazer aquilo que é logicamente impossível. A resposta positiva à questão paradoxal seria também satisfatória pois, atendendo ao que acaba de ser dito, o poder de fazer coisas não controláveis não implica a cessação da omnipotência (ou seja, a omnipotência não é posta em causa por impossibilidades lógicas). Assim, para Mackie “não temos já uma contradição na noção de omnipotência ilimitada, de omnipotência de todos os graus de uma só vez, mas temos uma questão indecidível quanto a ela” (cf. ob. cit., p. 192). Mas mesmo neste caso, “a defesa do livre arbítrio não pode desvincular o mal de Deus, a menos que se suponha que a liberdade conferida ao homem é tal que Deus não pode (e não simplesmente não quer) controlar a sua escolha” (cf. ob. cit., p. 193).
[97] Em El Milagro del Teísmo..., cit., p. 195, Mackie menciona o Holocausto Nazi entre os horrores do século vinte, mas refere-se-lhes, a todos, como exemplos de casos em que “algum tipo de idealismo desempenhou um papel importante, oferecendo uma justificação ou uma desculpa”.
[98] O que não significa, evidentemente, que na perspectiva da teologia judaica não existam também formas de encarar o problema diversas da visão de Hans Jonas da criação do mundo como uma auto-limitação divina: sobre o assunto, cf. Hans Küng, El Judaísmo: Pasado, Presente y Futuro (trad. do original alemão Das Judentum), Madrid, 1993, pp. 559-561.
[99] Cf. Marilyn McCord Adams, “Horrendous Evils and the Goodness of God”, in Marilyn McCord Adams e Robert Merrihew Adams (eds.), The Problem of Evil, cit., pp. 211-212.
[100] Cf. Marilyn McCord Adams, “Horrendous Evils and the Goodness of God”, pp. 218-220. Numa perspectiva cristã católica seria ainda possível dizer, com Jean-Marie Lustiguer, que o aniquilamento representado por Auschwitz não é uma última vitória do mal sobre o homem: “Deus venceu na ressurreição dada ao Messias. Acreditar que o Cristo sofredor é o Messias, não é apenas acreditar que a vítima é o Salvador, mas que a vítima, no fim de tudo, triunfou sobre o carrasco” cf. Jean-Marie Lustiger, Le Choix de Dieu, Entretiens avec Jean-Louis Missika et Dominique Wolton, Paris, 1987, p. 141.
[101] Cf. Hans Küng, El Judaísmo, pp. 570-571. Hans Küng encontra aqui um ponto de união entre o crente judeu e o cristão, apoiando-se também na perspectiva específica de alguns teólogos judaicos. Procurámos, no texto, reflectir, embora de forma não exaustiva e tendo sobretudo em vista situar o pensamento de Arendt, algumas posições de judeus, cristãos e não crentes sobre os desafios colocados por Auschwitz ao problema da justificação de Deus. De qualquer forma, não pretendemos ensinar a outros, que acreditam, ou não, de outros modos, o modo de o fazerem. É esse limite que nos parece ser definitivamente ultrapassado por Irving Greenberg, quando afirma: “a invenção de uma nova categoria moral conciliando a escolha voluntária e a obrigação ética deveria ser um dos objectivos da pedagogia moral depois do Holocausto. É o sentido da eleição na fé judaica. O contraponto cristão desta experiência seria o abandono da retórica universalista, muitas vezes marcada por uma certa mentira da Igreja em relação a si mesma, e a adopção de uma outra concepção dela própria: ela definir-se-ia como um dos povos de Deus, quer dizer uma comunidade de fé específica com uma identidade bem definida, que deve testemunhar perante o mundo” (cf. Irving Greenberg, La Nuée et le Feu: Judaïsme, Christianisme et Modernité aprés l’Holocauste, trad. do original americano, Paris, 2000, p. 119). A este modo de ver julgamos adequado contrapor o exposto por Jacques Ellul, com base na Epístola aos Romanos de S. Paulo: o povo eleito de Israel é testemunho da fidelidade de Deus e da permanência da promessa; a Igreja, por seu turno, é testemunha da sua Universalidade e da sua Liberdade (cf. Ce Dieu Injuste...? Théologie Chrétienne pour le Peuple d’Israël, Paris, 1999, p. 10).
[102] Neste sentido Auschwitz confirma a crítica filosófica que já antes se poderia fazer à teodiceia. Kolakowski, Religion..., cit., pp. 53-54, equaciona bem essa crítica quando afirma que “o mal moral e o sofrimento humano, incluindo o inevitável insucesso de todos na vida, podem ambos ser aceites e mentalmente absorvidos, mas seria absurdo pretender que, começando com o terrível caos da vida, podemos, como resultado de procedimentos logicamente admissíveis, chegar a um cosmos pleno de sentido e propósito. O acto de fé e confiança em Deus tem de preceder a capacidade de ver a Sua mão no curso dos eventos e na tristeza da história humana. Em duas palavras: credo ut intelligam.”
[103] Cf. Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, nova edição com prefácios acrescentados, San Diego – Nova Iorque – Londres, 1979, pp. 296-297.
[104] Cf. Seyla Benhabib, “Arendt’s Eichmann in Jerusalem”, in Dana Villa (ed.), The Cambridge Companion to Hannah Arendt, cit., p. 79.
[105] Cf. Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem, cit., p. 276. Sobre as dificuldades suscitadas, de um ponto de vista da teoria moral, por esse objectivo, cf. Carlos Santiago Nino, Radical Evil on Trial, New Haven, 1996, esp. pp. 135ss., referindo justamente as reflexões de Hannah Arendt sobre o mal e a dificuldade em enquadrar numa teoria retributivista a punição de homens como Eichmann.
[106] Cf. Hans Mommsen, “Hannah Arendt’s Interpretation of the Holocaust as a Challenge to Human Existence, The Intellectual Background”, in Steven E. Ascheim (ed.), Hannah Arendt in Jerusalem, cit., p. 229. Mas precisamente em função do que acaba de ser dito, não pode deixar-se de apontar uma assimetria no pensamento de Arendt entre a explicação de Eichmann e a crítica do papel dos conselhos judaicos na implementação da Solução Final. Se devemos esperar e exigir que a autonomia individual do pensar e do julgar persista mesmo nas condições de um sistema totalitário, torna-se, no entanto, problemático exigir, ou sequer esperar, uma resistência colectiva nessas mesmas condições, como Arendt parece exigir aos conselhos judaicos. Isso mesmo é demonstrado pelo facto (salientado, de resto, por Arendt: cf. Eichmann in Jerusalem, cit., pp. 171 e ss., 185 e ss.) de, naqueles países, como a Dinamarca e a Bulgária (sobre a salvação dos judeus na Bulgária, cf. La Fragilité du Bien, Le Sauvetage des Juifs Bulgares, textos comentados e reunidos por Tzvetan Todorov, Paris, 1999) em que, apesar de tudo, as normas sociais vigentes não postulavam a desumanização dos judeus, estes últimos se terem salvo .
[107] Cf. Daniel Jonah Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust, Londres, 1996, pp. 580-581, nota 23. Tendo certamente Hannah Arendt em vista, Goldhagen afirma no seu mais recente livro que através de Hitler’s Willing Executioners procurou “devolver aos alemães a sua humanidade, que lhes tinha sido até então geralmente negada pela sua caracterização padronizada de pessoas sem pensamento, peças automatizadas de uma engrenagem” (cf. Goldhagen, A Moral Reckoning: The Role of the Catholic Church in the Holocaust and Its Unfulfilled Duty of Repair, Londres, 2002, p. 4; cf., ainda, Ron Rosenblum, Explaining Hitler: The Search for the Origins of His Evil, Nova Iorque, 1998, pp. 339-340). Enquanto o propósito  do livro anterior era o de recolocar os seres humanos no centro da nossa compreensão da perpetração do Holocausto, neste seu segundo livro Goldhagen, ult. ob. cit., p. 6, pretende clarificar a culpabilidade moral, julgar os actores e pensar como poderiam melhor redimir os seus erros; o tom acusatório que já perpassava das páginas de Hitler’s Willing Executioners é agora completado pela prolação de uma verdadeira sentença, com determinação da pena a aplicar. Para uma penetrante crítica do simplismo das generalizações de Goldhagen em Hitler’s Willing Executioners, cf. Norman G. Finkelstein e Ruth Bettina Birn, A Nation on Trial: The Goldhagen Thesis and Historical Truth, Nova Iorque, 1998; Fritz Stern, “The Goldhagen Controversy: One Nation, One People, One Theory?”, in Foreign Affairs, 75, n.º 6, Novembro-Dezembro de 1996, pp. 128-138 (também publicado em Fritz Stern, Einstein’s German World, Londres, 2000, pp. 272 e ss.).
[108] Cf. as lúcidas considerações de Dana Villa, “Conscience, the Banality of Evil, and the Idea of a Representative Perpetrator”, cit., pp. 40-41, 52, 58-60; cf., ainda, Michael Halberstam, Totalitarianism and the Modern Conception of Politics, New Haven, 1999, pp. 166-167.
[109] A mesma dificuldade em compreender o plano em que se situa a análise de Hannah Arendt decorre de várias passagens do livro de Ron Rosenblum, Explaining Hitler..., cit., em que ela é mencionada. Nessas passagens Rosenblum refere-se a autores como Berel Lang, que opõe à ideia Arendt de uma “ausência de pensamento” (thoughtlessness) a apresentação dos nazis como “cheios de pensamento”, deliberação e imaginação (thoughtfulness) (cf. ob. cit., p. 216), ou Emil Fackenheim, que salienta os perigos de uma explicação objectiva, como a empreendida por Hannah Arendt, nos afastarem afinal cada vez mais da consciência de um mal transcendente e absoluto.

3 comentários:

  1. Muito bom
    excelente
    ao olhar e ler para os "intelectuais" que dominam a kultura e media lusos apenas podemos dizer:
    coitadinhos
    nada sabem
    a não ser o insuportável politicamente correto
    total ignorância esquerdóide

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  2. e pena nao terem uma versao em pdf para imprimir
    bem haja

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  3. Excelente. Muito obrigada :)
    Vou linkar.

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